Encontro num prefácio ao romance Somos Todos Assassinos, de Jean Meckert, uma referência à oposição entre o cinema como entretenimento e o cinema como reflexão social e política. A referência ao cinema deve-se a que a obra foi produzida, a pedido de Gaston Gallimard, a partir do guião do filme com o mesmo nome de André Cayatte. Este dilema entre entretenimento e reflexão social e política colocado pelo cinema poderia ser transposto para todas as outras áreas artísticas, desde o romance à música, da pintura à dança. O dilema é falso, mas não apenas porque existam outras possibilidades para a arte, mas porque entretenimento e arte são duas categorias culturais irremediavelmente distintas. Também a relação entre arte e expressão de problemas sociais e políticos será acidental. Retrocedamos a Hegel. Como via ele a arte? Era a manifestação sensível – isto é, através dos sentidos – do Absoluto. Esta definição que hoje em dia será olhada com vincado desprezo talvez seja mais proveitosa do que se está disposto a admitir. Não que a arte seja, na verdade, a manifestação sensível do Absoluto, mas a manifestação da uma perplexidade existencial do homem perante o Absoluto ou perante essa ideia de um Absoluto. Esse encontro entre uma consciência relativa e finita e aquilo que dela difere totalmente, que lhe é incomensurável, é o começo da arte, desse gesto que confere à matéria a perplexidade de um encontro inexplicável.
sábado, 29 de junho de 2024
sexta-feira, 28 de junho de 2024
Alheiras
Enquanto a minha pobre neta se submetia a uma operação ao septo nasal, o avô decidiu almoçar. Coisa rápida, assegurar a função e desalvorar dali o mais depressa possível. Não para a ir ver, pois estaria no recobro, mas porque tinha que fazer. Para despachar, nada melhor do que uma alheira de Mirandela, com ovo e batatas fritas, tudo acompanhado por uma salada de tomate, alface, a que, sabe-se lá porquê, juntam cenoura ralada e cebola. O resultado não é famoso. Duas nódoas na camisa e a constatação triste de que a idade do aparelho digestivo já não se adapta a estas coisas. Os fritos estão a caminho da proibição. Lá consegui fazer aquilo a que me propusera, mas ainda não percebi a razão que me levou a comer o que comi. Uma lição para o futuro, pois a avó da minha neta também terá de ser operada ao septo nasal, uma família de septos tortos. Nesse dia, não me apanharão à volta de alheiras, sejam de Mirandela, sejam de outro lado qualquer, pois não há lugar, desde Trás-os-Montes até ao Algarve e ilhas adjacentes, que não produza alheiras de Mirandela.
quinta-feira, 27 de junho de 2024
Fonte da juventude
Em 1546, Lucas Cranach, o Velho, talvez por ser velho, pintou um quadro com o título Der Jungbrunnen, A Fonte da Juventude. Na época, a lenda de uma fonte cujas águas rejuvenesciam quem delas bebesse tinha um enorme mercado no imaginário das pessoas. O mito, contudo, já seria velho naqueles dias, o que não foi razão suficiente para que não se organizassem expedições para descobrir a fonte. Ora, foi preciso chegar a este ditoso século para que alguém, talvez todos nós, possa beber e mergulhar nas águas da eterna juventude. Há pouco, recebi um email da companhia que me vende os serviços de televisão, telemóvel e internet e descobri que tinha voltado à juventude. És digital? Descobre como receber prémios. Serei um adolescente, em crise de borbulhas, para ser tratado por tu, perguntei-me. Intrigado, fui ver, ao lixo, outras comunicações da empresa e vi que o tratamento por tu era contumaz. Procuras descontos nos melhores equipamentos? Por vezes, são menos interrogativos e mais declarativos: Mergulha numa Net sem limites. Como não tenho o hábito de ver esta correspondência, fui verificar o email com a factura. Também aí continua o tratamento por tu. Pensei em pôr-me de imediato diante do espelho, mas contive-me. Talvez tenha trocado a data de nascimento quando fiz o contrato. Estas coisas sucedem. Fui ver outras companhias que me vendem, ou não, coisas diversas. Também sou tuteado, um verbo que detesto, por todas elas. Afinal, sempre existe a fonte da juventude e não foi preciso procurá-la. Ela vem ter connosco. Não damos por isso, mas a cada dia que passa estamos mais novos, somos todos camaradas de recreio, tu cá, tu lá, nada de tratamentos formais, que isso é coisa para velhos. Bebi a água da fonte que permite que todos me tratem por tu. Isto tem uma consequência na história da pintura. Até aqui pensava-se que Lucas Cranach, o Jovem, era o filho mais novo de Lucas Cranach, o Velho. Falso. Lucas Cranach, o Jovem, era o próprio Lucas Cranach, o Velho, depois de beber a água da fonte da juventude, isto é, quando começou a receber comunicações por email, naquele já distante século XVI.
