sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Uma coisa triste

Sentado à secretária, esquecido que era sexta-feira, entreguei-me a um longo delíquio. Não no sentido de me ter estado a liquefazer, mas de ter perdido a consciência. Neste caso, a consciência da realidade, envolvido que estive numa daquelas tarefas fantasiosas com que preencho a vida, cuja utilidade é nula, apesar do esforço de perfeição com que a envolvo. Talvez eu esteja a pagar pensamentos que tive na longínqua juventude. Pensamento sobre a inutilidade de tudo o que era visto como útil, a inutilidade da própria existência humana sobre o planeta Terra. O mais importante, porém, aconteceu ontem. Fui com o meu neto à feira da Golegã. A criança, o pai e o avô, com a intromissão da avó, foram jardinar entre cavalos e gente que se passeava por ali, como se o ali fosse uma coisa importante. Nunca apreciei o evento. Sempre me faltou paciência para feiras, festas e romarias, mesmo que sejam a efusão de pessoas que ouvi denominar como agro-betos. Os cavalos parecem muito nervosos com a multidão, as pessoas tentam dar-se ares de tradição e fidalguia, mas na verdade tudo aquilo, se observado com atenção, é triste, tão triste como um circo, com os seus palhaços ricos e pobres. O pequeno não me pareceu particularmente entusiasmado. Compreende-o. Chega de devaneio sociológico. Coisas ainda mais inúteis esperam o ardor do meu esforço. Tê-lo-ão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

O pior é o Nanetti

Sem dar por isso, deixei que um terço de Novembro se tenha escoado. Cronos é um deus miserável. Sofre de uma acentuada bulimia, de um desejo convulsivo de devorar os dias, isto é, os seus próprios filhos. O pior é que, como efeito colateral, também nos devora a nós. Começar assim significa que não tenho nada para dizer neste diário. Como me acontece muitas vezes o cérebro começa a fazer curto-circuito e liga coisas que não devia. Lembrei-me do filme Querido Diário, de Nanni Moretti. Para dizer a verdade, já não me lembro nada do filme, apenas do título. Contudo, Moretti é um cineasta que me coloca, muitas vezes, problemas verdadeiramente existenciais. Por exemplo, quando me quero referir a ele e lhe chamo Nanetti. Ao dar-me conta do erro, que ocorre mais vezes do que gostaria, começo a pensar que já tive melhores dias, mas talvez mesmo nesses eu não seria grande coisa. Hoje comecei o dia antes das oito da manhã com um serviço de transportes. Fui buscar a minha mãe para a levar ao laboratório de análises. Depois, levei-a para casa. Ainda não eram nove horas já estava sentado a trabalhar. Confesso que o fazia com entusiasmo, embora tenha a certeza que o fruto de tanto labor será nulo. Isso, porém, é uma característica muito pessoal. Tenho uma acentuada inclinação para a nulidade, embora tenha outra para a verborreia.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Enigmas

Foi ao levantar dinheiro numa caixa multibanco que dei comigo a cismar que esse é um gesto condenado. Ainda não está morto, mas já passou o seu tempo. O cartão e o MB Way, no telemóvel, tornam obsoleto andar com notas. O dinheiro sempre foi uma imaterialidade. Só que até aos nossos dias era uma imaterialidade material. A informação necessitava de se codificar em pedaços de metal e de papel. Agora, basta a informação armazenada sabe-se lá onde e terminais para lhe aceder. Depois destas meditações, ri-me, pois eu estava, ao retirar as notas da caixa, mergulhado na mais pura obsolescência. Ora, essa é a minha verdade. Sou obsoleto. Talvez esteja a falar por enigmas. Ao escrever a palavra enigmas lembrei-me de uma nota de rodapé ao livro Anarchy, State and Utopia. Escreve Robert Nozick: Com frequência uma questão útil de colocar é a seguinte: - Qual a diferença entre um mestre zen e um filósofo analítico? – Um diz enigmas, o outro enigmas diz. Talvez a pilhéria de Nozick seja mais séria do que ele próprio terá pensado. É possível que tudo o que um ser humano diga seja enigmático. Repare-se na experiência que é ouvir falar uma língua que se desconhece por completo. Todos aqueles sons são verdadeiros enigmas. Contudo, dirá o eventual leitor, isso não se passa com aquelas que falamos e em primeiro lugar com a língua materna. Será uma observação avisada, mas esquece o longo treino necessário para que ela tivesse deixado de parecer enigmática. Anos e anos. E, apesar disso, nada nos garante que, mesmo parecendo a coisa mais transparente do mundo, ela não continue a ser profundamente enigmática, mais ainda que a língua desconhecida. Poderia, se eu fosse dado a fazer leis, enunciar a seguinte lei, ainda mais importante do que a segunda lei da termodinâmica: Quanto melhor se conhece uma língua, mais enigmática ela se torna. O que vale é que não fui fadado para legislador e a lei proposta não é uma lei, mas o devaneio de uma mente ociosa depois de uma longa reunião em videoconferência. As videoconferências são como a pandemia. Vieram para ficar. Nem vacinados nos protegemos delas. A minha neta mais velha está em sessão de massacre, em videoconferência, claro, para preparação com a avó de um teste de Matemática. O mundo tornou-se um lugar muito difícil.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Ligar o aquecimento

