sábado, 14 de setembro de 2024

Movimentos

Raymond Abellio, uma estranha personagem – na estranheza inclui-se a colaboração com o infame governo de Vichy – de um mundo que já acabou, pelo menos ele deixou de ser reeditado, o que será uma espécie de fim do mundo para qualquer autor, num dos seus livros, na parte final, faz uma meditação sobre aquilo que denomina a imobilidade suíça. A certa altura escreve: Mas o que significa esta imobilidade se Rousseau, Wagner, Nietzsche e Lenine se exaltam aqui e, a partir daqui, põem o mundo em movimento? Talvez, penso, a imobilidade acabe por gerar tal frustração que aqueles que vivem nela se exaltam e tentam arrastar, ou arrasar, o mundo. No entanto, este primeiro pensamento é, de imediato, substituído por outro. Essas pessoas seriam, por natureza, uns exaltados, incapazes de compreender o valor supremo da imobilidade. O mundo sempre se movimentou. Nunca faltou gente para atormentar os outros devido à sua ânsia de movimento. Rousseau, Nietzsche, Wagner e Lenine seriam todos eles personagens doentes, que na imobilidade suíça recuperaram forças para cada um, a seu modo, espalhar pelo mundo a patologia que o atormentava. Dir-se-á com razão que sem estes atormentados não haveria história humana. A questão, porém, é a de saber se perderíamos alguma coisa por não haver história. Hegel pensava que a história é o longo processo em que o Espírito, tendo-se alienado na natureza, sai desta e, encarnando no homem, faz uma longa viagem de retorno a si mesmo. Ora, por que razão teremos de ser nós a pagar o preço da viagem do Espírito para casa?

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Vida quotidiana

Está um calor dos diabos. Foi o que me ocorreu ao acordar de uma sesta involuntária diante do computador. A culpa, para me poupar o sentimento de culpabilidade, atribuí-a ao almoço. Deslocado na capital para tomar conta de netas, chegado pela hora de almoço, aterrei num pequeno restaurante goês. Não é que tenha sido desrazoável, mas com o passar dos anos – ou das décadas, para ser mais exacto – o que seria quase uma refeição frugal transformou-se num excesso que, mal me sentei para escrever, me arrastou para essa figura deplorável de velho a dormir sentado não diante da televisão, mas de um computador. Não sei se fui acometido por algum sonho, mas desde que não tivesse dado sinais exteriores de perturbações oníricas, a situação é suportável. O mesmo não posso dizer caso me tenha entregado ao exercício de ressonar. Estou a tentar disfarçar, a evitar conversas. Enquanto isso, continuo a ouvir Luc Ferry, um filósofo francês que tem um conjunto de minicursos ou de conferências no Spotify. São excelentes, embora num registo que hoje é pouco apreciado em Portugal, onde se dobrou o joelho à filosofia anglo-saxónica. Quem quiser ficar com uma visão global da Filosofia e não tiver problemas com o francês, não será tempo perdido. Além de cursos sobre a história da Filosofia, existem outros sobre problemas contemporâneos onde é o filósofo que fala e não tanto o professor de Filosofia, excelente, diga-se. As netas ainda não chegaram a casa, elas que estão a retomar o ritmo escolar das sextas-feiras. Acabadas as aulas, programas com as amigas. Não tardará e dispensam a presença dos avós. Para piorar a situação, o mais novo já vai no segundo dia de aulas. Quando fizer seis anos, já levará dois meses de submissão à realidade. A realidade, porém, é que continua um calor dos diabos.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Ignorância

Abro ao acaso uma obra de Herberto Helder e leio A cerejeira é uma aparição, / a febre devora as macieiras, todas / as árvores se consomem de sonho. São construções vivas, focadas no silêncio, suspensas na luz. Penso que também sou uma aparição, mas ao contrário da cerejeira não me tocou o esplendor de florescer. E podia ainda pensar-me macieira febril ou imaginar que faço parte desse mundo vegetal e sou uma das árvores consumidas pelo sonho. Não sou também atacado pela febre ou por sonhos, dos piores, daqueles que se sonham acordado, suspenso não da luz, mas da inacção? Não é o silêncio a minha casa, a construção mais viva que ergui? Talvez eu seja uma árvore que se perdeu da floresta a que pertencia. Conheço casos, e não poucos, de pessoas que são anjos caídos na Terra. Outros, ainda mais numerosos, de homens e mulheres que deveriam ser um animal, um cão, um gato, mesmo um hipopótamo, mas que, por um equívoco, tomaram a forma humana. Não sei se sou um homem sonhado por uma árvore ou uma árvore que sonha ser homem. A ignorância tomou conta de mim e leva-me pela mão.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Ocultações