quarta-feira, 26 de junho de 2024
Do vício e da virtude
terça-feira, 25 de junho de 2024
Mascarado
Não tarda e terei de ir consultar-me com aquela rapariga que faz de minha nutricionista. Contudo, para ela não me reconhecer, vou de máscara. Minto, vou mascarado porque fui assaltado em plena luz do dia por um vírus incerto, que decidiu usar-me como hospedeiro, trazendo-me incómodos e uma indisponibilidade quase total para fazer seja o que for. Não descrevo os sintomas, por uma questão de decoro estético. O paracetamol devolve-me, por um certo período, a ilusão de bem-estar. Será uma ilusão? É um bem-estar induzido, que passará, mas não deixa de ser sentido como real. Se assim o sinto, assim o será. Quando deixar de sentir, deixará de ser. Será que esta virose tem como efeito secundário tornar-me um sensacionista à maneira de Alberto Caeiro? Tudo se reduz às minhas sensações e não há maior metafísica do que comer chocolates, uma metafísica reduzida às sensações do gosto. Uma virose, todavia, não é compatível com comer chocolates. Agonia-me a sensação de ter sensações a chocolate na boca, mesmo que seja chocolate negro, avantajado em cacau e reduzido em açúcar. Talvez, é uma hipótese, haja uma conjuração entre a nutricionista e o vírus que se apoderou da minha boa disposição. Seja como for, estou determinado, como um Quixote, a enfrentá-la e ver nela um vírus gigante que me há-de dar preciosos conselhos a que prestarei toda a atenção sem me dispor a cumpri-los. Não se pode fazer tudo. Ou se presta atenção ou se cumpre as indicações. Estamos perante uma disjunção exclusiva e ambas não podem ser verdadeiras. O pior é que há muitas coisas que não podem ser verdadeiras e, para nos desgostar, são-no.
segunda-feira, 24 de junho de 2024
Bom-senso
domingo, 23 de junho de 2024
Decreto divino
Jean Paul, um dos grandes escritores alemães da transição do século XVIII para o XIX, antepõe ao romance Titã um pequeno texto denominado Sonhar a Verdade. Esta não é uma tradução literal, mas talvez a literalidade seja, no caso da arte, uma coisa lateral. De que trata esse texto? De um sonho, claro. Era sonhado que Afrodite e as três graças – Aglaia, Eufrosina e Tália – que faziam parte da sua comitiva estavam cansadas do Olimpo que, apesar de ser radiante, era frio, e desejavam descer à Terra, pois aqui a alma ama mais porque sofre mais e, apesar de ser mais sombria, é mais calorosa. Chegadas à Terra, o Destino, o deus supremo dos deuses e dos homens, decretou que os imortais na Terra se tornariam mortais e cada espírito se transformaria num ser humano. Imaginamos agora a verdade do sonho. Afrodite, Aglaia, Eufrosina e Tália transformaram-se em mulheres, Luísa, Carlota, Teresa e Frederica. As mulheres, apesar de mortais, são, ainda na sua natureza, divindades olímpicas, o que deixa os homens na mais terrível das situações. Ou não reconhecem na mulher a divindade que a habita ou, reconhecendo-o, só lhes resta o confronto com a sua inferioridade ontológica. Ou a ignorância ou a incurável ferida narcísica. Foi este o destino que o Destino terá querido para os homens. Eles rebelam-se, mas quem pode desfazer o que o deus dos deuses e dos homens decretou?
