segunda-feira, 27 de julho de 2020

O desejo infinito

Uma das coisas que se aprende com a observação do mundo é que a maioria das pessoas confunde o desejo com aquilo que é possível. A realidade surge então sempre de forma sombria e toda a gente parece mancomunada para evitar o que seria possível, não fora a aleivosia dos outros, porque nisto, os aleivosos são sempre os outros. Não lhes passa pela cabeça que aquilo que é possível pode nada ter a ver com aquilo que desejamos. As possibilidades são finitas e o nosso desejo é infinito. Este tipo de estultícia, muitas vezes mascarado de erudição, abunda por todo o lado. Falei sobre isto com o padre Lodo e o casal seu amigo, no jantar de há dias. O mecanismo é interessante, disse o padre e passou a uma longa explicação didáctica. O nosso desejo, referiu com uma entoação sempre italianizada, diz-nos que algo é muito desejável. Depois, a nossa razão contaminada pela sensualidade proclama bem alto que o nosso desejo é possível de realizar. A partir daí tentamos impor aos outros a realização daquilo que desejamos, mas como raramente o desejo se atém ao que é possível, saímos para a rua com o dedo em riste a acusar esses malandros que não realizam as nossas fantasias. A perspicácia de Lodovico nem sempre lhe granjeou amizades. Pelo contrário. Lembrei-me disto, depois de ler certas coisas há pouco, coisas que caem neste erro, mas que merecem longos aplausos e muitos likes nas redes sociais. Toda a gente sofre de infinidade do desejo, pensei. Por mim, desejo um café.

domingo, 26 de julho de 2020

Insónias e sonatas

Hoje saí de manhã para fazer os meus seis quilómetros contra a inércia e a preguiça. Consta que faz bem e evita que a balança se entregue ao destempero, ao ser pisada por mim, e me devolva algum impropério em forma de quilogramas. A passeata foi um pouco mais lenta do que a de ontem. Dormi mal, uma insónia bateu-me à porta e eu, incauto, abri-lha. Dei por mim apreciar a companhia. Permitiu-me acabar de ler um romance de Ramón del Valle-Inclán, a Sonata de Otoño. Alguém dirá que também Ingmar Bergman realizou uma Sonata de Outono, o que é verdade, mas não têm nada a ver uma com a outra. Cada uma tem o seu assunto e o seu ritmo. Quem me recomendou o Valle-Inclán foi a Emilia Bazan, a mulher do antigo aluno alemão do padre Lodovico Settembrini, no jantar do outro dia. Como não conhece nada dele, comece pelas Sonatas, sentenciou. A primeira é a de Outono, acrescentou, numa tentativa de trocar o seu magnífico castelhano pelo português. Nesse momento, o padre Lodovico franziu as sobrancelhas, mas não disse nada. Percebo-o, agora. O Marquês de Bradomín não é propriamente um exemplo de bom cristão, mas o padre também teve os seus dias avessos ao altar. Eu obedeci, muni-me de um exemplar e li. Isso fez-me andar mais devagar, o que foi logo notado pela aplicação do telemóvel que me segue os treinos. Na verdade, eu não ando a treinar, mas é assim que ela interpreta o facto de eu me pôr a caminhar rua fora sem destino, a não ser o da casa da partida. Caminhar é como jogar ao Monopólio. Vá para a casa de partida, mas não tem nada para receber. Nos domingos de Julho íamos, por vezes, almoçar à casa onde nasci. Era um almoço sob uma latada, o que criava uma sensação de frescura. Naquela altura, ainda ninguém tinha morrido e o mundo parecia uma clareira aberta. Há muito que não é possível juntar todos aqueles comensais, mas eles fazem parte de mim. Hoje talvez comece a ler a Sonata de Estío ou pergunte às minhas netas se querem jogar Monopólio. Presumo que me olharão de lado.

