segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Não ter mão no caminho

São múltiplas as traduções que se propõem para Jeremias, 10, 23, mas a de que mais gosto é a que diz e não está na mão do homem o seu caminho. A tradução de Frederico Lourenço, feita a partir do grego, aproxima-se e diz não é do ser humano o caminho dele. O versículo continua para dizer que não cabe ao homem estabelecer o seu próprio itinerário. Esta velha sabedoria acumulada pela experiência da decepção contraria radicalmente os desígnios do homem moderno, ciente de que não apenas faz caminhos como está convencido de que em sua mão reside o poder de os trilhar. Com toda esta conversa inútil e de aparência beata, quero apenas dizer que me sinto excluído da modernidade. Não sou construtor de caminhos, nem de estradas, nem de rotas marítimas ou aéreas, e não tenho sequer os meus próprios passos na mão ou mesmo no pé. Neste fim-de-semana que se prolonga, hoje é o segundo dia em que os meus pobres planos se revelaram enganadores, se furtaram ao meu desejo e à minha direcção. O que me vale, digo-o sem ironia, é que não conheço ninguém que não seja moderno e não tenha a sua vida nas próprias mãos. Por certo, haverá por aí outras aves perdidas, sombras que, como eu, se enganaram no tempo para nascer e em vez de terem aterrado na Idade Média vieram parar aos dias de hoje. Talvez não fosse nada disto o que queria escrever, mas as frases começam a sair e não há quem lhes ponha mão. Hoje o dia está dado a intermitências. Ora chove, ora faz sol. Tenho de me despachar, pois aquilo que eu não tinha programado chama por mim, como a mais urgente das coisas que há no mundo.

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