sexta-feira, 17 de julho de 2020

Do exercício da estultícia

A humanidade divide-se em três categorias. Os sagazes, os estultos e os outros. Não me coube nem o estatuto dos outros nem o dos sagazes. Restou-me entrar no clube dos que cultivam a estultícia. Como todos os estultos, sou um praticante assíduo. Nunca falto a um treino e compito nos melhores campeonatos de estultícia para seniores. Hoje entrei numa livraria para ver os livros. Realizei plenamente o meu desígnio. Cumpri os objectivos, como agora se diz. Cheguei lá, olhei para as estantes e vi que tinham umas coisas vagamente parecidas com livros. Foi uma contemplação pura. Só um estulto entra numa livraria sem óculos. Os sagazes são precavidos e, caso necessitem, terão sempre uns à mão. Os outros nem precisam desses benévolos dispositivos pois não entram em livrarias, espaços que são apenas frequentados por sagazes e estultos que se pensam sagazes. Um funcionário perguntou-me se eu precisava de ajuda. Que não, respondi e agradeci o empenho solícito. Não lhe ia pedir uns óculos emprestados nem que me lesse as lombadas dos livros. Ainda não cheguei a essa fase. Como todos os estultos insisti em comprar livros. Quando cheguei a casa descobri que, caso tivesse óculos, não teria comprados dois dos que comprei. Sempre posso ir trocá-los, mas está tanto calor e nada me garante que leve óculos e não acabe por trazer os mesmos que teria devolvido. O que me valeu para disfarçar, aos meus olhos, a estupidez natural foi uma cliente que estava em muito pior estado de conservação do que eu. Ia conversando com os empregados e o dono da livraria e acabou, entre pagamentos, considerações literárias e pedidos para guardar a encomenda, a oferecer-lhes croquetes. Óptimos, asseverou, e como comprei seis e sou só uma. Eles agradeceram. Ela saiu e eu fiquei a pensar quando será o dia que entro numa livraria e, mesmo com óculos, acabo a oferecer croquetes ou pastéis de nata à menina da caixa. Nunca se sabe para o que estamos guardados.

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