Hoje fui reler o que escrevi ontem, coisa que muitas vezes não faço. E devia. Numa releitura rápida descobri coisas que não deveriam estar escritas como o foram ou pontuações destrambelhadas. A leitura após a escrita corrige alguma coisa, mas não é suficiente para vencer a cegueira de quem escreve. Esta é uma cegueira muito especial, pois é uma cegueira que vê o que não está lá, mas é incapaz de ver o que está. Poderia adoptar outra estratégia. Escrever o texto do post e deixá-lo a repousar durante um tempo, para o ler de novo depois do descanso e introduzir as correcções devidas. Isso, porém, entra em conflito com a minha natureza e com a minha gestão do tempo. Tarefa começada é para acabar o mais rapidamente possível. Outra solução era deixar-me destes textos, o que tinha a feliz consequência de eliminar todos os erros, enganos e equívocos, todas essas maldições começadas por “e”. Não tenho tempo para pensar nisso. Um súbito silêncio abateu-se por aqui. São cinco da tarde e a máquina que me assombra desde ontem calou-se. Terá sido o fim da função diária ou o operador foi apenas fumar um cigarro e beber um café? Não tarda, saberei. Acabei de reler o que tinha escrito. Descobri que no lugar de texto tinha escrito testo. Fico a meditar nesta troca. É possível que o dedo se tenha equivocado ao bater no teclado. O “s” está acima do “x”. No entanto, há uma explicação mais interessante, de índole psicanalítica. É um acto falhado que denuncia a minha intenção de tapar (esconder) qualquer coisa. Parece que a máquina se calou definitivamente. Assim seja.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Assombrar

Passam-se coisas estranhíssimas no cérebro humano. No caso, no meu. Há uma palavra que sempre que quero utilizá-la não me lembro qual é, mas sei sempre a palavra francesa para o mesmo conceito. Então, vou ao dicionário Francês-Português e digito – é um dicionário online, já não posso com os de papel – a palavra francesa e acedo à portuguesa. Um assombro. A palavra é mesmo essa, assombrar. Tenho de ir ver o significado de hanter. Não faço ideia por que motivo o meu inconsciente censura assombrar, mas deixa vir incólume à consciência hanter. Queria falar daquilo que me está a assombrar e estava, mais uma vez, em apuros. A assombração não vem de qualquer fantasma, mas de uma máquina que, na rua, regurgita um barulho demoníaco, enquanto faz subir e descer pessoas que cuidam das paredes exteriores do prédio. Ainda não percebi o que estão a fazer, mas o barulho e o cheiro de um qualquer produto sintético assombram-me e introduzem um factor de distracção nas minhas tarefas. Os piores fantasmas, os mais malignos, quero dizer, são estes dispositivos mecânicos que decidem reproduzir, ampliando, o barulho dos infernos. O que me inquieta neste momento – a máquina calou-se – é não saber a razão por que nunca me recordo da palavra assombrar.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Diversificação das fontes

Devemos diversificar as fontes. Acabei de ler o Mistério dos Três Corpos, de Liu Cixin, primeiro volume da trilogia O Passado do Planeta Terra. Para cumprir o imperativo da diversificação não vou passar para o segundo romance, A Floresta Sombria, mas deixar por uns tempos a ficção científica e mergulhar na literatura sobre a segunda Grande Guerra, com Stalinegrado, de Vassily Grossman, o romance que antecede a obra-prima de Grossman, Vida e Destino. O que é notável em Grossman é que consegue – pelo menos naquilo que li dele e também no que li na crítica – manter uma elevadíssima qualidade literária, apesar de estar submetido a um mundo político que era impiedoso no controlo da arte. Talvez o caso mais extraordinário desse controlo seja o do compositor Dmitri Shostakovitch. O facto de os regimes totalitários darem uma atenção muito especial ao controlo da arte e de estarem sempre extraordinariamente preocupados em separar a verdadeira arte da arte degenerada são sintomas de que na arte se joga qualquer coisa de decisivo para a humanidade. Não se sabe que coisa decisiva é essa, mas que ela existe está atestado não apenas pelo interesse que a humanidade tem nela como na necessidade de controlo que o poder despótico sente. Hegel via na arte dos gregos uma manifestação sensível do Absoluto, e talvez seja essa presença, sob mil disfarces, do Absoluto que toca os homens e desespera os impiedosos pastores do rebanho humano. Talvez estes pastores não suportem a diversificação das fontes, pois é o anúncio da diversificação das realidades. Não tarde e vou caminhar junto ao rio, agora que o mar ficou longe. Quem não tem cão caça com gato, eis mais uma manifestação da minha cultura ao gosto popular.