sábado, 25 de julho de 2020

Não-assuntos

Sábado, dia de ócio. As palavras da família do ócio têm todas péssima imprensa. És um ocioso. Soa como uma acusação fundada num juízo moral negativo. No entanto, a palavra ócio quer dizer repouso, descanso, coisas que me parecem benévolas. Depois, um mundo que ficou fascinado pela agitação, pela febre das realizações e pela velocidade associou o ócio à preguiça e à inacção. Os acusadores do ócio tecem loas ao trabalho, mas nunca dizem que a palavra vem do vocábulo latino tripalĭu. Um tripalĭu é um instrumento de tortura constituído por três estacas ou paus. O exercício não seria conhecido pelo prazer que provocava a quem a ele era submetido. Na verdade, o trabalho, talvez até à Revolução Industrial, nunca mereceu louvor. Trabalhava quem não tinha estatuto social para fazer outra coisa. No entanto, podemos encontrar inesperados aduladores do trabalho. No Diário Íntimo, Baudelaire afirma que o prazer gasta-nos. O trabalho fortifica-nos. Os nazis não eram destituídos de humor negro e, por certo, percebiam a natureza torturante do trabalho. Inscreviam na entrada de alguns campos de concentração, como Auschwitz, o trabalho liberta. Curiosamente, em Baudelaire o trabalho também é visto como uma libertação, mas da omnipresença na consciência da sensação do tempo. Tanto o prazer como o trabalho são vistos por ele como distractores da nossa condição de seres finitos. Tudo isto porque chegámos a sábado. Nos dias de ócio, pode-se ociar de diversas maneiras. Por vezes, pratico o ócio procurando autores que ninguém lê. Leio-lhes umas páginas e esqueço-os. Quem terá ouvido falar em Karl Krause, um filósofo kantiano que viveu no final do XVIII e no início do XIX? Não o confundir com o famoso dramaturgo austríaco Karl Kraus. E do pensador holandês François Hemsterhuis, que viveu no século XVIII? Ninguém. Eu também não. Encontrei-os porque levado pelo ócio me pus a procurar as obras, numa língua acessível, do romancista romântico alemão Jean Paul. Deste, eu tinha duas referências. A de Sebald que é elogiosa e a de Schopenhauer que o acusa de não ter nada para dizer e de só escrever por dinheiro, isto é, acusa-o de trabalhar. Olho para a minha agenda imaginária e vejo que tenho de dar parabéns a alguém. Depois, escrevo nela a seguinte nota: evitar assuntos idiotas ao sábado, aproveitar o ócio para uma coisa mais decente do que encher o monitor com palavras sobre não-assuntos. O pior, porém, é que com a passagem do tempo só os não-assuntos me interessam.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

As rosas da Piéria

Safo, no poema As rosas da Piéria, lança, talvez sobre alguma amante que a rejeitara, o pior dos anátemas que os ouvidos gregos podiam, naquele tempo, escutar: Morta jazerás e de ti não haverá jamais memória / nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas / da Piéria. Ser perdido pela memória dos outros. Não haver quem no futuro de si se lembre. Os séculos edulcoraram a maldição, até a transformar em pura aceitação, como se o esquecimento dos outros fosse o próprio da condição humana. Em muitos, todavia, persiste a revolta. Persegue-os aquilo a que popularmente se chama a mania das grandezas ou o desejo da fama, mas isso não é mais do que o temor de ser esquecido pelo futuro. O colírio para esse mal não era, segundo Safo, um qualquer, mas a participação na vida das musas, as rosas da Piéria. A arte seria assim o resultado de um combate pela memória e a saudade que o futuro teria do artista. A sua ausência e a sua falta seriam sentidas. Dignos de imortalidade, de persistirem na memória dos vindouros, não eram apenas os grandes feitos, mas também as grandes palavras. O melhor seria que aquele que realizasse um grande feito dissesse também grandes palavras, que participasse no convívio com as rosas da Piéria. Gostaria de saber a razão por que me pus com estas elucubrações, enquanto a vida lá fora fervilha e as pessoas caminham para o seu próprio esquecimento. Vão esquecidas de que serão esquecidas. Recordei-me agora de um poema de David Mourão-Ferreira, Ladainha dos Póstumos Natais. Relei-o e soletro baixo para que ninguém me escute: Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que terei de novo o Nada a sós comigo. Nem as rosas da Piéria nos salvarão. O fim-de-semana abre-se diante de mim e isso é o mais que posso desejar.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Um fado, uma sina