sábado, 22 de junho de 2024
Descansar
Uns dias fora para descansar da realidade, a qual, como se sabe, é particularmente cansativa. Fora talvez não seja a palavra apropriada, pois é difícil sentir-se no estrangeiro quando se está na Galiza. Esta é o prolongamento natural de Portugal, ou este é o prolongamento natural da Galiza. Ali, sempre me senti em casa, talvez mais em casa do que aqui onde é a minha casa. Tanto quanto sei, não há notícia de galegos na ascendência, mas a informação só chega a umas seis ou sete gerações para trás, e o mais plausível é todos termos ascendentes galegos, nem que seja do início da nacionalidade. Saí de lá com temperaturas na ordem dos vinte e dois graus e cheguei aqui quase com trinta. Ontem, em Pontevedra, vi pessoas de cachecol, talvez sofressem da garganta, pensei, ou então são um pouco teatrais. Não estava calor, mas nada justificava certos trajos de Inverno que anotei na memória. Hoje, ao sair do hotel, o empregado da recepção, ao ver que éramos portugueses, não hesitou em tecer um louvor rasgado à língua portuguesa, que ele conhecia muito bem. Percebi que também é tradutor. Disse que, para ele, a língua portuguesa é muito mais espiritual do que o castelhano, tem uma plasticidade muito maior e que o jogo linguístico português, com o sugerido mas não dito, é impossível de traduzir para o castelhano, língua a que falta a ductilidade da portuguesa. Ali, porém, não estávamos em Castela, nem em Leão, nem em Aragão. Ali, portugueses e galegos entendem-se, como irmãos que não se vêem há algum tempo, mas que sabem muitas coisas um do outro e basta uma sugestão para o outro saber do que se está a falar. Agora, vou descansar destes dias de descanso.
terça-feira, 18 de junho de 2024
Falência narrativa
Estava cinzento o dia quando me levantei. Caso se mantenha, pensei, depois de almoço, aproveitando o tempo sombrio, irei caminhar, o que me permitirá, depois, realizar as tarefas que tenha para fazer sem que a digestão se intrometa entre mim e mim. Não se pense que sou dado a almoços pesados. Pelo contrário, o meu almoço foi frugal, talvez mais frugal do que o de um monge cartuxo. O corpo, porém, tem as suas idiossincrasias. Plano baldado, pois o sol rompeu e pairava no ar a ameaça de calor naquela hora. Entretive-me a fazer isto e aquilo, coisas práticas que me impunham estar de pé, e, depois, voltei para as minhas tarefas. Quando o que um narrador tem para narrar é isto, o melhor que terá a fazer é fechar a loja e inscrever-se no fundo de desemprego da associação de narradores em falência narrativa. Não o faço, pois há sempre a esperança de ter alguma coisa para contar, nem que seja que recebi um vídeo do meu neto a saltar de uma rocha para o mar ou a notícia de que a minha neta mais velha foi fazer análises e um electrocardiograma, pois vai ser operado ao septo nasal. O dia está ventoso, o sol anémico e na rua não passa ninguém, talvez ela tenha sido proibida aos peões, depois de ter sido proibida aos carros. Estou a mentir. Apenas proibiram a circulação nos dois sentidos. As acácias projectam a sombra nos muros da escola aqui ao lado, sombras inquietas, movendo-se para a frente e para trás. O silêncio foi quebrado pelo ladrar de um cão. Ainda é cedo para o crepúsculo.