domingo, 8 de setembro de 2024

Algoritmos inadequados

Logo de manhã irritei-me com a balança. Não gostei do peso que me devolveu quando a pisei. Talvez a tenha insultado, já não me recordo. Consultei os registos e descobri que, afinal, o caso não era para tanto. Um aumento de trezentos gramas, nem chega a ser um verdadeiro aumento. Talvez lhe tenha pedido desculpa, mas também não tenho a certeza. Concluí mesmo que, afinal, as férias nem foram devastadoras. Para celebrar essa não devastação ofereci-me uns livros. Um deles foi um romance da escritora austríaca Marlen Haushofer, A Parede. São 292 páginas de texto, com a particularidade de não terem cortes. Não há capítulos, pontos ou qualquer outra estratégia que permita ao leitor descansar. Na contracapa, encontra-se uma bela citação do romance: Por vezes, é como se a floresta começasse a ganhar raízes dentro de mim e usasse o meu cérebro para conceber as suas ideias ancestrais e eternas. Uma chamada. Um amigo do outro lado. Conversamos um pouco até que ele me diz que um outro amigo, fomos todos colegas de faculdade, está com pouco mais de cinquenta quilos, o que tendo em conta a altura dele é muito preocupante. Qualquer coisa nos pulmões se desarranjou e começou a multiplicar-se, segundo um algoritmo inadequado à condição humana. Haverá alguma esperança, oiço. Espero que sim. Começo a ficar cercado por pessoas em que qualquer coisa se desarranja e se multiplica segundo algoritmos inumanos. Não vale a pena uma pessoa irritar-se com a balança.

sábado, 7 de setembro de 2024

Fantasias

Nos últimos tempos tenho dedicado algum tempo a ouvir, mais do que a ver, uns vídeos produzidos por nostálgicos de l’Ancien Régime. Sonham com a sociedade estratificada que começou a colapsar em 1789 e cujo estertor continuou até à primeira Grande Guerra. Vociferam – por vezes, com argumentação esteticamente interessante – contra o igualitarismo, o progressismo e todas as maleitas que o Iluminismo e a Revolução francesa terão trazido ao mundo, que seria, antes disso, um paraíso. O mais curioso é que muitos destes pacientes da nostalgia pelo Ancien Régime, caso vivessem sob ele, não teriam sequer direito à palavra, quanto mais à nostalgia. São plebeus que se sonham os aristocratas que nunca seriam, são os homens livres que, no mundo que sonham, nunca seriam. Fantasiam com elites a que imaginam pertencer, caso o mundo fosse outro e não o que é, embora estejam num mundo que, devido ao tenebroso igualitarismo que zurzem, os não impede de fazer alguma coisa para aceder a um qualquer género de elite. Este tipo de pensamento esconde duas coisas. Por um lado, esconde – melhor, disfarça e mal – uma vontade de poder enorme, de um poder que eles justificariam pela vontade divina. Por outro, oculta uma real impotência em lidar com as coisas tal como surgem na vida. Num mundo em que existe uma coisa como a Inteligência Artificial, num mundo em que a espécie humana adquiriu o poder de se reconfigurar através da intervenção técnica, sonhar com as categoriais sociais e mentais do Ancien Régime não será diferente de um adulto sonhar em retornar à vida feliz da infância, caso a tenha tido, ou imagine que a tenha tido. Há mesmo quem tenha extraordinários programas de resistência, como, por exemplo, escolarizar os filhos em casa, para que eles não sejam contaminados pelo tempo que lhes foi dado viver.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Imbecilidades

