Há palavras que não querem dizer nada. Julgo que foi Roland Barthes, mas o tempo corroeu a certeza, que chamou a atenção para a não significação do adjectivo agradável. Dizer que um romance ou um concerto são agradáveis não diz nada sobre eles. É uma forma de não dizer aquilo que se sente ou pensa, para evitar um inútil conflito. Há pouco li, num comentário a uma peça musical, outra expressão que não quer dizer nada. Uma música inspiradora. No entanto, quem a escreveu tem a inocência que o presumível Barthes não tinha. O comentarista julga mesmo que é um elogio fazer notar que a música é inspiradora, pois nada tem a dizer sobre ela e encontrou ali um refúgio para a sua necessidade de exprimir uma opinião. Deveria haver um dicionário de palavras que não querem dizer nada. Seria de grande utilidade para a educação da urbanidade das pessoas. Existe quem julgue ser de grande mérito dizer a verdade – isto é, aquilo que acha que é a verdade – e não hesita dizer coisas desagradáveis, sem que isso contribua para uma atmosfera mais saudável. Acaba sempre por se justificar, eu cá não tenho papas na língua. Quem a ouve sente pena pela falta das papas ou pela existência da língua. Educar as pessoas para a urbanidade não é um exercício de cinismo, como se poderá supor. O que cada um acha o que é a verdade e aquilo que esta é são coisas muito diferentes. Se o assunto não for decisivo, optar pela urbanidade e usar uma palavra que não significa nada torna o mundo mais aprazível. Alguém pode dizer que este texto é agradável ou inspirador. Isso não quer dizer nada sobre ele, mas a atmosfera fica menos poluída. É tudo uma questão de poluição. Agora, porém, terei de ir ler um conjunto de coisas que não posso dizer que sejam agradáveis e inspiradoras.
quinta-feira, 8 de julho de 2021
quarta-feira, 7 de julho de 2021
No labirinto da saudade
Hoje fui à capital de distrito. O sítio que me esperava tem, há muito, novos caminhos, mais rápidos, para lá chegar, mas como é hábito fui por aqueles que conheço desde a infância. Os outros são para mim meros atalhos disfarçados de ruas modernas e não possuem nada que justifique a passagem por eles. Não será descabido dizer que fui fiel à tradição, a uma tradição pessoal. Pessoas mais objectivas dirão, não sem razão, que sou um conservador. Custa-me ver aquelas pessoas que chegadas a uma idade razoável continuam a depositar uma fé inabalável no futuro. Ora, a única coisa certa que o futuro trará é o facto de não estar cá, de não haver lugar para mim. Nem acho que isso seja um mal ou uma injustiça. É a natureza das coisas, há que aceitá-las no que são e evitar dourar a pílula com expectativas que nunca se poderão comprovar. Se olhar para o passado, constato que muitas coisas mudaram, tornaram-se melhores, muito melhores. Isso não significa, porém, que continue a acontecer. Quanto à fé no futuro, o melhor será suspender o juízo e evitar louvar o que não se conhece nem conhecerá. Seja como for, gosto sempre de ir à capital de distrito. Não é que seja uma cidade esplêndida e cosmopolita, não é, mas, de alguma maneira, faz parte do meu passado. Hoje devo ter acordado com alguma alteração neuronal. Não tarda e dou entrada no labirinto da saudade. O melhor será marcar consulta.