segunda-feira, 17 de junho de 2024
Chamo-lhe Diotima
A nossa mente, ou a nossa consciência, é um macaco saltitante. Vai de assunto para assunto, numa indisciplina generalizada. Caso as mentes fossem ao serviço militar, nunca aprenderiam a marchar. O que vale é que aquilo que vai para a tropa é o corpo, muito mais fácil de adestrar. A minha mente pensou naquela história narrada por Platão em que um sacerdote egípcio dizia que os gregos eram crianças, faltava-lhes a profundidade do tempo. Não passavam de recém-nascidos. O mundo era, porém, muito mais antigo. Daqui, desta limitação das qualidades dos gregos, a minha mente navegou para O homem sem qualidades, de Musil. Abro o primeiro volume ao acaso e leio E foi sobretudo Diotima quem confirmou nele, por uma via diferente, este sentimento de que a superfície e o fundo da sua pessoa não coincidiam. O ele em que tal suspeita foi considera é Ulrich. No homem sem qualidades, podemos pensar, há uma descoincidência e talvez seja nesse não coincidir entre superfície e fundo, entre aparência e essência, numa versão mais filosófica, que as qualidades desaparecem. Depois, penso que me agrada o nome de Diotima, não que o desse a uma filha ou o desejasse para uma neta, mas enquanto nome de personagem romanesca é perfeitíssimo. Uma coisa estranhíssima, por falar em personagens romanescas. Estou a ler um romance do dinamarquês Henrik Pontopiddan. Tem por título Hans Kvast e Melusina. Pensa-se, de imediato, que a obra se centrará em personagens com esses nomes, mas não parece ser assim. As que surgem, e já li mais de um terço, denominam-se Hugo Maertens e Matilde. A sensação de estranheza é de tal ordem que fui investigar e os dados recolhidos mostram que é mesmo assim. Talvez, lá mais para a frente, surjam Hans Kvast e Melusina. Ou, então, será uma referência cultural que me escapa. Não sou dinamarquês. O romance não está publicado em português. Está no domínio público em dinamarquês e com os modernos meios de tradução consegue-se um resultado muito interessante. Em dois anos a técnica de tradução automática melhorou assustadoramente. E assim, a minha mente, saltando como uma macaca, pulou desde o assunto da mente até aos dispositivos técnicos de tradução. Tenho uma mente indisciplinada. Esta é a verdade crua. Não me parece que seja a melhor das mentes possível. Acho que lhe deveria chamar, à minha mente, Diotima.
domingo, 16 de junho de 2024
Um fungagá
Uma novidade por aqui. A alguém terá ocorrido que as pracetas públicas existentes entre os prédios era o local ideal para organizar uma festa de aniversário de uma criança. Será melhor para a criança e os amigos estarem na rua, correrem, gritarem e guincharem, formas plausíveis de exercitar os pulmões. É aborrecido para terceiros, mas há que ser caridoso. Os progenitores acharam por bem montar um insuflável para a criançada saltar e fazer aquilo que as crianças fazem nesse tipo de coisas. A caridade não se deve suspender aqui. O que é inaceitável é a montagem de uma coluna de grande potência que emite uma coisa que, por certo, chamarão música. Ora, não se pense que é música para crianças. Não é. É o tipo de música que adultos consomem, do pior que se possa imaginar. Suportar guinchos é uma coisa, ter de levar com o lixo sonoro que habita a cabeça dos nossos congéneres é outra. As pessoas não percebem o que é a justa medida. Estão convencidas de que pelo facto não ser legalmente proibido, durante as horas do dia fazer ruídos ou obrigar os outros a ouvir o mau gosto que nos corre no coração, também não é moralmente errado. Podemos distinguir entre ética e moral a partir de duas ideias. A ética refere-se ao modo como habitamos o mundo. A moral relaciona-se com o respeito devido aos outros. As duas coisas estão relacionadas e sempre que se observa o desprezo pelo respeito que se deve aos outros, pode-se desconfiar que a forma como se habita o mundo está longe de ser saudável. Enfim, isto está um fungagá e não é o da bicharada, é mesmo de seres humanos adultos. Terei e fechar a janelas. Ainda não decidi se este é o melhor mundo possível ou se é possível que exista outro mundo onde não se montem fungagás destes.
