Hoje acordei com uma inexplicada inclinação para assuntos
metafísicos. Fui salvo pelo dever terapêutico de ir caminhar. Seis quilómetros
de périplo fizeram-me esquecer a tentação matinal. Não é que não se pense
quando se caminha, mas os pensamentos são físicos, sobre coisas a que chamam realidade.
Um carro que passa, um buraco num passeio que quase nos faz cair, uma pessoa
conhecida que nos cumprimenta, três desconhecidos que correm como se fossem
atletas de alta competição, outro que se arrasta pela calçada e que se tivesse
um módico de consideração por si evitaria aquela figura. Caminhar é abrir uma
janela por onde perpassam as mais inesperadas personagens de milhares de
romances que nunca se hão-de escrever. Outras vezes enrolamo-nos em pensamentos
que nos chegam do passado ou então em imaginações vindas daquela fábrica de
desejos que todos transportamos connosco. Possuir uma fábrica de desejos dentro
de nós é um perigo, talvez o maior dos perigos. Quem quiser uma vida descansada
fecha a sua fábrica de desejos, despede o pessoal e mergulha na realidade, sem
deixar que um desejo sequer lhe bata à porta. Chegado aqui, se me perguntarem a
razão por que estou a escrever isto, só tenho uma resposta: não faço a menor
ideia. No entanto, isso não tem qualquer gravidade. As pessoas não fazem a
mínima ideia das razões que movem a maioria dos seus actos e fazem-nos, achando
neles, por vezes, felicidade. Isto foi o que disse o padre Lodo no jantar de
sexta-feira, quando a Emilia Bazán lhe perguntou a razão de ter vindo viver
para Portugal. Oiço uma voz a chamar-me. Eu sei, eu sei, ainda não fui arranjar
o furo da bicicleta. Deveria ter pensado nisso quando caminhava, mas talvez
estivesse ocupado com a minha fábrica de desejos.
Gosto dessa frase do padre Lodo. :)
ResponderEliminarA minha fábrica de desejos recusa-se a partir, e talvez isso seja bom: ter desejos e esperança de os concretizar pode tornar a vida menos insuportável...
Hoje não vou falar de temperaturas nem de... não, não vou falar de graus centígrados!
Um fim de tarde ameno, HV.
🌻
Maria
(Ah, já tratou do furo? 🚴♂️)
Talvez o padre Lodo seja um sábio dos antigos. Desconfio que ele não daria penitência a quem confessasse possuir fábrica de desejos.
EliminarQuanto ao furo, ainda não, mas como há outra bicicleta o protelar não foi notado.
Uma noite amena.
HV