Estava a ler um livro de Peter Sloterdijk com o sugestivo título You Must Change Your Life – não se pense que é uma obra de auto-ajuda, não é – quando me deparo com a seguinte consideração: A era moderna é aquela que trouxe a maior mobilização das forças humanas em prol do trabalho e da produção, enquanto aquelas formas de vida em que se deu a máxima mobilização em nome da praxis e da perfeição pertencem à antiguidade. Imagino, embora tenha uma certa propensão para imaginar coisas desfocadas da realidade, que em todos os seres humanos exista uma cesura, um buraco escavado pela tensão entre uma vida marcada pela produção e a necessidade de a dedicar à perfeição pessoal, à realização de si. Quando se fala em antiguidade, nela se devem incluir todas as sociedades tradicionais e não apenas a grega e a romana. A realidade, nos dias de hoje, tempo talvez culminante da era moderna, é a produção sem fim, com o objectivo de consumir, para se produzir mais, para se consumir mais, até ao infinito. Em tudo isto parece haver uma condenação de Sísifo, uma ausência de sentido para o facto de se estar neste mundo e ter capacidade de pensar. Se queremos encontrar uma grande razão para o absurdo na literatura de Camus ou para a náusea em Sartre, encontramo-la nesta mobilização infinita das capacidades humanas para a exterioridade produtiva. A redução da existência à dinâmica da quantidade, a que se expressa no jogo dos gastos e dos proventos, é a casa do absurdo em que a vida de muitos seres humanos se tornou. Não sei o que me deu para escrever estas coisas. Talvez seja o facto de a noite estar a cair, com a escuridão que é a sua, ou a causa terá sido o ter passado o dia em actividade produtiva intensa, embora a produção a que me dedico não sirva realmente para nada. Não tarda e terei de ligar o aquecimento. Isto, sim, é uma questão importante.

domingo, 7 de novembro de 2021

Um domingo para contar uma aventura de quarta

Contrariamente ao habitual, o almoço deste domingo foi cedo. De seguida, um salto a uma superfície comercial. Talvez fosse melhor considerar aquilo um volume comercial e não uma superfície, pois não consta que a nossa espécie consiga viver num espaço bidimensional. Excepto o pouco tempo que demorou a aventura, não dei por nada mais que merecesse anotação. A luz que fendia a atmosfera e se precipitava pela cidade, essa sim. Uma luz melancólica que só existe nas tardes de domingo, e não em todas. Há nela uma cor desmaiada e aquele que para ela olha quase sente vontade de chorar, embora não saiba a razão. Talvez seja o próprio domingo que assim se apresenta por saber-se cada vez mais próximo da morte. Por falar em coisas melancólicas, ocorreu-me a minha vista a um sítio lúgubre. Trata-se da aventura nos meandros da justiça portuguesa. Arrolado como testemunha, lá me desloquei ao tribunal. Dirigi-me à secretaria, disse ao que ia, apresentei a convocatória (ou a intimação), para testemunhar em videoconferência, pois a sessão real passava-se em Lisboa. A funcionária sorriu. Escreveu no computador, disse que já tinha avisado o colega. Que esperasse lá fora. Pode ser no hall interior, está menos frio. Na verdade, havia gente no hall exterior à espera e ao frio. Dirigi-me ao interior, uma sala ampla, escura, com uma mesa, bancos corridos e dois ou três sofás aos cantos. Nesse hall desembocava uma escadaria ampla e quase imponente. Por ali, pensei, deve descer a justiça. Por vezes, um pequeno grupo de pessoas parava junto à mesa, trocava impressões e subia. Quanto a mim, testemunha ocasional de um naufrágio, dedilhava o telemóvel e esperava. A certa altura, entra um advogado, por acaso meu vizinho, e trocamos umas palavras. Digo-lhe ao que viera e que esperava que a coisa se despachasse rapidamente. Ele ri e responde-me que estava em mau sítio para ter pressa. Ri-me, despedimo-nos, volto a sentar-me e a dedilhar o telemóvel. Passam duas mulheres togadas, ainda relativamente novas. Oiço alguém murmurar que se trata da juíza e da delegada, mas não consegui saber quem era quem. Talvez seja isto a opacidade da justiça. Deveriam trazer letreiros para identificarmos os titulares de tão alta função. Assim me ia entretendo, até que, passada uma meia-hora bem medida, a oficial de justiça que me recebera, vem dizer-me que a advogada do meu amigo dispensara o meu testemunho. Que podia ir à minha vida. Perguntou-me se queria uma declaração de presença. Declinei e agradeci. Vim-me embora, sem que desse o meu testemunho. Ao sair pensei que aquele é um sítio que qualquer herói deve evitar. Agora está a chegar a noite dominical. O anúncio da cadeira de hambúrgueres cintila espampanante e o hospital, ao longe, cerra-se numa tristeza parda e sem fim. Vi que hoje a canção Let it be faz cinquenta anos. Hoje estou particularmente palavroso. Vou ler um artigo que fala – para desconstruir, claro – sobre os cinco mitos que persistem ainda hoje sobre os Beatles.