sábado, 15 de junho de 2024
Uma meditação involucionista
Em Túnis, nasceu ainda dentro do primeiro terço do século XIV um homem que haveria de morrer já no outro século no Cairo, e a quem deram um tão longo nome que não me apetece escrevê-lo. Ficou conhecido, para abreviar, com Ibn Khaldun, e é tido, não sei se com justiça ou se com excessiva generosidade, como um dos pais de diversas disciplinas das áreas das ciências sociais e humanas. A certa altura do seu Discurso sobre a História Universal diz O reino animal desenvolve-se, as suas espécies aumentam e, dentro do progresso gradual da Criação, termina no homem, dotado de pensamento e reflexão. O plano humano é atingido a partir dos macacos, nos quais existe sagacidade e percepção, mas que ainda não atingiram a reflexão e o pensamento. Dentro deste ponto de vista, o primeiro nível humano vem depois do mundo dos macacos; a nossa observação fica-se por aqui. É plausível a existência de quem veja em Khaldun também um precursor do evolucionismo darwiniano, mas o mais inquietante é a declaração final, a nossa observação fica-se por aqui. Será porque não haveria mais nada para observar para além do homem? Será porque o observador se recusa a observar mais alguma coisa? Talvez este contentamento com o observado dissimule um temor, aquele de descrever a existência de muitos homens que não usam nem o pensamento nem a reflexão, limitando-se a macaquear os próprios macacos ou nem isso, pois não é incomum encontrar exemplares da espécie humana a quem falta a sagacidade e a percepção que ele descortina nesses nossos primos. Isso implicaria que a um esboço de uma teoria evolucionista, ele teria de acrescentar o esboço de uma teoria involucionista, que começaria na degradação do homem em macaco, para a qual não faltam exemplos, seria seguida de descrições de quedas cada vez mais fundas, nas quais se chegaria aos homens protozoários e, entre estes, aos homens ameba, aqueles que parasitam o seu próprio intestino. Também eu, como Ibn Khaldun, fico por aqui. Para um sábado de Junho, esta minha contribuição para o conhecimento das coisas escondidas desde o princípio do mundo é suficientemente gloriosa e acrescentará, por certo, uma nova página na notável gesta deste cavaleiro andante sem destino nem cavalo.
sexta-feira, 14 de junho de 2024
Por falar em Pavlov
Continuam as experiências com um chatbot. Ele é a imagem do mundo, uma real projecção desse mundo que desagua na internet. Introduzi uma reprodução de uma pintura abstracta e pedi-lhe que me contasse uma história a partir dela. A sua inclinação para o kitsch parece inultrapassável. Numa terra distante e etérea, onde os limites entre a terra e o céu se confundem, existia um vale místico conhecido como as Planícies Sussurrantes. O vale estava envolto em uma névoa perpétua, escondendo os seus segredos do mundo exterior. Este foi o começo. Insuportável, o número de lugares-comuns. Nem continuei a leitura. Pedi-lhe então que me escrevesse uma história como se fosse Franz Kafka. Anuiu e devolveu-me este começo: Numa cidade sombria e claustrofóbica, vivia um homem chamado Gregório Duarte. Gregório era um funcionário de uma repartição pública, onde passava os seus dias a carimbar documentos e a arquivar papéis. A sua vida era uma rotina monótona e repetitiva, e ele sentia-se como uma engrenagem insignificante numa máquina colossal e indiferente. O pobre do Gregor Samsa surge metamorfoseada não num insecto, mas num português chamado Gregório Duarte, empregado numa repartição do Estado. Enfim. Não vou aqui contar todas as tentativas, nem sequer aquelas em que pedi que escrevesse ao estilo de Pessoa e, depois, de Saramago. Os chatbots têm uma lógica de resposta que os aproxima dos cães de Pavlov. Nós tocamos a campainha, e eles salivam. Coisa que acontece também com muitos seres humanos. Por enquanto, a arte humana está salvaguardada de concorrência. Por aqui, houve uma súbita animação. Os festejos de Santo António prosseguem, embora o que se ouve é uma cantiga popular ao S. João. Talvez devesse ir comer umas sardinhas. Isto por falar em Pavlov.