terça-feira, 6 de julho de 2021
Almotolias e traduções
Talvez ainda existam almotolias, mas por certo os serviços de manutenção dos parques infantis da cidade não as possuem. Caso as possuíssem, já teriam oleado, agora que estamos em pleno Verão, as roldanas dos baloiços. Então, as crianças baloiçar-se-iam sem o ruído opressor do ferro a ranger na fricção com outro ferro, como se a matéria fosse viva e tivesse estados de alma e vontade de chorar. Fora eu compositor e escreveria uma peça, talvez uma peça para violino, piano, fita magnética e roldanas. Como não o sou, o mundo fica poupado ao meu desvario, evitando experiências insanas nascidas numa mente ociosa. Também poderia ser mecânico e ter em casa uma almotolia. Pegaria nela e, pela calada da noite, olearia o ferro para descanso dos ouvidos de quem vive por aqui. Falta-me, porém, o talento para a mecânica, não tenho almotolia, nem para o azeite. Ambas as palavras têm origem árabe – al-motoliiâ e az-zait – como muitas outras. Consta que as línguas têm menos preconceitos rácicos que aqueles que as falam. A tarde avança irrequieta. A tradução de um verso de Eliot deixou-me inquieto. O poeta escreveu The only wisdom we can hope to acquire. O tradutor verteu para O único saber pelo qual podemos ter esperança. Eu traduziria por A única sabedoria que podemos desejar, deixando cair o acquire, pois todo o desejo traz nele o impulso para a aquisição do desejado. Bem, perguntar-se-á, que sabedoria é essa. Eliot responde: Is the wisdom of humility: humility is endless. O tradutor transforma a sabedoria da humildade, que o poeta propõe como um fim em si mesmo, num saber instrumental que serve para poder ter esperança. Com isso perde-se o essencial, a ideia de a humildade não ter fim. Sendo um fim e não um instrumento ela é infinita. Isto, porém, são especulações de quem tem de ocupar espaço com palavras. Amanhã ocorrer-me-á algo mais interessante, assim o espero. Uma criança chora, alguém acelera uma moto e há dias que não vejo anjos nos telhados dos prédios envolventes. Terão ido de férias?
domingo, 4 de julho de 2021
Quartéis e lustros
Um quartel. Quantas pessoas ainda saberão o que é um quartel ou que este contém cinco lustros. Foi precisamente há um quartel que nasceu a ovelha Dolly, o primeiro animal clonado. Isto terá entusiasmado imensa gente e também assustado outra tanta. O susto nasce da possibilidade de se clonarem seres humanos. Não tenho dúvidas que haverá quem, se pudesse, clonava-se. Aliás, encheria o mundo de clones seus. Por mim, dispenso ser clonado. Para desgraça, já basto eu. Por outro lado, ainda continuo a achar mais interessante o velho método de fabricar bebés humanos. Talvez a técnica, um dia, se torne mais precisa e seja mais eficaz produzir seres humanos por manipulação genética, uma espécie de propagação por mergulhia (como me fui eu lembrar de tal coisa?), de que reproduzir segundo a tradição com todo o desgaste de energia e de emoções que o caso ainda exige. Com a idade as pessoas tornam-se conservadoras. Também hoje faz 245 anos, nove quartéis e quatro lustros, que as treze colónias declararam a independência do império britânico, dando origem aos EUA. Talvez haja uma relação entre uma coisa e outra, é possível que os americanos quisessem ser uns clones dos britânicos, independentes e imperiais como eles, mas isto é especulação. Eu gosto muito da América, mas gosto ainda mais de não ser americano, coisa em que não tenho qualquer mérito. Ouvem-se por aqui as sirenes, mas nada disso tem a ver com a clonagem da Dolly nem com o Dia da Independência. É um velho hábito usado por ambulâncias, carros da polícia e de socorros a náufragos.
