Abro um daqueles livros de autores portugueses quase desconhecidos que vou comprando em alfarrabistas. Não para os ler, alguns nem tentarei. Procuro, por vezes, alguma voz desconhecida que se manifeste nas páginas do livro, uma voz que não seja a do autor. Hoje, ao desfolhar, no original, um romance de 1911, de Virgínia de Castro e Almeida, deparei-me com inúmeras anotações a lápis. O romance denomina-se Fé. O anotador ou anotadora do livro, a certa altura, indigna-se: Saúde por salut é um galicismo intolerável. A auctora deixou-se arrastar pela saude [foi assim que a autora grafou a palavra] e fraternidade da Republica. Noutro ponto, perante uma visão imanente e não transcendente do divino, anota: Isto é o velho e sediço pantheismo. Quando uma personagem proclama que Todo o bom catholico deve combater pelo triumpho da sua Egreja!, anota-se: Tambem me parece. Na página 220, surge um extraordinário comentário: Esta scena de amor entre os dois veladores do cadaver do pobre Baby é repelente. Bernardo manifesta-se o (ilegível) sem escrupulos que quer roubar a mulher ao marido e aos filhos para se satisfazer, sem respeitar a camara mortuaria de um anjinho. Gabriella é uma qualquer (ilegível) ridícula do sentimento, a resvalar para cabra. A auctora que compara um beijo lascivo a uma primeira comunhão, ou nunca beijou, ou nunca comungou. Perante a afirmação que considera o cristianismo a religião de inercia ensinando a resignação e a atonia, empurrando a humanidade para o aniquilamento, a reacção é peremptória: Isto tudo já é velho e muito batido e já foi tudo rebatido. Tudo isto é palha, não presta para nada. D’aqui a pouco surge o super homem de Nietzsche. A partir deste ponto, nas últimas cem páginas, não há qualquer anotação, talvez o super-homem não tenha surgido. Apenas, abaixo da data Julho de 1911, que assinala o fim da escrita do romance, surge uma outra anotada a lápis: 13-12-1911. Na capa do livro, porém, encontra-se a sentença final, ainda a lápis: Não presta. Talvez existissem poucos leitores em 1911, o que não será completamente verdade, mas não os podemos acusar de serem passivos. Recorra-se à frase batida de L. P. Hartley: O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira diferente.
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