quinta-feira, 13 de junho de 2024
Linha do horizonte
Não o fazia há muito, mas hoje abri um dos cadernos de Eduína, com disposição de percorrer algumas páginas. De dentro, caiu uma folha manuscrita. Entre muros de pedra, a terra árida abria-se ao segredo do esquecimento. O vento, inflexível arauto do futuro, traçava sulcos na angústia densa inscrita na poeira. Pilares tocados pela brancura da cal vigiavam sonhos enterrados por cavaleiros sonâmbulos, pastores perdidos, amantes sem a tragédia do amor. A paisagem era uma recolecção de lembranças esculpidas no fundo esconso da memória, deserto rasgado por caminhos que se bifurcam e, como rios, desaguam no grande oceano do nada. A letra não é a de Eduína. É possível que seja uma letra masculina, talvez a de algum amante a quem ela poupou a tragédia do amor e, resignado, não teve a coragem de evitar a inclinação para o pathos que dorme no fundo do coração de todos os homens. Pergunto-me quais as razões que a levaram a guardar aquele bilhete. Piedade? É possível, mas não compreendo por que o guardou num dos cadernos que decidiu deixar-me como herança. Peguei no papel e coloquei-o ao acaso no caderno de onde caíra. Depois, guardei tudo, e fiquei a olhar o horizonte, mas não vi mais nada do que a linha do horizonte.
quarta-feira, 12 de junho de 2024
Do espírito e do mundo
Cresci numa velha tradição que Hegel, nos inícios do século XIX, sintetizou numa daquelas frases lapidares que têm uma fortuna sem fim, a leitura dos jornais é a oração da manhã do homem moderno. Naquela altura, o homem moderno era ainda muito jovem. Nietzsche, porém, décadas depois, achava que ler os jornais todas as manhãs à hora do pequeno-almoço não passava de uma imbecilidade parlamentar. Nietzsche não era um homem moderno ou, pelo menos, não o queria ser. Imaginava-se, presumo, um sobre-homem, o qual surge nas traduções como super-homem, mas esse só há um, o Clark Kent e mais nenhum. Hegel via na leitura matinal das notícias a possibilidade de auscultar a pulsação do espírito do mundo, o que é uma ruptura com a anunciação crística o Meu reino não é deste mundo. Hegel via na marcha do mundo o caminho do Espírito para si mesmo. Talvez quando o espírito chegasse a si, estivesse chez soi, como dizem os franceses, descobrisse a sua casa já num outro mundo e não neste, ou, então, o outro mundo é este, que é o melhor dos mundos possíveis, isto para nos atermos ao que outro filósofo alemão, Leibniz, proclamou e que, mais tarde, talvez na sequência do terramoto de Lisboa, Voltaire não se cansou de ridicularizar. Continuo a ler de manhã o jornal, já não em papel, mas online, embora não o faça ao pequeno-almoço. Não por respeito ao espírito de Nietzsche, espírito frágil que se desintegrou rapidamente, mas porque não me dá jeito. Continuo a ser um moderno, falha-me a paciência para os sobre-homens e, aos poucos, começo a conceder a Leibniz que este é o melhor dos mundos possíveis, até porque não tenho outro.
