terça-feira, 14 de julho de 2020

La Dernière Valse

Há uma eternidade ofereceram-me, trazido de Paris, um pequeno caderno para anotações. Talvez tivesse sido uma agenda, já não consigo precisar. Não sei se alguma vez escrevi nele ou nela alguma coisa, mas não o esqueci por completo. Tinha na capa uma fotografia de 1949 da autoria de Robert Doisneau,  La Dernière Valse du 14 juillet. É uma fotografia extraordinária. Um par solitário dança na rua. A noite caíra sobre os prédios. Só sombras silenciosas, inumanas, vindas da caverna onde dorme a noite, assistiam ao espectáculo. Quem olha a fotografia não vê apenas o que está nela, um homem e mulher fixados eternamente numa posição imutável. Vê-os fluir, adivinha-lhes os passos de dança, ouve a valsa, envolve-se na performance, sente vontade de aplaudir. Há em tudo isto uma ironia. Como é que um acontecimento irado e terrível com o passar dos anos se transforma numa valsa? Talvez todos nós, enquanto vivos, valsemos sobre o cadáver de milhões de mortos e a valsa seja um exercício de purificação da memória. Ou talvez a vida seja outra coisa, como a bateria do carro que se apagou, a necessidade de ligar algum dispositivo que arrefeça a casa, aquilo que não se pode esquecer quando se vai às compras. O braço dele cinge-a pela cintura, a saia abre-se como uma flor e a noite não pára de cair sobre aquele par solitário que valsa há 71 anos.

2 comentários:

  1. Fui pesquisar e é, de facto, uma fotografia extraordinária.
    E também vi muitas outras, algumas bem insólitas, mas todas interessantes.
    Aqui não há dispositivos que arrefeçam a casa. Nunca quis ir de férias para paraísos tropicais (não gosto de água para tubarões) e agora cá estou eu com noites tropicais... mas a seco :(
    Comemoremos pois o 14 Juillet e a chegada da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
    Ou então vamos ver um filme do Bergman.

    Uma tarde fresca HV.
    🌻
    Maria

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    1. O Robert Doisneau era um grande fotógrafo. Talvez tenham sido as fotografias dele que me levaram a dar alguma atenção à fotografia enquanto obra de arte.

      Apesar dos princípios da Revolução Francesa serem estimáveis, hoje prefiro um filme de Bergman. Pode ser o último, Saraband.

      Uma tarde fresca, Maria

      HV

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