Contrariamente ao habitual, o almoço deste domingo foi cedo. De seguida, um salto a uma superfície comercial. Talvez fosse melhor considerar aquilo um volume comercial e não uma superfície, pois não consta que a nossa espécie consiga viver num espaço bidimensional. Excepto o pouco tempo que demorou a aventura, não dei por nada mais que merecesse anotação. A luz que fendia a atmosfera e se precipitava pela cidade, essa sim. Uma luz melancólica que só existe nas tardes de domingo, e não em todas. Há nela uma cor desmaiada e aquele que para ela olha quase sente vontade de chorar, embora não saiba a razão. Talvez seja o próprio domingo que assim se apresenta por saber-se cada vez mais próximo da morte. Por falar em coisas melancólicas, ocorreu-me a minha vista a um sítio lúgubre. Trata-se da aventura nos meandros da justiça portuguesa. Arrolado como testemunha, lá me desloquei ao tribunal. Dirigi-me à secretaria, disse ao que ia, apresentei a convocatória (ou a intimação), para testemunhar em videoconferência, pois a sessão real passava-se em Lisboa. A funcionária sorriu. Escreveu no computador, disse que já tinha avisado o colega. Que esperasse lá fora. Pode ser no hall interior, está menos frio. Na verdade, havia gente no hall exterior à espera e ao frio. Dirigi-me ao interior, uma sala ampla, escura, com uma mesa, bancos corridos e dois ou três sofás aos cantos. Nesse hall desembocava uma escadaria ampla e quase imponente. Por ali, pensei, deve descer a justiça. Por vezes, um pequeno grupo de pessoas parava junto à mesa, trocava impressões e subia. Quanto a mim, testemunha ocasional de um naufrágio, dedilhava o telemóvel e esperava. A certa altura, entra um advogado, por acaso meu vizinho, e trocamos umas palavras. Digo-lhe ao que viera e que esperava que a coisa se despachasse rapidamente. Ele ri e responde-me que estava em mau sítio para ter pressa. Ri-me, despedimo-nos, volto a sentar-me e a dedilhar o telemóvel. Passam duas mulheres togadas, ainda relativamente novas. Oiço alguém murmurar que se trata da juíza e da delegada, mas não consegui saber quem era quem. Talvez seja isto a opacidade da justiça. Deveriam trazer letreiros para identificarmos os titulares de tão alta função. Assim me ia entretendo, até que, passada uma meia-hora bem medida, a oficial de justiça que me recebera, vem dizer-me que a advogada do meu amigo dispensara o meu testemunho. Que podia ir à minha vida. Perguntou-me se queria uma declaração de presença. Declinei e agradeci. Vim-me embora, sem que desse o meu testemunho. Ao sair pensei que aquele é um sítio que qualquer herói deve evitar. Agora está a chegar a noite dominical. O anúncio da cadeira de hambúrgueres cintila espampanante e o hospital, ao longe, cerra-se numa tristeza parda e sem fim. Vi que hoje a canção Let it be faz cinquenta anos. Hoje estou particularmente palavroso. Vou ler um artigo que fala – para desconstruir, claro – sobre os cinco mitos que persistem ainda hoje sobre os Beatles.
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