terça-feira, 11 de junho de 2024
Um problema de autoria
Hoje, a certa altura do dia, decidi desocupar-me e ocupar-me com outra coisa, pois há sempre outra coisa para nos ocupar. O resultado foi isto: linhas negras cruzam o vermelho / estruturas erguem-se do caos / pontos brancos explodem no horizonte / gestos soltos, marcas de um instante // ecos da tinta vibram tensões / manchas dançam sem rumo / horizontes emaranhados, sem destino /tons diluídos em abstracção // redemoinhos de tinta encontram-se / na profundidade sem nome / traços perdidos buscam sentido / o fundo arde em rubro intenso. Estou inocente. Ou quase. Não fui eu que escrevi o poema, se é que é um poema. É o produto de uma transacção. No chatbot, introduzi uma reprodução de uma pintura abstracta. Pedi-lhe para me escrever um poema com doze versos, sem metro, sem rima. Este não é o produto inicial. Pedi para fazer algumas alterações, até chegar aqui. Apesar de desocupado, não tinha muito tempo para continuar a experiência, mas descobri uma coisa. Pode-se escrever um poema com um chatbot. A questão é descobrir os comandos a dar, a arte do prompt, ter tempo para fazer explorações. Já descobri que a Inteligência Artificial tem uma inclinação para o kitsch (por exemplo, o verso gestos soltos, marcas de um instante) e para o pathos (por exemplo, o verso horizontes emaranhados, sem destino), foi a sua educação digamos assim. Contudo, é possível trabalhar sobre ela e eliminar aquilo de que não se gosta, trocar a disposição dos versos. Talvez, mas não experimentei, pedir para usar esta ou aquela figura de estilo. Levantar-se-á um problema de autoria, mas talvez, este seja um falso problema, pois ninguém é o completo autor daquilo que é apresentado como seu.
segunda-feira, 10 de junho de 2024
Discussão fracturante
Hoje tive uma discussão fracturante com o autor. Para quem não sabe, posso dizer que não são poucas as vezes que narrador e autor entram em conflito, e não estou a falar deste caso particular. Digamos que foi um conflito quase político. Expus, ao autor, a minha tese sobre o feriado de hoje. Disse-lhe que achava bem que fosse feriado, pois qualquer dia é um dia bom para ser feriado. Camões, por si só, merece um feriado e era de evitar que se lhe acrescentasse o dia de Portugal e das comunidades. Ele olhou de viés, mas eu continuei. Se querem um dia para Portugal escusam de escolher o dia em que o seu maior poeta morreu. Parece que os portugueses comemoram a morte daquele que lhes moldou língua. Depois, o verdadeiro dia de Portugal é o 5 de Outubro, que foi o dia do tratado de Zamora, aquele em que os do outro lado reconhecem Afonso Henriques como rei de Portugal. Arrastado pela efeméride, também é o dia da República, que com dificuldade de encontrar uma data para depor o Rei, escolheu aquela em que o primeiro dos reis tinha sido reconhecido. Dia de Camões, da língua portuguesa e da poesia, seria justo, apesar de um pouco fúnebre, mas esqueceram-se de preservar o registo de nascimento de Luís de Camões, talvez uma avaria no sistema informático da época, e não havendo dia de nascimento, há o da morte, é o melhor que se arranja. O autor ouviu-me, com a petulância que lhe é habitual, depois olhou-me com comiseração e, sem dizer nada, voltou-me as costas, mas não se afastou muito, pois logo retornou e disse vai contar histórias para outro lado. E eu fui.