sábado, 3 de julho de 2021
Trivialidades
O sol, no sítio para onde fugi, nasceu tarde, para dizer a verdade ainda não nasceu por completo. Durante grande parte da manhã manteve-se oculto por uma muralha densa de nuvens e, mesmo agora, só a espaços espreita o que se passa em terra. Caminhei durante seis quilómetros, a maior parte do tempo envolto numa névoa vinda do mar. O farol de um dos molhes não era visível a cem metros e os barcos que saíam do porto e passavam diante dos meus olhos eram apenas esboços, navios-fantasmas, qualquer coisa vinda de um mundo desconhecido. Num poema de Louise Glück leio o verso Um dia seguia-se continuamente a outro. Será legítimo reconhecer como grande poetisa quem escreve um verso tão trivial, perguntará alguém que espera da poesia um festival de fogo-de-artifício. Qualquer dia se segue a outro, numa caminhada contínua, mas será que vemos isso? Será que sentimos até ao fim o enigma que essa trivialidade encerra? Qualquer coisa de inquietante – uma inquietante estranheza, para citar Freud – se insinua na familiaridade aparente do verso. Os sábados, oiço dizer, não se devem gastar com conversa tão soturna. Aquiesço e penso que os sábados se seguem continuamente às sextas-feiras. O sol continua em processo de libertação das nuvens que o escondem. Não tarda e mostrar-se-á exuberante, talvez porque hoje seja mais um sábado que se segue a uma sexta-feira.
sexta-feira, 2 de julho de 2021
Acção paralela
Nos poucos cronistas de jornal que ainda leio conta-se um que deu à sua coluna semanal a designação de Acção Paralela. Não vou aqui contar a história da Acção Paralela, nem tão pouco especular sobre as razões que terão motivado tal escolha pelo colunista. Não o conheço e as suas motivações não me interessam. Digo apenas que é uma citação literária de um dos elementos da trama romanesca de O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. Não parece, esta informação, particularmente motivante para levar quem nunca leu o exorbitante romance a lê-lo. Bem, há quem pense que não se trata de um romance, mas de um anti-romance, talvez influenciado pela Física que à matéria opôs a antimatéria. Já me estou a perder no que ia dizer. Disse que o romance é exorbitante, pois, apesar de inacabado, ou talvez por isso, tem largas centenas de páginas. Quem gostar de literatura, eis uma obra excelente. Quem gostar de entretenimento, esqueça. Há por aí muitos livros venturosos de autores aventurados. Musil faz parte de um quinteto que abriu o romance à modernidade. Desse grupo constam Kafka, Broch, Joyce e Proust. Isto, todavia, não interessa a ninguém, ainda menos se se está a entrar no fim-de-semana, o qual é uma espécie de acção paralela à semana útil – embora, não se perceba em quê – propriamente dita. Caso eu tivesse talento e propensão para romancista, haveria de escrever um romance com o título Acção Paralela, no qual haveria de ficcionar a minha natureza de narrador sem qualidade. Julho entregou-se ao calor. Talvez este narrador se devesse entregar a uma psicanálise do fogo.
quinta-feira, 1 de julho de 2021
Arremedos
Hoje lá me submeti a um teste à COVID-19. Faz parte da vigilância que com que se pretende trancar a casa roubada. Não é que seja uma provação, nem nada que se pareça, mas já era altura de encontrarem outro método para recolher os indícios do crime. Se não se deve meter os dedos no nariz, também será pouco elegante enfiarem uma zaragatoa por ali adentro e escarafunchar, fazendo-a rodar para um lado e para outro. Pior que a impressão física sentida é a perspectiva estética do evento. Há que manter a compostura mesmo numa coisa como essa. Passam das nove e meia da noite e ainda há uma luz crepuscular. O céu tem uma cor de cinza quase a cair para o chumbo. Não tarda, estará negro. Então, dir-se-á é de noite. Alguém poderá responder já não há noites como as de antigamente. Essas, sim, eram noites a sério, negras, a via láctea bem definida. Agora, há tanta luz na cidade que já nem se vê a noite. É tudo um arremedo. Ainda haverá gente que diga arremedo? Vindas da rua, umas gargalhadas denunciam um convívio jovial. Pelo tom, parece que os convivas se arremedam uns aos outros. É de noite. O teste deu negativo, o que me permite pensar no fim-de-semana.