A semana entrou na recta final. É uma frase estranha, mas não notamos a estranheza, de tanto a usar. Nem sempre o tempo foi visto como uma recta, melhor como uma flecha que segue sempre em frente, sem que nada a detenha ou desvie. Tempos houve em que o homem o compreendia como se fosse um círculo, em que tudo voltava, num verdadeiro eterno retorno do mesmo. Tudo isto para dizer que a semana se aproxima do fim. Ainda há dia e meio para as utilidades, mas logo chegará o ócio do fim-de-semana. A imprensa substituiu o retrato imaginário de um vírus COVID-19 pelo de Amália Rodrigues, no centenário do nascimento da fadista.  Ficámos todos a ganhar. O vírus é horrível, enquanto Amália era uma bela mulher. Fica muito bem nas capas dos jornais. Os olhos agradecem. Durante muitos anos, não liguei nada ao fado. Depois, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro e Carlos do Carmo dobraram-me. Hoje em dia, quero dizer no tempo em que ainda não havia retratos de vírus na primeira página dos jornais, vou a concertos de fadistas. Nunca me arrependo. Talvez seja a isto que se chama envelhecer. Na rua, os cães ladram, um casal passa devagar, cada um ajoujado ao peso da própria sombra. Separa-os meia dúzia de metros, como se já não pudessem suportar a companhia um do outro. Foi por vontade de Deus. Também eles têm a sua sina. Um pássaro canta, enquanto um par de anjos poisa no prédio em frente.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A fortuna do saco

Os dias seguem enrolados em inexpugnável manto de calor. S. Pedro, descontente com a vida que se leva por aqui, lança anátemas e raios de sol para abrir consciências e rasgar peles. Talvez não devesse levantar estas suspeitas sobre aquele que detém as chaves do céu. Deve-se sempre ter as melhores relações com quem gere as portas e administra permissões e proibições de entradas. Segundo consta, nem vale apena argumentar contra decisões desfavoráveis, pois o porteiro celeste tem mais que fazer do que ouvir mentiras, ele que sabe toda a verdade. Deveria evitar estes esboços de mitologia, pois vivemos num tempo desencantado em que ninguém tem saco para este tipo de conversa. É uma pena. Quem diria que a palavra saco teria tão grande fortuna. Encher o saco, despejar o saco, meter a viola no saco, não cair em saco roto, meter tudo no mesmo saco. Ter ou não ter saco, eis a questão. É possível que toda a metafísica se resuma a ter ou não saco ou seja uma questão de ensacar e desensacar. Os dias de Verão são sempre difíceis, principalmente para um narrador que nada tem para narrar. Podia falar da Marília que tornei a ver com o Zé Tó, ambos com ademanes abrasileirados, um samba excessivo para a idade deles. Digo eu. Poupo-vos, porém, aos pormenores. Tenho de ir encher o pneu da bicicleta da neta mais nova. Andar de bicicleta dá muito trabalho.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Dos sonhos e da distância

Foi Bioy Casares que, num conto intitulado de Nóumeno, fez dizer a Arturo os sonhos são convincentes, mas não vou permitir que a superstição prevaleça sobre a sensatez. Talvez tenha razão e a superstição nasça do sonho, daí o seu poder de convencer e gerar fundas convicções. Tenho uma vantagem sobre a maioria dos humanos. A mim os sonhos não me convencem e, por isso, talvez possa resistir melhor à superstição. Esta vantagem não nasce de uma qualidade que possua, mas de um defeito. Raramente, mas muito raramente, me recordo de um sonho. Se durante o sono se deram em mim aventuras oníricas, mesmo as mais extraordinárias, quando acordo é como se nada se tivesse passado. Há quem discuta se se sonha a cores ou a preto e branco, eu não faço ideia do que estão a falar. Se alguma vez fosse tentado pela psicanálise, não teria sonhos para interpretar. Restariam a associação livre e os actos falhados. Aqui haveria material em abundância para ser conduzido ao momento traumático que na infância me fez apagar o poder de recordar os sonhos. Não se pense, porém, que eu tenha fé na psicanálise. Como disse, resisto à superstição. Ontem encontrei um amigo que já não via há uns meses. À distância, atirou ele. É a nova ordem mundial. Eu percebo-o bem. Médico de profissão, não pode fazer outra coisa senão cultivar a distância. E ficámos a conversar com um espaço de segurança de uns três metros, a combinar um encontro de famílias, mas não faço ideia como vamos resolver a distância nesse encontro, onde haverá crianças e adolescentes. A proximidade entre as pessoas tornou-se uma superstição nascida de um sonho. Resta-nos a distância. Cristo se viesse agora ao mundo já não ordenaria amar o próximo como a si mesmo, mas o distante. Quanto mais distante mais digno de amor.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Fábrica de desejos

