Nunca devemos avaliar as coisas pelas aparências. E o que é o título de um livro senão uma aparência? Ora, a editora Relógio d’Água publicou, no ano passado, uma tradução do livro Ararat, da poetisa norte-americana Louise Glück. Imagina-se que, caso exista alguma citação em epígrafe, ela haveria de ser do Génesis bíblico, uma referência ao Monte Ararat onde, depois do dilúvio que caiu sobre este pobre planeta, aportou a Arca de Noé, para que a vida repovoasse a Terra. Pura ilusão. A obra, de facto, possui uma epígrafe, mas do Banquete, de Platão. Diz-nos o seguinte: “… a nossa primitiva natureza era uma e nós constituíamos então um todo. Ora, é essa aspiração ao todo, essa busca incessante, que tem o nome de amor.” Nada de dilúvios e de arcas pousadas num monte, a não ser que o amor não passe de um dilúvio e os amantes devam ser recolhidos numa arca, para que a espécie seja conservada durante a tempestade. As acácias da praceta já têm algumas folhas, pequenos tufos pela ramagem. Tenho muitas coisas para fazer e pouca energia para as realizar. Esta é a verdade crua. Sobre isto não fala o Banquete nem o Génesis, nem há poema que recolha a falibilidade que se apodera dos corpos e os arrasta para a penumbra da existência. Como me acontece muitas vezes, não sei o que fazer à realidade, com a gravidade dos seus imperativos e a inutilidade que confere a tudo em que toca. O vento continua agitado, como o mundo. Talvez estejam, o vento e o mundo, cansados da nossa espécie. Lá terão as suas razões.
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