quarta-feira, 30 de junho de 2021
Uma equação convincente
Adeus Junho, amanhã já não estarás cá. Foi, apesar de tudo, um Junho cordato, contido, não se entregou a grandes exercícios hiperbólicos. Cumprido o seu papel, para onde irá? Para lado nenhum. Esse é o lugar que o espera. Veremos se Julho virá virtuoso ou se o vício tomará conta dele. No chão, arrumado a um canto, está um caixote fechado, cheio de livros. Ando há meses para decidir onde os colocar, mas ainda não cheguei a qualquer conclusão. Imagino que não os deveria ter comprado. Talvez sofra de uma adicção. Há dias comecei a pensar em pôr à venda parte dos meus livros. Não os vou ler, falta-me o tempo e a disposição. Ainda não ganhei coragem suficiente para me desprender de certos coisas, mesmo que elas me sejam inúteis. Por exemplo, quanto me renderia a bela edição espanhola, um volume de capa dura, de Parerga y Paralipómena, de Schopenhauer. Está esgotada e a reedição à venda está dividida em dois volumes, com o preço de 37 euros cada um. Talvez me rendesse 25, apesar de estar como nova. Abro a obra ao acaso e leio: Acerca da harmonia das esferas, dever-se-ia considerar que acorde nasceria se se combinasse uma sequência de sons em proporção às distintas velocidades dos planetas, de tal maneira que Neptuno fizesse de baixo, Mercúrio de soprano. Esta equação, em que o x seria o acorde a nascer, deixa-me extasiado. Desisto de pensar em vendê-la. Olho-a com reverência, fecho-a com cuidado e deito-a no seu lugar na estante. Espero que não acorde e não descubra o que me passou pela cabeça. Também os livros são seres susceptíveis. Talvez Julho me deixe abrir o caixote e arrumar os livros num lugar que hei-de encontrar.
terça-feira, 29 de junho de 2021
Juramentos e maçadas
Ocorreu-me esta manhã que o problema estaria no célebre juramento de Hipócrates. Talvez os médicos, seja qual for a sua especialidade, tenham jurado nunca chegar a tempo às consultas. Parece-me uma explicação sensata. A consulta é marcada para as dez horas da manhã, mas, devido ao juramento, o médico só chega ao consultório pelas dez e meia ou onze horas. Isso irritava-me, pois não compreendia o motivo. Hoje, porém, ao perceber a verdadeira razão dos atrasos, não me irritei, pois creio que todos devem cumprir aquilo com que se comprometem. E se chegar atrasado faz parte do juramento de Hipócrates, então é bom que nenhum médico chegue à hora marcada. De resto, a consulta não tem que contar, apenas uma rotina. O mais desagradável era o vento que corria pelas ruas. Sob um sol quente, dançava um vento frio. Este tinha a vantagem de amenizar a temperatura, mas tornava desagradável uma pessoa andar vestida de Verão. Ontem, ao fim da tarde, disse já se notam os dias mais pequenos. Que exagero, ouvi em resposta. Talvez ainda não se note, mas as noites continuam a crescer. Ora, se as noites crescem, os dias diminuem. O país, ao que consta, encontrou outro motivo de entretenimento, depois do futebol ter dado em águas de bacalhau, seja o que for o que isto signifique. Uma história policial. Precisamos sempre de qualquer coisa para evitar olhar para a realidade, a qual, diga-se, é uma grande chatice. Talvez devesse dizer a realidade é uma grande maçada.
segunda-feira, 28 de junho de 2021
Moderações metafísicas
Acabei de ter, segundo a escala de Álvaro de Campos, um momento metafísico. Dizia ele – bem, não era o Álvaro de Campos que o dizia, pois nem sequer tinha dado entrada no clube dos nascidos, mas o Fernando Pessoa que o escrevia – Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Acabei de comer uns quadrados de chocolate, portanto penetrei nesse campo obscuro da metafísica. Dito isto, quero registar a minha discordância com o Álvaro de Campos ou com o Fernando Pessoa, ou com os dois. Para mim, nozes também são metafísica. Assim como batatas fritas, aquelas dos pacotes. É verdade que estas metafísicas não são idênticas. As nozes são uma espécie de metafísica da natureza, o chocolate, apesar das suas gradações, é claramente uma metafísica do espírito. Já as batatas fritas de pacote fazem parte da metafísica, embora eu não saiba de quê. Talvez sejam uma metafísica ao gosto popular. Todas estas metafísicas exercem sobre mim uma atracção, que não é fatal porque tenho uma certa tendência para a moderação, coisa fora de moda há muito. Fica sempre bem uma pessoa ser radical e eu fui-o há décadas, mas aquilo não calhava bem com o meu espírito e moderei-me. Nada em excesso, mesmo o chocolate, mesmo as nozes, mesmo as batatas fritas. Portanto, na metafísica sou um moderado. Uma tristeza.