Hoje acordei com uma inexplicada inclinação para assuntos metafísicos. Fui salvo pelo dever terapêutico de ir caminhar. Seis quilómetros de périplo fizeram-me esquecer a tentação matinal. Não é que não se pense quando se caminha, mas os pensamentos são físicos, sobre coisas a que chamam realidade. Um carro que passa, um buraco num passeio que quase nos faz cair, uma pessoa conhecida que nos cumprimenta, três desconhecidos que correm como se fossem atletas de alta competição, outro que se arrasta pela calçada e que se tivesse um módico de consideração por si evitaria aquela figura. Caminhar é abrir uma janela por onde perpassam as mais inesperadas personagens de milhares de romances que nunca se hão-de escrever. Outras vezes enrolamo-nos em pensamentos que nos chegam do passado ou então em imaginações vindas daquela fábrica de desejos que todos transportamos connosco. Possuir uma fábrica de desejos dentro de nós é um perigo, talvez o maior dos perigos. Quem quiser uma vida descansada fecha a sua fábrica de desejos, despede o pessoal e mergulha na realidade, sem deixar que um desejo sequer lhe bata à porta. Chegado aqui, se me perguntarem a razão por que estou a escrever isto, só tenho uma resposta: não faço a menor ideia. No entanto, isso não tem qualquer gravidade. As pessoas não fazem a mínima ideia das razões que movem a maioria dos seus actos e fazem-nos, achando neles, por vezes, felicidade. Isto foi o que disse o padre Lodo no jantar de sexta-feira, quando a Emilia Bazán lhe perguntou a razão de ter vindo viver para Portugal. Oiço uma voz a chamar-me. Eu sei, eu sei, ainda não fui arranjar o furo da bicicleta. Deveria ter pensado nisso quando caminhava, mas talvez estivesse ocupado com a minha fábrica de desejos.

domingo, 19 de julho de 2020

As dádivas de Zeus

Troquei de versão do Word. A que tinha vai deixar de receber actualizações e comprei uma recente. Esta irrita-me. Muito, diga-se. Mancomunada com os defensores do Acordo Ortográfico de 1990, sublinha-me como erro todas as palavras portuguesas que foram banidas por arbitrária decisão política. Exceptuando os governos de Portugal, penso que mais ninguém liga ao patético Acordo. Este é uma conjuração contra as consoantes mudas, algumas das quais não são assim tão mudas. Se vivemos num mundo em combate contínuo contra discriminações e perseguições, como é que continuamos a pactuar com a perseguição às consoantes mudas? Os domingos são dias propícios à falta de assunto. Entretanto, uma das minhas netas entrou-me pelo escritório dentro, avô, avô, tenho um furo na bicicleta. Um furo? Um furo. Hoje é domingo, respondi. A oficina está fechada? Está. Noutros tempos, haveria de haver uns remendos tip-top e lá se desmontava a roda e, após uma complexa liturgia, o furo estaria remendado. Hoje a especialização leva a estas situações e a minha alma nunca teve qualquer inclinação para a mecânica. Ela encolheu os ombros. Vou andar de hoverboard. É uma boa ideia, ao menos não há risco de se furar uma roda, respondi. Olhou-me com complacência e foi-se embora. Para amanhã já tenho uma tarefa inadiável. Na nova edição de Poesia Grega, com traduções de Frederico Lourenço, há três fragmentos de poemas de Mimnermo. Em todos se encontra uma lamentação pela velhice e num deles há uma inesperada consideração sobre a igualdade dos homens: Não há ninguém a quem Zeus não dê muitas tristezas. Enquanto forem acordos ortográficos ou um furo na roda dianteira da bicicleta, as coisas não estão más, pensei num momento de optimismo. O Word, impiedoso, assinalou-me como erro optimismo. Talvez o optimismo seja um erro trágico, considerei.

