Tenho coisas irritantes a tratar na rua, mas o calor e toda
a coreografia implicada no sair de casa, descer à garagem, abrir e fechar
portas, carregar em botões e digitar códigos, tudo isso espalha em mim um véu
de cansaço. Protelo e espero por melhor altura. Antes de almoço peguei nas
obras completas de Mário Cesariny. O problema é que não tinha óculos. Na capa
ainda distinguia as palavras, mas os poemas não passavam de manchas. Em vez de
ir à procura dos óculos fiquei a ver a configuração espacial dos poemas, a
espreitar como a cinza textual se destacava da superfície bege do papel. Não se
deve desprezar na apreciação de um poema a forma como ele ocupa o espaço. Há
muitos anos, talvez há mais de vinte, mas não sei precisar, uma galeria local
organizou uma sessão com alguns membros do grupo surrealista português. Ia
jurar que o Cesariny esteve presente. Tudo aquilo pareceu-me anacrónico e
penoso, mas achei graça à apresentação que o organizador desta edição da poesia
de Cesariny, também presente, fez de si. Perfecto E. Cuadrado, uma redundância,
acrescentou, pois se se é quadrado já se é perfeito. Para além da sensação de
anacronismo, foi o que retive do evento. Se alguém, porém, me afiançar que tudo
isso é invenção, não serei eu que o hei-de contraditar. Bocejo, pego nos óculos
e entrego-me ao expediente. Também eu procuro a salvação.
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