sábado, 6 de novembro de 2021

Um sábado esquivo

Não sei o que fiz deste sábado. Levantei-me bem cedo e estive a trabalhar até às dez horas. Saí e fui tratar de uns assuntos familiares. Regressado para almoçar, nem dei pelo passar das horas. É deste modo que se dissipa a vida. O tempo passa e nem por ele se dá. Já é noite cerrada há muito. Vista da janela, a rua não passa de uma fantasia fantasmagórica, pontilhada por luzes brancas e amarelas. O bosque da escola ao lado é apenas uma sombra negra e densa, as árvores da rua – tílias, acácias, liquidâmbares – dançam empurradas pela música do vento, enquanto, em estranho strip-tease, deixam cair, uma a uma, as folhas mortas. Por vezes, a avenida é cortada pelos faróis de um carro, mas o trânsito é pouco, vagaroso, alguém que procura chegar a casa, embora sem pressa. Um carro estaciona, sai um casal e precipita-se para o bar da esquina. Há pouco, sem imaginação para melhor, estive a ver um jogo de snooker. É quase tão espectacular como um jogo de xadrez, apenas um pouco menos imóvel, pois os jogadores levantam-se e sentam-se, andam à volta da mesa, onde correm bolas para dentro de buracos empurradas por varapaus a que dão o nome de tacos. A humanidade, honra lhe seja feita, de tudo faz um jogo, talvez porque esteja cansada de coisas sérias. Inventado o jogo, logo é tornado em coisa séria, para que seja inventado outro, antes que o tédio seja mais eficaz que as alterações climáticas e acabe com a espécie. Como se vê, estou sem assunto e ainda não foi hoje que falei da minha aventura, no outro dia, no palácio da justiça local. Fica para a próxima.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Mrs. Robinson

Li há pouco que hoje, dia 5 de Novembro, Art Garfunkel faz 80 anos. Que importância tem isso, a não ser para ele e para a família e amigos, caso os tenha? Nenhuma. No entanto, a dupla Simon & Garfunkel marcou várias gerações, entre as quais a minha. Não apenas pela sua música (possuo todos os seus álbuns em CD), mas também por ser deles a banda sonora de um filme de culto, de Mike Nichols, com o título The Graduate, o que deu em português europeu A Primeira Noite. O filme é de 1967 e, apesar da soma dos meus anos ser pesada, não tinha idade, então, para ver o filme. Nem sei se ele passou nessa época em Portugal. Vi-o anos depois. Não por acaso fiquei fascinado. Por certo, se o revisse, não o ficaria. Os tempos mudaram e a inocência perdeu-se sabe-se lá onde. Quem nunca viu o filme, por certo não terá dificuldade de o encontrar por aí. Eu vinha aqui para contar a minha experiência de quarta-feira, numa ida a um tribunal, mas julgo que vou ter de adiar a narrativa épica, embora não tenha acontecido nada, nem eu seja criminosos, nem o motivo tenha sido um crime, mas a dolorosa partilha de bens entre um amigo e a mãe dos seus filhos. Hoje, porém, é sexta-feira, já anoiteceu, o sábado conspira para chegar. Acho que vou ouvir a música que animou A Primeira Noite. Podia dar-me para pior. Quem não desejou uma Mrs. Robinson que atire a primeira pedra.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Metafísica de trazer por casa