sábado, 18 de julho de 2020

A morte de Rafael e a parusia de Jesus

Acabo de ler que Rafael, o pintor renascentista, morreu vítima de uma doença semelhante à provocada pelo coronavírus. Não contentes com isto, os informadores ainda foram desenterrar as coscuvilhices do Vasari. Este não precisou de redes sociais para registar e divulgar que o pintor de Urbino não apenas saía de casa à noite, quando estava um frio de acender lareiras, como o fazia para visitar as amantes. No plural, note-se. O amor à concorrência e a valorização do mercado não são coisas de agora. Ainda por cima omitia estes factos venturosos aos médicos e, quem sabe, aos confessores, o que seria mais grave. Resultado? Morreu aos 37 anos, apesar dos cuidados que lhe foram dispensados. Somos levados a imaginar que se ele não se tivesse dado a tanta consolação nas noites frias, não teria tido uma morte tão desconsolada. Continuando com a imprensa. O leitor talvez já não se recorde o que é a parusia. Os tempos não andam bons para se manter uma sólida cultura religiosa, mesmo que seja aquela em se foi educado. Apesar do termo ser um pouco esdrúxulo (na verdade, é uma palavra grave de origem grega), refere-se a uma antiquíssima crença dos cristãos. A segunda vinda – em glória – de Jesus. Expectativa iminente e sempre adiada. Vejo agora na imprensa que a segunda vinda de Jesus está consumada. Não há jornal ou site de informação que não proclame que Jesus voltou. Há quem espere que seja em glória, mas sobre isso não me pronuncio. Confesso que com o calor de hoje não me ocorreu mais nada. Podia ter contado o meu jantar de ontem em Lisboa com o padre Lodovico Settembrini, o seu antigo aluno Hans Castorp e a mulher deste, a espanhola Emilia Bazán, mas isso ficará para um dia destes. Vou enviar um email ao padre para lhe perguntar o que acha ele da parusia de Jesus.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Do exercício da estultícia

A humanidade divide-se em três categorias. Os sagazes, os estultos e os outros. Não me coube nem o estatuto dos outros nem o dos sagazes. Restou-me entrar no clube dos que cultivam a estultícia. Como todos os estultos, sou um praticante assíduo. Nunca falto a um treino e compito nos melhores campeonatos de estultícia para seniores. Hoje entrei numa livraria para ver os livros. Realizei plenamente o meu desígnio. Cumpri os objectivos, como agora se diz. Cheguei lá, olhei para as estantes e vi que tinham umas coisas vagamente parecidas com livros. Foi uma contemplação pura. Só um estulto entra numa livraria sem óculos. Os sagazes são precavidos e, caso necessitem, terão sempre uns à mão. Os outros nem precisam desses benévolos dispositivos pois não entram em livrarias, espaços que são apenas frequentados por sagazes e estultos que se pensam sagazes. Um funcionário perguntou-me se eu precisava de ajuda. Que não, respondi e agradeci o empenho solícito. Não lhe ia pedir uns óculos emprestados nem que me lesse as lombadas dos livros. Ainda não cheguei a essa fase. Como todos os estultos insisti em comprar livros. Quando cheguei a casa descobri que, caso tivesse óculos, não teria comprados dois dos que comprei. Sempre posso ir trocá-los, mas está tanto calor e nada me garante que leve óculos e não acabe por trazer os mesmos que teria devolvido. O que me valeu para disfarçar, aos meus olhos, a estupidez natural foi uma cliente que estava em muito pior estado de conservação do que eu. Ia conversando com os empregados e o dono da livraria e acabou, entre pagamentos, considerações literárias e pedidos para guardar a encomenda, a oferecer-lhes croquetes. Óptimos, asseverou, e como comprei seis e sou só uma. Eles agradeceram. Ela saiu e eu fiquei a pensar quando será o dia que entro numa livraria e, mesmo com óculos, acabo a oferecer croquetes ou pastéis de nata à menina da caixa. Nunca se sabe para o que estamos guardados.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Falta de concorrência

Tudo se paga nesta vida. As coisas irritantes que não fiz ontem fi-las hoje. Ao sair de casa, a atmosfera purgava grossas bagas de calor, inundando ruas e avenidas com um ar tão quente que logo se imagina o dia propício a um grande desvario. Pôr o carro a lavar, passar pela oficina e pagar a bateria que ontem vieram colocar quase ao anoitecer, passar pelo seguro para levantar a carta verde. Faltou-me apenas abastecer o depósito. Uma manhã dedicada ao automóvel, ainda assim sem completar todas as tarefas. Tirando a adolescência, que pela sua natureza não conta nestas considerações, a minha relação com carros sempre foi enviesada. São coisas que me cansam, embora me dêem algum jeito. Aquilo que eu gostaria mesmo era de teletransporte, mas ainda não está disponível na gama de mercado a que posso aceder. Uma pessoa fechava os olhos, concentrava-se no destino para onde queria ir e, passados segundos, encontrava-se lá de carne e osso. Era uma grande vantagem. Perdia-se menos tempo, a poluição baixava drasticamente e os milhões de empregos ligados aos transportes seriam alocados – meu Deus, como é possível deixares-me escrever esta palavra? – a coisas mais filantrópicas, cuja natureza agora não me ocorre. De facto, o mundo foi muito mal construído. O arquitecto deveria ter um espírito aberto e democrático e escutar a freguesia. Um amigo economista confidenciou-me que isso se deve à falta de concorrência. Se os clientes pudessem escolher entre vários mundos possíveis, os arquitectos em competição preocupar-se-iam com os interesses dos consumidores. Sendo assim, é o que se vê. Um mundo cheio de vírus e sem teletransporte. Uma pepineira.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Da perfeição

