quinta-feira, 21 de abril de 2022

Título

Muitos dos títulos que Hans Kluge atribui aos seus textos na Crónica dos Sentimentos são por si só pequenas obras-primas. Este, por exemplo: Ela queria ser tratada pelo menos com a atenção que é dedicada às coisas. Está-se praticamente no grau zero da exigência de reconhecimento. Ela nem sonha em ser tratada como um ser racional entre outros seres racionais. Também terá desistido de merecer a atenção de um animal ou mesmo de uma planta. Resta que a reconheçam como uma coisa. Talvez existisse nela uma desmedida e um sonho extravagante. Muita gente dá uma atenção sem fim a certas coisas. Por exemplo, dispositivos técnicos como carros, objectos de colecção, coisas da própria natureza. Muitos de nós têm pouca capacidade de olhar para os seus semelhantes, concentrando-se quase por completo nesse domínio silencioso que são as coisas. O título de Kluge torna-se então ambíguo. Aquela mulher estava a exigir o menos possível ou, pelo contrário, a fazer uma exigência extraordinária. Não é relevante saber o que o texto diz. O importante é que o título contém em si múltiplos textos possíveis. Isto conduz-nos a um tema interessante. A relação entre o título e a obra. O título será sempre – mesmo se descritivo – uma abertura de possibilidades. A obra, pelo contrário, é o exercício em que todas as possibilidades são descartadas com excepção de uma. Quantas histórias seriam possíveis sob a designação de Os Maias? Imensas, mas o génio de Eça de Queirós liquidou-as a todas, menos uma. Talvez escrever seja isso. Escolhe-se – ainda que inconscientemente – um título e, depois, começa-se a limitá-lo, desbastando-lhe os conteúdos possível, tal como faz o escultor com a pedra intocada pela sua arte ou o pintor com o branco que o pincel vai limitando. A arte seria assim um exercício de destruição e não de criação. Destruição dos possíveis para que fica apenas um que pareça irremediavelmente necessário. A luz de quinta-feira, uma luminosidade cinzenta e ameaçadora, parece não estar a fazer-me bem. O que vale é que logo terei uma consulta. Mesmo que nada tenha a ver com os efeitos luminosos, como é o caso, só a presença da autoridade médica me disporá, por certo, a pensar em coisas menos inúteis do que títulos.

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