domingo, 27 de junho de 2021
Tipologias romanescas
Talvez porque tenha tido, durante a noite, um período de insónia, que aproveitei para avançar na leitura de um romance, de manhã dei comigo a fazer uma espécie de taxinomia dos romancistas. Há os que escrevem para agradar ao público, quanto maior for este, melhor para eles. Há os que escrevem para agradar à crítica, hoje quase toda ela universitária. Estes dois tipos de escritores, apesar de terem em comum a inclinação para agradar e o gosto da glória, são diferentes. Os primeiros cultivam narrativas com enredo, com pouca atenção à inovação formal. Os segundos cultivam a inovação na forma que há-de fazer ressoar os encómios da crítica, embora desprezem, não poucos, o enredo, o contar uma história. Existirão outros, porém, que não querem saber da opinião nem do público nem da crítica. Estão comprometidos com o enigma da acção e da paixão e com a verdade que se esconde no agir e no sofrer dos homens. Não escrevem para agradar nem para desagradar, mas para descobrir. A sua poética é uma poética da descoberta, uma heurística. Depois, estes pensamentos desvaneceram-se, fui caminhar perto do mar e apanhei uma chuvada, ligeira. Aí os meus pensamentos eram muito mais prosaicos. Como chegar depressa a casa? Ou então mais imprecativos, onde está o raio do sol? Depois, a chuva foi-se levada pela nortada, o sol chegou e assentou arraiais, mas o pensamento não voltou a interessar-se pelo tipo de escritores. Na verdade, todo aquele pensamento era absurdo, mas isso é o pão nosso de cada dia, pensar coisas absurdas. O domingo cresce e o almoço será tardio, esta é a minha realidade.
sábado, 26 de junho de 2021
Sábados difíceis
Hoje comecei o dia com uma caminhada de seis quilómetros. Não havia sol nem vento e, por onde passei, poucos eram os que por lá andavam. Os sábados convidam as pessoas a manhãs recatadas, foi o que pensei. Depois, o dia expandiu-se, passou a fronteira do meio-dia e deixou-se cair na armadilha da tarde. As notícias, porém, não distinguem os dias úteis e os inúteis, o vírus também não, embora tenha um talento especial para a metamorfose e um gosto acentuado pela alteridade. Deveria evitar, dizem-me, projectar na fonte do nosso pesar características humanas, mas se tudo o que nos acontece e nos envolve é sentido e compreendido por faculdades humanas, não há outro remédio que não seja contaminar tudo isso, vírus incluídos, com as nossas projecções. Basta olhar para uma paisagem para que ela se humanize. Isto não significa que se torne melhor ou pior, mas que toma as características de quem para ela olha. Se isto não é verdade, poderia ou deveria sê-lo. Há sábados em que é muito difícil encontrar motivos para escrever. Cumpro ordens, apenas, e isso é tudo o que eu, pobre narrador, posso dizer em minha defesa. Talvez devesse ter sido mais frugal ao almoço, talvez.