A semana, a primeira deste Setembro, está a acabar. Hoje termina a semana útil e amanhã termina a inútil. O mais curioso é que todas as semanas começam com um dia de descanso, para terminarem num dia igualmente de descanso. Há nisto uma mensagem subliminar. A utilidade dos dias úteis está envolta pela inutilidade do primeiro dia, o domingo, e a inutilidade do último dia, o sétimo ou o sábado. A mensagem é que toda a utilidade é inútil, embora tenhamos a sensação estranha de que toda a inutilidade, nos nossos dias, foi capturada pelo útil. Enquanto escrevo estas coisas sem nexo oiço um grupo musical a ensaiar. Não consigo perceber se os ensaiadores estão na escola aqui ao lado ou se, mais longe, na praça central da cidade. Seja onde for, não preparam nada que torne a existência – refiro-me à minha, a dos outros é corveia que lhes compete – mais agradável. Entretanto, o ensaio parou, mas isso está longe de ser uma notícia tranquilizadora. A falta de assunto para o dia de hoje está directamente ligada ao estado catatónico em que me encontro. Há pouco li que, segundo a abalizada opinião de uma comentadora televisiva, há pessoas, e ela conhece-as, que ficaram imbecis desde que o Facebook começou. A sua actividade, dessas pessoas que ficaram imbecis, é de postar fantasias sobre elas próprias. Ora, também este narrador posta fantasias sobre si próprio – um si próprio que também é uma fantasia – e não o faz no Facebook. Isto significa que se pode ser imbecil em muitos lugares. Contudo, há uma coisa em que a comentadora está equivocada. As pessoas não ficaram imbecis. Já o eram, mas não tinham espaço público para o mostrar. Falo a partir da experiência pessoal. Não foi a escrever estas coisas que por aqui escrevo que fiquei imbecil. Já o era. Agora, posso tornar isso público ou semipúblico, pois sempre sou um imbecil anónimo, embora não frequente, mas talvez devesse, as reuniões dos imbecis anónimos, pois nunca se sabe quem lá se pode encontrar.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Angústia, decepção e tormento

No capítulo 28, se é que se podem chamar capítulos aos pontos em que a obra se divide, de O passo da floresta, Ernst Jünger escreve: É angustiante o modo como os conceitos e as coisas mudam o seu aspecto muitas vezes de um dia para o outro, produzindo consequências diferentes das esperadas. O referente do excerto é completamente indeterminado. Que conceitos e que coisas? A frase seguinte dá uma pista: Esse é um sinal da anarquia. A pista pode ser, para muitos leitores, decepcionante. Afinal, está-se no campo da política, onde estamos solidamente habituados a que as coisas e os conceitos mudem de um dia para o outro e que as consequências sejam as mais inesperadas. Aliás, o campo da política é o território da mobilidade. A frase de Jünger, fora do seu contexto, é bastante promissora. Imaginemos que as coisas, as mais triviais, mudam de um momento para o outro. Por exemplo, o copo que tenho à minha frente e que vou deixar na secretária. Amanhã, ao sentar-me a essa mesma secretária, o copo é uma careira onde se transporta a colecção de cartões com que um homem moderno deve andar acompanhado. Seria uma coisa muito mais exaltante do que as mudanças nas instituições políticas. Não menos entusiasmante seria a anarquia conceptual. Por exemplo, o conceito de círculo – não, não me estou a referir à palavra círculo, mas à representação geral e abstracta – deixar de representar uma porção de plano limitado por uma circunferência e passar a representar, num dia, a medida do afastamento de duas semi-rectas que têm a origem num mesmo ponto – o vulgar, ângulo – e, num outro, representar um ser vivo microscópico, procariota, desprovido de sistemas de membranas internas, a que agora damos o nome de bactéria. Ora, se Jünger, um autor de que gosto, se sente angustiado pela alteração das coisas e dos conceitos ligados ao mundo da pólis, o que se sentiria ele se essas mudanças se dessem nos outros domínios da realidade, por norma mais conservadores e com uma forte inclinação para a estabilidade. Viveria um tormento, imagino. Tormentosa também é a leitura do livro. A tradução portuguesa tem 101 páginas, mas as letras são tão pequenas que cada passo dado na floresta é extremamente cansativo.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Flatus vocis

Não é raro deparar-me com coisas escritas por mim há uns anos e ficar perplexo não por aquilo estar escrito, mas por aquilo que fui e que me levou a escrever o que escrevi. Temos uma inclinação para a identidade, isto é, para nos pensarmos como sendo os mesmos numa linha contínua no tempo. A memória socorre-nos na presunção dessa identidade. Ora, muitas das coisas que se escrevem não cabem no grande armazém da memória. Se as encontrássemos num sítio que não reconhecemos como nosso, não as identificaríamos como tendo a nossa autoria. Eu sou aquilo de que me lembro, mas há muita coisa que, apesar de ter sido, não cabe na montra da identidade. Posso dizer com propriedade eu não fui aquilo. Uma identidade fundada na memória é uma coisa frágil. Ora, em que outra coisa podemos fundar a nossa identidade a não ser na memória? Imagino que a identidade seja um flatus vocis, um termo que tem som, tem sentido, mas que não se refere a nada, e talvez isso seja o melhor que nos possa ter acontecido.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Influenciar e dominar

