Um velho Mercedes preto ostenta-se com demora pela Sá Carneiro. As tílias, se o são, lutam em desespero contra o vento, pretendendo, sem êxito digno de crónica, segurar as folhas que restam aos ramos quase despidos. No céu a cinza das nuvens abre-se, uma ou outra vez, e deixa passar alguns raios de sol sem brilho, presos a um pudor de antiga virgem toldada de inocências. Oiço vozes na rua, gente que troca palavras para assustar o silêncio, tanto o temem, ou talvez seja eu que tenhas audições imaginárias. Nunca escreveria o que Peter Handke escreve no seu longo Poema à Duração: No sossego desses lagos / sei o que faço / e, sabendo o que faço, / fico a saber quem sou. Perfilho uma outra ideia. Quanto mais sei o que faço, menos sei quem sou. No sossego dos lagos, pediria a graça de esquecer o que faço e que sobre mim descesse um enorme silêncio. Falta-te fé na praxis, disse-me um dia o meu amigo Rogélio. Não o desmenti. Sisto IV, em 1477, decretou o dia de hoje como o da Festa da Imaculada Conceição, e Pio IX, em 1854, definiu a Imaculada Conceição como dogma dos católicos. Não imaginou ele que, um dia, ninguém sequer entendesse o que era um dogma, quanto mais uma concepção imaculada, embora todos fiquem gratos – continuo dado à hipérbole – pela dispensa dos negócios do mundo. Recebo, primeiro, um vídeo e, depois, uma foto. No primeiro, vejo o meu neto a pintar com aguarelas sobre uma folha de papel pautado. Na segunda, deparo-me com uma daquelas pinturas que só as crianças de dois anos sabem fazer, porque é imaculada a sua concepção. A da pintura e não a das crianças. Presumo.
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