sexta-feira, 25 de junho de 2021
Prelúdio e fuga
Para as três da tarde estão anunciados 37 graus. A partir de agora o calor vai entranhar-se nas paredes e a pequena cidade transforma-se numa antecâmara do inferno. Os pássaros meus vizinhos, todavia, parecem estar no paraíso. Cantam e voam como se estivesse em plena Primavera. Na rua, os vultos esgueirem-se entre sombras. Quem tem de suportar o sol dá passos vagarosos, como se não tivesse força para andar. Um prelúdio ao fim-de-semana que anuncia uma fuga. O problema das fugas é que acabam com os fugitivos a voltar ao lugar onde estavam. A verdade, é preciso reconhecê-lo, é que a maioria das pessoas fica extasiada com o Verão. Choram-no durante todo o ano e mal chega entregam-se-lhe com não escondido prazer. Talvez seja por isso é que ele se dilata pelo Outono dentro. Abro ao acaso um livro de Louise Glück e deparo-me com um poema com o título Pleno Verão, que começa assim: Como posso ajudar-vos, se cada um de vós / quer uma coisa diferente – sol e penumbra, / húmida sombra, calor seco. Então, penso que ser Deus é um trabalho árduo perante a diversidade dos desejos que Lhe são dirigidos como se fossem preces, acontecendo mesmo que muitos pedem uma coisa e o seu contrário. Esquecem que Deus pode tudo, mas no catálogo da sua omnipotência não consta poder o impossível. Chegou a hora de almoço.
quinta-feira, 24 de junho de 2021
Nostalgias
Há certos objectos com que estabelecemos uma relação funda, talvez porque nos tenham proporcionado um prazer, que já não conseguimos identificar ou explicar, mas que continua a viver nos subterrâneos da nossa consciência, ou talvez tenham despertado uma nostalgia incompreensível. Desses objectos fazem parte dois filmes. Não que esses filmes sejam realizações estéticas extraordinárias ou porque contem histórias avassaladoras. Tratam-se de Um Táxi Cor de Malva (1977), de Yves Boisset, e A Festa de Babette (1987), de Gabriel Axel. Aquilo que me prende a esses filmes é a sua atmosfera, uma certa ambiência despojada. O primeiro passa-se na Irlanda; o segundo, na Dinamarca. Não faço ideia por que razão me lembrei desses filmes agora. Talvez eles tenham vindo em meu socorro, dando-me motivo de escrita. Talvez exista em mim algum gene que pertence a esses mundos, de terras frias, e que tenha, em desespero perante o calor que cai por aqui, acordado uma nostalgia de alguma coisa que nunca vivi. Essas nostalgias, porém, são as mais duradouras e consistentes, as mais próximas da verdade. Um dia destes vou rever, mais uma vez, esses filmes, já que não posso voltar a lugares a que nunca pertenci, onde nunca vivi, onde nunca estive.
quarta-feira, 23 de junho de 2021
A noite imparável
Um dia ocupado com a nova modalidade de existência, reuniões por videoconferência. Umas por um motivo, outras por outro, a alma corrompe-se nestes ambientes que, apesar das aparências, pouco têm de etéreos. Todos se tornam em presenças fantasmáticas, imagens de imagens, como se se tivesse perdido o corpo e com ele a solidez. Depois, veio o futebol. Antes dos jogos, as selecções cantam os respectivos hinos. Primeiro, a Marselhesa. Depois, a Portuguesa. Há qualquer coisa de incongruente em tudo isto. Esses hinos pertencem ao mundo sólido, feito de aço e canhões. O português descende do francês, o que é justo, pois também Afonso Henriques descendia de franceses. A noite caiu há muito. Do céu, não vejo as estrelas, apenas a escuridão onde o dia se sepultou. As lâmpadas da iluminação pública derramam sobre as ruas a sua tristeza, enquanto os faróis dos automóveis varrem o ar com a luz inquieta de quem tem pressa. O vento açoita as acácias e estas gemem no gemido mecânico das roldanas dos baloiços do parque infantil. Afinal, ainda existem crianças. Não vivemos, por enquanto, numa dessas distopias que anunciam o inferno na Terra. Um cão de pequeno porte solta uns ladridos, imaginando-se, por certo, lobo feroz. As crianças, como as cigarras, não se calam. A noite corre imparável, mas não sabe para onde.