domingo, 9 de junho de 2024
Erotização eleitoral
Já cumpri o ritual de visita às urnas. Desde o ano de 1975, apenas uma vez não o fiz, numas eleições autárquicas, mas já não sei quais. Estava longe. De resto, sou um votante contumaz. Quando me levantei e logo a seguir, nunca me ocorreu que era dia de eleições. Pensava no que iria fazer e na agenda não constava deslocar-me a uma assembleia de voto. Ao abrir a janela, vi demasiadas pessoas a deslocarem-se para o pavilhão desportivo da escola aqui ao lado, o sítio onde voto. Isso acordou-me para a realidade eleitoral. Despachei-me para ir resolver o assunto. Quando lá cheguei, depois de caminhar 160 metros, segundo informação do portal eleitoral, tentei perceber qual era a mesa de voto que me cabia, mas alguém teve a amabilidade de me esclarecer que estávamos já noutro mundo, que eu podia escolher a mesa que me apetecesse. Podia ser, caso tivesse pressa, a com menos gente ou, caso quisesse confraternizar com alguém, a que tivesse maior fila. Agradeci, entrei no pavilhão e não havia possibilidade de confraternizar com quem quer que seja. As filas eram todas iguais, isto é, não as havia. Escolhi uma mesa ao acaso, entreguei o cartão de cidadão, este foi devorado por uma ranhura de um computador. A certa altura, deram-me um boletim de voto e lá fui para a cabine. Puxei da esferográfica que levava comigo, não fosse a que lá está estar viciada, percorri a lista de candidaturas, descobri aquela que iria eleger e fiz o sacramental X no quadrado respectivo. Depois, dobrei o boletim de voto, desloquei-me para a mesa, fiz entrar o mesmo boletim por uma ranhura da urna e recebi o cartão de cidadão que já se tinha libertado do amplexo do computador. Aquilo que me veio à ideia foi uma coisa pouco apropriada. As eleições estão cada vez mais erotizadas. Não bastava, a penetração das urnas pelos boletins de voto, agora são os computadores ou uns dispositivos a eles acoplados, imagino eu, que são penetrados pelos cartões de cidadão. Enquanto saía do local, pensava se a erotização do acto eleitoral não seria uma estratégia para combater a abstenção. Uma má estratégia, pensei de imediato, pois, apesar das amplas liberdades concedidas a Eros, este anda pelas ruas da amargura, desinteressado da sua missão. Se querem combater a abstenção, pensei, deixem de lado as analogias com a sexualidade, a multiplicação das penetrações e coisas do género. Escolham outra coisa, pois essa não mobiliza já ninguém. Estes meus pensamentos foram interrompidos pelo cumprimentos de dois ou três conhecidos e desvaneceram-se quando, cumpridos os 160 metros, cheguei a casa. Voltaram agora, para ter algum motivo para escrever.
sábado, 8 de junho de 2024
O método do espelho
sexta-feira, 7 de junho de 2024
Arruadas
As sextas-feiras chegam depressa, mas os sábados e domingos dissolvem-se enquanto o diabo esfrega um olho, se for o caso de o tinhoso ser dotado de olhos. Estamos em maré eleitoral, assunto político que me está vedado, mas é sobre ele que insisto em escrever hoje, nesta sexta-feira que antecede o dia em que o corpo eleitoral, com e sem olhos, reflectirá sobre qual partido recairá a sua preferência, treinando em casa o preenchimento do boletim de voto, não vá o X transbordar os limites do quadrado preferido e contaminar outros quadrados, tornando-se assim em X nulo. Há que obstar à nulidade. O que me impressiona nas campanhas eleitorais é a prática generalizada de arruadas. Impressiona, logo, porque o termo se aproxima perigosamente de arruaças. É uma letra que separa um desfile partidário de um tumulto. Por aquilo que venho observando há anos, as arruadas são coisas pacíficas, onde uns figurantes andam com bandeiras e outros são obrigados a dar beijos e a tirar selfies, o que não é fácil, reconheça-se. Em Portugal, a distinção entre direita e esquerda cessa quando se chega à vexata quaestio da arruada. Todos gostam de arruar, embora o que se deva dizer é que gostam de arrulhar, como se os candidatos a nossos representantes fossem da família dos columbídeos, uns pombinhos e umas rolinhas. Temos assim, na arruada, o momento central da campanha eleitora. Um bando de columbídeos arruam com bandeiras ao vento. Ao verem potenciais eleitores começam a arrulhar e, caso se cruzem com outro bando de columbídeos que também arrulham, corre-se o risco de arruaçarem, mas logo lhes volta o espírito de pombo ou de rola, e toca de arrulhar, não vá algum eleitor estar à espreita. Por certo, com tantos arrulhos na rua, haverá casamentos e, se não os houver, sempre aparecerá uma ou outra gravidez indesejada, o que contribuirá para suster a queda demográfica. Este é o verdadeiro significado de uma arruada.