Pega-se num livro e olha-se para a capa. Suja-a a declaração O Bestseller Internacional Traduzido em Mais de 20 Idiomas. Para a coisa não ficar por aí, chapa-se A Arte de Influenciar Pessoas e Dominar Multidões. O livro em causa foi publicado em 1895 e foi discutido em meios académicos. Ser traduzido em mais de 20 idiomas não é nada de excepcional e o objectivo do livro não é ensinar qualquer arte, e muito menos a de influenciar pessoas e dominar multidões. É um estudo que pretende perceber determinado fenómeno, que foi discutido e criticado, como acontece a qualquer estudo académico. Que o tratemos assim é prova de que o provincianismo continua a fazer parte da ambiência mental dos portugueses. Parte da ideia de que haverá compradores para a obra não pela sua qualidade científica, mas porque esses compradores estão desejosos de influenciar pessoas e de dominar multidões. Tudo isto é, além de infantil, muito cansativo. Vou fazer uma caminhada para desintoxicar.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A pesada carga

A história dos europeus é, por vezes, assombrada pela luz que chega da antiga Grécia. Esta assombração, porém, não provoca o terror, mas uma nostalgia que parece inultrapassável, como se a velha Hélade fosse, para nós homens de uma era sombria, uma idade de ouro, a nossa autêntica idade de ouro. Acontece que a nostalgia pode tornar-se pesada, muito pesada, e que, de forças enfraquecidas, não suportemos o peso sobre os ombros. Talvez por isso, nos estejamos a afastar desse modelo, sentido como tirânico. A sensação que se tem é que estamos apostados em cortar o fio de Ariadne que nos permite retornar à luz e à vida, para nos perdermos no labirinto que, como Dédalos inconscientes, construímos. Esta sensação pode ser apenas o resultado de este ser um narrador envelhecido, que já não descortina a luz do mundo. Isso seria o melhor que poderia acontecer, mas duvido. Os sinais desse esquecimento da idade do ouro, dessa conjugação de arte, pensamento e política, são tão evidentes que parecem corroborar que alijámos dos ombros a pesada carga que a perfeição grega sobre nós fazia cair.

domingo, 1 de setembro de 2024

Realidade e repetição

O último dia de férias. Amanhã, retorno à realidade, com a sua procissão de coisas inúteis. Para dizer a verdade, só retorno porque decidi fazê-lo. Um acto do meu livre-arbítrio. Sempre se poderá argumentar que esse acto livre não passa de uma ilusão. Eu estou determinado a realizá-lo por um conjunto de causas que desconheço, e é essa ignorância que me oferece a doce ilusão de que aquilo que faço depende da minha escolha. Isso foi pensado por um judeu de origem portuguesa, Baruch Espinosa. Por interessante que o pensamento de Espinosa seja, eu não partilho da sua falta de fé no livre-arbítrio. A minha fé – qualquer posição sobre o livre-arbítrio, por excelentes que sejam os argumentos que se possua, será, em última análise, uma questão de fé e não de prova racional – a minha fé, dizia, é de que possuo livre-arbítrio e que, por vezes, escolho aquilo que faço, podendo fazer uma coisa diferente. Por exemplo, poderia ter decidido, em vez de escrever isto, ir a uma esplanada, beber uma cerveja e contemplar o sol a afogar-se no mar. Nada me impedia e tenho várias esplanadas, com vista sobre o pôr-do-sol, mesmo à mão de semear, embora na areia e no mar nada se semeie e eu não tenha alma de agricultor. Ao fim de várias décadas de convívio com a minha alma, ainda não compreendi que tipo de alma é que me coube em sorte. Talvez seja uma alma sem tipo, como, no romance de Musil, o homem é sem qualidades. Hoje, ao telemóvel, tive uma longa conversa com o padre Lodo, mas não discutimos o problema do livre-arbítrio, uma das coisas em que eu e o velho jesuíta meu amigo estamos de acordo. Explicou-me, longamente, por que razão, este ano, não esteve por aqui, onde a Companhia tem um belo local de férias. Ao ouvi-lo pensei que estava a repetir-se, mas, de imediato, reconheci que também me repito e sou mais novo. Com o avançar da idade temos uma tendência para a repetição. No meu caso, parece haver uma predilecção pela anáfora. Imagino que o uso da repetição seja uma luta contra o desmemoriamento. A realidade aproxima-se, mas um dia hei-de esquecê-la. Não haverá anáfora que resista.