Num certo diálogo, em Kiev, entre o jornalista Jagorski e o ajudante S. I. Antonov, o primeiro diz: Mas antes contou as coisas de um modo diferente. Então, o ajudante responde: É que as coisas eram complexas, e por isso eles não nos impediram a concretização da acção essencial. Ao ler o trecho do diálogo fiquei perplexo com a resposta de Antonov. Se tivesse presença de espírito e um módico de sabedoria teria respondido de outra maneira. Diria: Há pouco contei as coisas de modo diferente porque elas eram diferentes. Ao contá-las segunda vez elas já se tinham transformado com a primeira narração. Se as tornar a contar, não terei outra possibilidade, para lhes ser fiel, senão dar uma nova versão dos factos. Isto, sim, seria uma resposta à altura. É certo que todos nós possuímos a crença ingénua de que factos são factos e que mal tenham acontecido eles permanecem eternamente idênticos. A crença, porém, não tem em conta os estranhos efeitos que a narrativa tem sobre os factos. Ela interfere com eles e faz com que, mesmo já tendo acontecido, eles se transformem. Se queremos que certos acontecimentos passados permaneçam o que foram, a única forma de o conseguir é não falar neles. Talvez esta minha deambulação por terrenos ínvios esteja ligada à escuridão da noite. As trevas intrometem-se no corpo de uma pessoa e a capacidade sináptica do cérebro é duramente abalada. Ou então foi o título do Volume II da Crónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, de onde retirei o excerto do diálogo, que me afectou. Não é sem enormes perigos que se estabelece relação com um livro que tem por título A Queda para Fora da Realidade. Também eu terei caído para fora da realidade. Há muito, ouço dizer.
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