Não sei se os dias devoram a vida das pessoas ou se é a vida destas que devora os dias. Os mitos têm uma exactidão que a razão não consegue ultrapassar ou, tão pouco, igualar. O mito de cronos devorador dos filhos possui um rigor insuperável na descrição daquilo que o tempo faz aos seres. Trá-los à existência e devora-os sem piedade. O facto de Zeus, devido à astúcia da mãe, ter sido subtraído à fome ou ao temor cruel do pai torna manifesto que a luta entre o tempo e o ser acaba por ser favorável a este, mesmo que o tempo vá devorando cada um dos seres que vêm à existência. Também o mito bíblico da Queda parece mais útil para a compreensão dos homens que as diversas teorias racionais sobre a nossa espécie. As teorias racionais têm o condão de escavar na realidade para encontrar explicações que, talvez, se vão aproximando da verdade. A verdade do mito, porém, é de outra ordem. Não nos contam factos, não são teorias que descrevam ou expliquem a realidade. São formas de compreender a situação existencial do homem no mundo. Neles, a imaginação mostra-nos o que é, para nós, a realidade e o que somos. O tempo que me trouxe devorar-me-á. A minha finitude – é isso que a queda adâmica torna manifesto – mostra-me como sou falível. Procuro, agora, a razão por que, a esta hora do dia, fui levado a escrever sobre os mitos. Não a encontro dentro de mim, apesar do escrutínio a que me entrego, não a encontro fora de mim. Tudo o que vejo e oiço é meramente prosaico, e estamos convencidos de que os mitos emanam de um fazer poético inimigo feroz da prosa. Talvez esse convencimento seja fruto de um engano, e os mitos nasçam daquilo que há de mais trivial na vida. Olho para a rua lateral e dou-me conta da existência insólita de um sinal de trânsito de sentido obrigatório. A rua tem dois sentidos e o sinal serve apenas para quem sai de uma garagem de um dos prédios vizinhos. Parece pretender impedir que quem dali saia volte à direita, o que é manifestamente absurdo, pois a rua permite esse sentido e essa decisão não trazer qualquer risco. Pelo contrário. Imagino que alguém se enganou ou que o sinal estava ali antes dos prédios serem contruídos e se esqueceram dele. Um dia, transformar-se-á em mito, onde se narrará a nossa condição de seres submetidos a ordens absurdas.
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