terça-feira, 22 de junho de 2021
Viagens e deambulações
As traduções portuguesas – recentes – da poetisa Louise Glück, prémio Nobel de 2020, são excelentes. Não me refiro às traduções propriamente ditas. Sê-lo-ão, por certo. Estava a falar dos livros enquanto objectos estéticos. Os quatro que tenho – falta-me um – são belíssimos, com capas muito depuradas e contidas. Possuía apenas Uma Vida de Aldeia, mas hoje dei uma volta por uma grande superfície que se dedica a ser papelaria, livraria, centro de cópia, tabacaria e posto dos CTT e encontrei lá A Íris Selvagem, Averno e Noite Virtuosa e Fiel. Em falta está Vita Nova. Não se pode dizer que a autora não possua talento para encontrar títulos. Não é uma tarefa fácil e muitos livros chocam de imediato contra essa parede que é o título. Ao lado da grande superfície está uma lavandaria. Também fui lá, não para mandar lavar camisas, mas para levantar uma encomenda. É o que se chama na moderna linguagem do comércio e distribuição um ponto pickup. Trouxe de lá uns sapatos, mas já tenho trazido livros. É muito mais raro ir buscar roupa lavada. Vivemos num mundo de contaminação. Não me refiro ao vírus, mas a esta disseminação de funções que os antigos e especializados estabelecimentos lançaram mão para sobreviver. No primeiro poema de Averno aprende-se que não existir será uma consolação para a alma, a dos mortos. Este poema deveria ser lido acompanhado pelo primeiro texto de Viagens, de Olga Tokarczuk, também prémio Nobel, texto com o título Existo. Nele, uma criança descobre dolorosamente que existe. Uma página, apenas. O poema da Glück, curiosamente, também se refere a viagens, mais precisamente a Migrações Nocturnas. Olho para o título e fico grato à editora e à tradutora por não terem desfigurado o velho Nocturno num insípido Noturno, o qual parece a adição acidental de no + turno, talvez o turno da noite. O texto vai longo e ainda não consegui dizer seja o que for, o melhor é parar.
segunda-feira, 21 de junho de 2021
De solstício em solstício
Hoje é o maior dia do ano. A partir de amanhã o ciclo inverte-se e a noite começa a crescer até que se torne maior que o dia. Este aparente eterno retorno do mesmo não podia ter deixado de fascinar os nossos antepassados. Uma luz laminada paira sobre o casario, fende as paredes, cai cortante pelo chão. Há pouco, porém, nuvens espessas tapavam o sol e parecia que Novembro tinha chegado. Também as notícias não são animadoras. Cada vez que se ergue a ilusão de uma esperança de nos vermos livres do vírus, a realidade revolta-se e entretém-se a desfazer as nossas mais queridas fantasias. Há pouco, alguém consertando uma máscara, disse: nunca mais nos livramos disto. Anuí. A vacina não elimina nem o contágio nem a transmissão. Atenua as consequências, o que é já uma grande vitória, mas essa vitória não representa a derrota do inimigo. Máscara, distância, higienização contínua das mãos, tudo isso parece ter vindo para ficar, para instaurar uma nova forma de habitar o mundo. As pessoas andam ansiosas para que tudo volte a onde se encontrava há pouco mais de um ano. Desconfio que haveremos de saltar de solstício em solstício, que os dias crescerão e minguarão, mas o passado é já uma terra distante a que nunca voltaremos.