Tenho coisas irritantes a tratar na rua, mas o calor e toda a coreografia implicada no sair de casa, descer à garagem, abrir e fechar portas, carregar em botões e digitar códigos, tudo isso espalha em mim um véu de cansaço. Protelo e espero por melhor altura. Antes de almoço peguei nas obras completas de Mário Cesariny. O problema é que não tinha óculos. Na capa ainda distinguia as palavras, mas os poemas não passavam de manchas. Em vez de ir à procura dos óculos fiquei a ver a configuração espacial dos poemas, a espreitar como a cinza textual se destacava da superfície bege do papel. Não se deve desprezar na apreciação de um poema a forma como ele ocupa o espaço. Há muitos anos, talvez há mais de vinte, mas não sei precisar, uma galeria local organizou uma sessão com alguns membros do grupo surrealista português. Ia jurar que o Cesariny esteve presente. Tudo aquilo pareceu-me anacrónico e penoso, mas achei graça à apresentação que o organizador desta edição da poesia de Cesariny, também presente, fez de si. Perfecto E. Cuadrado, uma redundância, acrescentou, pois se se é quadrado já se é perfeito. Para além da sensação de anacronismo, foi o que retive do evento. Se alguém, porém, me afiançar que tudo isso é invenção, não serei eu que o hei-de contraditar. Bocejo, pego nos óculos e entrego-me ao expediente. Também eu procuro a salvação.

terça-feira, 14 de julho de 2020

La Dernière Valse

Há uma eternidade ofereceram-me, trazido de Paris, um pequeno caderno para anotações. Talvez tivesse sido uma agenda, já não consigo precisar. Não sei se alguma vez escrevi nele ou nela alguma coisa, mas não o esqueci por completo. Tinha na capa uma fotografia de 1949 da autoria de Robert Doisneau,  La Dernière Valse du 14 juillet. É uma fotografia extraordinária. Um par solitário dança na rua. A noite caíra sobre os prédios. Só sombras silenciosas, inumanas, vindas da caverna onde dorme a noite, assistiam ao espectáculo. Quem olha a fotografia não vê apenas o que está nela, um homem e mulher fixados eternamente numa posição imutável. Vê-os fluir, adivinha-lhes os passos de dança, ouve a valsa, envolve-se na performance, sente vontade de aplaudir. Há em tudo isto uma ironia. Como é que um acontecimento irado e terrível com o passar dos anos se transforma numa valsa? Talvez todos nós, enquanto vivos, valsemos sobre o cadáver de milhões de mortos e a valsa seja um exercício de purificação da memória. Ou talvez a vida seja outra coisa, como a bateria do carro que se apagou, a necessidade de ligar algum dispositivo que arrefeça a casa, aquilo que não se pode esquecer quando se vai às compras. O braço dele cinge-a pela cintura, a saia abre-se como uma flor e a noite não pára de cair sobre aquele par solitário que valsa há 71 anos.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Viver sitiado

Fecho-me em casa, escondo-me do calor como quem se esconde de um vírus. Cerro as persianas e preparo-me para os dias de cerco que tenho pela frente. Aqui, o sol é um inimigo implacável. Dardeja sem parar raios cheios de rancor, desejoso de incendiar as cidades por ele sitiadas. Há nele uma sanha incompreensível para pobres mortais como eu. É possível que a sua aversão tenha nascido de algum despropósito nosso, de lhe termos negado a divindade ou, terminadas as colheitas, de não lhe rendermos culto. Desconheço o que lhe move o ódio. A serra, com os seus muros de calcário, impede o vento marítimo de vir em socorro dos que são mártires da desmesurada ambição do astro. Não vale a pena acusar-me de tratar o Sol como se fosse um ser dotado de razão, agindo por motivos demasiado humanos. À falta de personagens reais, humanizo aquilo que me vem à mão. O Sol, a Lua, uma pedra, até a mim, que não passo de um pensamento no pensamento de outro que não sou eu. O telemóvel informa-me a hora e o dia. Vejo que num dia 13 de Julho, Charlotte Corday assassinou Marat. Vejo retratos de ambos e o dela parece-me de longe mais benevolente. Sempre achei o quadro de David, La Mort de Marat, um exercício de canonização do mal, mas sobre isso é melhor não me pronunciar e remeter-me ao meu papel de simples narrador tiranizado pelo despotismo do autor, talvez um discípulo de Marat. O calor não me faz bem. A 13 de Julho nasceu Júlio César, reparo agora. Decididamente, é um dia que tem demasiado sangue nas mãos. Talvez seja da temperatura. Nunca sabemos realmente a causa das coisas, admito.

