sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Verrumar a razão

As tardes de sexta-feira ganharam uma inclinação para a rapidez. Mal se desvia os olhos e a noite já tomou conta da cidade, esmagando-a entre a humidade da terra calcária e a capa de cobre do veludo da noite. Seria aconselhável evitar estes tropos, mas é possível que numa outra vida tenha gasto o tempo no cultivo da retórica. Nunca se sabe o que nos pode acontecer, diz-se, mas ainda menos se sabe o que nos pode ter acontecido. Nisto não há nenhuma adesão à possibilidade da reencarnação, mas ajuda a escrever o texto. Devia levantar-me da secretária e ir fechar as janelas da sala lá do fundo, mas ainda não ganhei coragem para enfrentar, por segundos, as iluminações de Natal da Sá Carneiro. Mergulho na ideia de um fim-de-semana prolongado, graças à estranha combinação entre uma pandemia viral e a imaculada concepção da Virgem. Isto prova que mesmo o mais afastado se pode tornar próximo. Se estes estranhos encontros têm o condão de alegrar o espírito, a colecção de dogmas que presidem à religião que esta pátria em tempos praticou é uma aguçada ferramenta para verrumar uma pobre razão habilitada apenas ao que não tem mistério nem contradição. Se alguém me acusar de ter escrito o que escrevi, desde já o desminto.

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