domingo, 20 de junho de 2021
Um olhar turvo
Dois terços de Junho estão consumados. Tudo passa muito depressa, oiço dizer. É verdade, tudo passa muito depressa, ou muito devagar, como se as coisas fossem impedidas de passar num passo certo. A que velocidade deveria passar o tempo para que não fosse tomado ora pela mania da pressa, ora pelo vício da preguiça? Tenho de limpar os óculos. Uma mancha turva intromete-se entre os meus olhos e a realidade. Temo, porém, que os óculos não precisem de limpeza e o que esteja turvo seja o meu olhar. Os domingos na província prestam-se a este tipo de meditações, pois a província é um lugar onde o tempo parece exausto e em que a realidade vibrante das grandes metrópoles chega apenas com uma cor baça. Os serviços municipais esqueceram-se de olear as roldanas dos baloiços. Enquanto as crianças vão e vêm, um concerto de ferros a ranger entra-me pelos ouvidos. O céu nublou-se. Há pouco, um amigo ligou-me e disse que andava a ler um autor que foi cultuado pela nossa geração. Está surpreendido, pois o tempo não lhe tirou a vibração e o olhar acutilante. Senti um súbito impulso de voltar a essas leituras dos vinte anos. Talvez seja apenas a nostalgia desses dias onde tudo parecia possível e, na verdade, não o era. Não tarda o dia acaba-se e Junho também.
sábado, 19 de junho de 2021
Ordens de cavalaria
Lá em baixo, no parque infantil, crianças e pais parecem indiferentes à derrocada dos pobres cavaleiros de Cristo às mãos dos da Ordem Teutónica. Estive a ver um pouco do futebol, mas não consegui ir além da primeira parte. Não por causa do resultado favorável aos bárbaros, mas devido aos comentários que os locutores de serviço entendem distribuir sobre incautos espectadores como eu. Suspeito que haverá, no futebol, muita coisa execrável, mas o discurso à volta dele deve estar no topo das coisas a execrar. Recolhi-me ao escritório e, enquanto a bola vai e vem, entra e sai, vou pondo umas coisas em ordem. Não sou amigo do caos, embora não cultue em excesso a ordem. Talvez seja um aristotélico e pense que em tudo a virtude esteja no meio. Neste caso, uma ordem desordenada, para usar um oximoro e fugir ao pendor lógico do filósofo de Estagira. De vez em quando espreito um site onde vai dando o resultado da batalha e descubro que as probabilidades dos de cá ganharem eram completamente ínfimas. Um site de apostas pagaria quarenta euros, em caso de vitória de Portugal, por cada euro apostado. No caso de vitória alemã, apenas um euro e um cêntimo. Daqui a pouco chegará o meu neto. Ainda não sabe nada sobre cavaleiros de Cristo e Teutónicos, nem da metafísica da bola na barra ou da ética que impregna a extraordinária regra do offside. Seja como for, percam os portugueses por poucos ou muitos, há uma coisa inultrapassável. Eles, na Teutónia, o mais que podem fazer é cerveja. Nós por cá, cultivamos a vinha e dele extraímos o vinho. E nisso há toda uma diferença entre civilização e barbárie. Antes de ser acusado de alguma coisa indigna, volto para as arrumações. É esse o meu lugar.
sexta-feira, 18 de junho de 2021
Cruzamentos
Sem que se perceba a razão cruzam-se no horizonte das pessoas coisas que têm entre si uma conexão, mas que não foram procuradas por esse motivo. Há pouco, estive a ver o filme Vergonha, de Ingmar Bergman. O tema é a guerra. Tinha também começado a ler Kaputt, de Curzio Malaparte, com o mesmo tema, embora a experiência do italiano seja muito mais real. Talvez existam no espírito correntes subterrâneas que, apesar de desconhecidas, se manifestam nestas aparentes coincidências, mas que não serão mais que o resultado visível de um diálogo invisível que atravessa o fundo obscuro que há em todos nós, como existem em certos rios terríveis correntes sob a calma tranquila de lençóis de água benevolentes. Agora, o anoitecer é prolongado, como se o tempo se dilatasse e houvesse um medo real das trevas. Começou o fim-de-semana, o tempo parece não estar propício para grandes deslocações. Lisboa está sitiada aos fins-de-semana. Muitas são as formas que a guerra toma. Umas visíveis, outras invisíveis.