sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Da virtude do fingimento

Ó noite benfazeja, mãe do repouso, madrasta da preocupação! Começar um texto assim, tão exclamativo, tão cheio de pathos, não lembra ao corcunda do demónio. A mim também não me lembrou, mas não encontrei um outro e mais decente começo. O dia, mais pequeno que o de ontem, esteve sorumbático. Chuvoso, flébil, plangente, lacrimoso. Infeliz (ainda não me cansei de adjectivar), envolto numa capa de sombra e cinza. Podia contar uma série de peripécias, mas são humanas, demasiado humanas, deixemo-las desfazerem-se com o passar das horas. Uma das coisas mais curiosas que me coube em sorte é a de me pôr a discutir assuntos que não me interessam para nada. Por vezes, consigo fingir por eles uma paixão que me falta em absoluto. Fingir paixões seria motivo de longa análise em sessões de terapia, caso fosse inclinado para ela e tivesse dinheiro suficiente para as múltiplas sessões semanais que me haveriam de recomendar para que o meu infeliz caso pudesse ser tratado. Já me imagino no divã a fazer associação livre e a contar sonhos que não tenho. Seja como for, não há qualidade social mais elevada do que o fingimento. É um exercício para não perturbar os outros, para evitar que transcorra da nossa mente perversa opiniões malévolas, enviesadas, e assim contribuir para a paz social. Uma das coisas que tenho reparado é que a sexta-feira é um dia propício para escrever as maiores idiotices da semana, mas é o que me ocorre.

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