domingo, 12 de julho de 2020

Do uso da máscara

As coisas que se encontram sem serem procuradas. Não falo de objectos perdidos, curiosidades da natureza, uma nota de cinco euros ou artefactos do engenho humano. Caminha-se, caminha-se, e súbitas revelações explodem na consciência. Está a tornar-se uma moda as pessoas usarem a máscara debaixo do queixo e no pescoço. Qual a razão? Não se compreende, mas ao andarilhar mundo fora a mente desprende-se de uma visão excessivamente racional e, subitamente, tem um insight que a faz perceber a verdade. As pessoas protegem-se do vírus da papeira ou tentam evitar, à outrance, um resfriado na garganta e, para isso, não há melhor defesa do que uma máscara. Descobri também, num caminhante inovador, que estes novos dispositivos de protecção contra aerossóis se podem usar no braço para evitar a dor de cotovelo. São muito eficazes, amortecem o impacto e poupam ao mundo a dor daqueles que nunca deixam de se queixar da imoralidade do universo ou da maldade humana. São estas pequenas iluminações que evitam o desespero com este domingo. Promete uns refrescantes 38 graus. Talvez nos queira fazer lembrar que por muito que os nossos antepassado tenham fugido de África, será a ela que todos teremos de retornar. Espero que o autor não me censure este devaneio meditativo. O calor justifica os maiores disparates e antes estes do que outros ofensivos do decoro da sociedade.

sábado, 11 de julho de 2020

Uma ida ao café

Havia alguns clientes na esplanada, mas no interior o café estava vazio. Sentei-me lá dentro rodeado pelo sossego da província, tirei a máscara e arrumei-a longe da vista. A rapariga atendeu-me, e eu desmascarado passei os olhos pela imprensa. Um estranho hábito. Julgo que o bebi na infância. Café, pedia o meu pai, e abria os jornais que comprara. Sempre um de informação geral e outro desportivo. Naqueles tempos havia matutinos e vespertinos. Eu comia um pastel de nata à colher, embora não recorde a razão para evitar a parte folhada. Uma das minhas idiossincrasias relativas a comida, a qual era para mim, até aos dez anos, um poderoso inimigo e motivo de grandes dissídios com a minha mãe. Odiava comer, coisa que me passou. Dispensava até que tivesse sofrido uma transformação tão radical. Quando comecei a ler tinha direito a um livro de aventuras, uma banda desenhada quase sempre centrada no longínquo oeste. Sempre vivi rodeado de jornais, mas há muito que deixei de comprar os desportivos. O assunto deixou de me interessar e aquilo tornou-se uma leitura tóxica. Não é que a imprensa de referência não esteja cheia de toxinas. Está, mas desenvolvi resistências e aquilo não me faz mal. Julgo, todavia, que o país não desenvolveu imunidade de grupo. Um dos cafés a que o meu pai me levava tinha umas cestinhas de figos secos em exposição e, se não estou enganado, penduradas nas paredes. Os figos eram cobertos por um folha de celofane amarelo, mas posso esta a inventar. Esse café desapareceu há décadas, também o meu pai foi para um lugar onde não existe imprensa e onde não se vendem livros de aventuras, e eu como pastéis de natas à mão e nem a parte folhada deixo de lado. O sábado progride vagaroso, o silêncio do café mistura-se com um artigo de opinião. Se gostasse, haveria de ir à praia. Deixei de gostar. Para não incorrer numa falácia, não infira que não irei, embora eu não vá.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

O oblívio dos pontos cardio

Cobre-me o dia uma pouca vontade para que nele inscreva qualquer coisa. Respiro fundo e sou invadido pela sensação de que sempre é assim. Dias cobertos de vontades poucas. A manhã começou com uma caminhada. Depois, entreguei-me com zelo a trivialidades, mas a existência é feita de coisas triviais. Ninguém suportaria uma vida inteira preenchida, momento a momento, de grandes acontecimentos, mesmo que fossem apenas privados. As manhãs parecem-me sempre tecidas com o fio da inocência, que uma alma cândida terá fiado durante a noite. O estado virginal, porém, vai-se maculando com o passar das horas e o tecido do dia, de início tão branco e resplandecendo, encarde-se e perde o fulgor. Quando caminho, levo o telemóvel para que este supervisione o meu andamento e que me informe quantos pontos cardio acumulei. Aqui entre nós, confesso que não faço ideia do que sejam pontos cardio, mas gosto do nome, de uma certa musicalidade que há nele. Hoje nas deambulações matinais não encontrei ninguém conhecido. Por vezes, algum outro caminhante passava por mim, mas era uma sombra que se desvanecia, a caminho doutro santuário que não o meu. A palavra oblívio começou a retinir em mim. É mais bela que cardio e não há melhor remédio para muitos males do mundo que o oblívio. Pudera eu, até me obliviaria de mim.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Um buraco negro

Pela primeira vez, em meses, ouvi um bando de pós-adolescentes algazarrear junto ao centro de línguas, na praceta aqui em baixo. Não faço ideia se o centro reabriu ou se eles se juntaram ali para descontrair de algum exame feito ou a fazer na escola ao lado. Estavam de máscara, pareceu-me, mas as vozes elevavam-se com a força que só a inocência lhes dá, mesmo que seja uma inocência que se julga culposa, crente de que uns quantos desvios às regras lhes dá uma experiência mundana que porá todos os velhos de boca à banda. Para aquelas idades, alguém com pouco mais de trinta anos é um velho irremediável. Quando tiverem sessenta descobrirão que ainda não são velhos. Continuam a florir os arbustos da escola. Ando há meses a tentar recordar o nome daquelas plantas, mas ainda não o consegui. Talvez nunca o tivesse sabido. Na casa de uma das minhas avós havia uma paliçada coberta por umas trepadeiras que davam umas flores roxas que, abertas, tinham uma forma de campânula ou sino. Que nome teriam elas? A Botânica não é o meu forte. Ontem o meu neto veio visitar-me. Mal me vê puxa-me o dedo para vir para a secretária onde não se cansa de bater no teclado. Depois, quer que eu o empurre na cadeira do escritório. Estas viagens de cadeira de escritório já vão na terceira série. Os dias deslizam para o buraco negro de onde, devido à intensidade do campo gravitacional, nunca conseguem regressar. E com isto resolvi um dos grande enigmas da humanidade. Por que razão não conseguimos viajar para o passado? A resposta é simples. O passado não é um país estrangeiro onde as coisas se fazem de forma diferente, como pensava o senhor Hartley, mas um buraco negro onde tudo o que nele cai desaparece para sempre. Exausto por esta descoberta, calo-me para não a estragar.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Carnaval eterno

Acordei ainda não eram sete da manhã. A temperatura na rua tinha descido bastante, apressei-me a abrir janelas e a pôr a casa sob o efeito de correntes de ar. Estava uma manhã esplêndida. Cinzenta, fria. Um vento suave lavava o rosto da cidade encardido pelo calor. As ruas pareciam transitáveis e dos prédios começavam a sair as primeiras pessoas em direcção aos carros estacionados sob árvores, de onde se desprende um fluido viscoso que se pega aos vidros. Um atleta paroquial, equipado a rigor, passou na sua bicicleta de corredor, um homem de máscara trazia um cão pequeno à tela, a vida mascarava-se de normalidade. Quando saí, o feitiço tinha desaparecido. O Sol rompera as muralhas e tornara-se ameaçador. Na esplanada do café da praceta, havia clientes nas três mesas que agora flutuam distanciadas no estrado. Numa delas, a Marília conversava com o Zé Tó. Afinal quem estava no outro dia a sambar para ela não era o Esteves nem o Lopes, mas o Zé Tó, que, enquanto geólogo, andou por meio mundo à procura de petróleo. Esse deambular é toda a metafísica que lhe coube, mas ninguém quer saber de metafísica para coisa alguma. Os olhos já tiveram melhores dias, foi o que me ocorreu, quando percebi o troca que fizera da outra vez. Passei por eles, olá, olá, e continuei em direcção ao meu destino, pois hoje tinha um. Entrei nele mascarado, estive por lá mascarado e saí mascarado. Embora a criatividade nos disfarces ainda seja incipiente, o Carnaval está a tornar-se eterno. Não tarda e todos sentiremos falta da Quarta-Feira de Cinzas.