Já era noite quando me sentei no escritório. Cansado. Demasiado contacto com a realidade torna-se patológico. No leitor de CD estava um disco de Richard Strauss, corria o poema sinfónico MacBeth. Ao fim de alguns minutos descobri que hoje não é dia em que possa ouvir Strauss. O meu cansaço – ou as preocupações que me atravessam a mente – deixam-me incapaz para uma música tão densa. Ainda pensei escolher uma coisa ligeira. De imediato, porém, uma voz vibrou dentro de mim. Nada, exclamou. Silêncio, ordenou. Sou obediente. Desisto da música, olho pela janela para a noite. Então recordei-me do tempo em que fumava. Se ainda o fizesse, acenderia um cigarro e deixaria a mente deambular entre o fumo e a escuridão do céu. Sem ouvir nada, desejando não pensar em nada, mas isso não me parece possível. A mente é uma cabrita irrequieta, nunca pára. Não fumo, resta-me a noite. Não a noite que existe, mas aquela que desejo. Uma noite pura, não toldada pelas luzes humanas, uma noite que espelhasse o silêncio do universo, que trouxesse até mim o mistério de tudo o que é. Como se vê, depressa se deriva para uma metafísica de trazer por casa, toldado por um pathos insuportável. Melhor seria fumar um cigarro.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Deambulações com os astros

Num site de agregação de notícias, vejo as previsões para os diversos signos astrológicos. São extraordinárias. Quase ao nível das previsões do tempo e das da chave do Euromilhões. Só são batidas pelas previsões económicas e estas, como se sabe, nem depois dos factos acontecerem conseguem estar de acordo com a realidade. Lembro-me de uma conversa tida num meio jornalístico da capital, há muitos anos, em que um jornalista dizia que as previsões da astrologia eram um trabalho da redacção, por norma dado a um novato. Uma forma de desenvolver o talento para contar histórias sobre a realidade. É muito possível, imagino, que mesmo muitas cartas dos leitores sejam – ou tenham sido – trabalho de redacção. Não faço ideia por que razão me aventurei num campo tão juncado de minas e armadilhas como a astrologia. Não vale a pena, para contrariar a minha mais funda e completa desconfiança nesses truques, falar de Fernando Pessoa. Se ele se dedicava à astrologia, também se dedicava a outras coisas que não faziam bem ao espírito. O que conta em Pessoa não é aquilo em que ele acreditava, mas aquilo que escreveu. Não o conteúdo, mas a forma. Se era dado a mapas astrais, isso é irrelevante, embora talvez fosse mais interessante que desenhasse mapas físicos e atlas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Considerações sobre os mortos

Chegámos a Novembro e aos Santos. Cedo, saí de casa pois necessitava de fazer umas compras. Passei pelo cemitério. No pequeno largo exterior havia algum movimento, venda de flores e de alguma parafernália para deixar nas campas. O movimento, todavia, não era muito. Talvez fosse muito cedo, talvez porque o dia de Fiéis Defuntos seja amanhã e não hoje. Poderá haver uma outra razão para a diminuição da afluência aos cemitérios, se é que há essa diminuição. A subjectivização da relação com os mortos. As visitas aos cemitérios pressupõem ainda a existência de um corpo objectivo que ali está e é esse que suporta o culto do antepassado. Ora, uma das marcas da modernidade é a subjectivização da relação com o mundo. Pode-se cultuar os antepassados apenas na interioridade do sentimento e da memória, sem necessidade de recorrer a um suporte físico dado pela existência de um corpo na campa, no jazigo, etc. Os que morreram não se encontram nos cemitérios, mas na memória, no sentimento e nas orações dos vivos. Tudo isto me disse há pouco o padre Lodo, quando lhe liguei e lhe contei que tinha visto pouca gente à porta do cemitério da cidade. Depois, da reflexão filosófica sobre um problema sociológico, lembrou-me que estava com imensas saudades de comer umas broas daqui. São únicas, acrescentou. Levar-lhas-ei, caso vá a Lisboa no fim-de-semana. Agradeceu. Não resisti e disse-lhe que deveria ter cuidado com elas, mesmo que não contribuam para a perdição a alma, podem não ajudar muito o corpo. Ele respondeu com uma expressão em italiano que não percebi e riu-se.

domingo, 31 de outubro de 2021

Tempo de broas

Outubro despede-se com dia aumentado. Talvez ele esteja preso na amargura por ter de partir e lança mão a todos os estratagemas para evitar a ida sem volta. Por isso, precisa de 25 horas, compreende-se. De resto esteve um domingo plangente, espalhando a lástima por tudo o que é canto. As pessoas recolhem-se em casa e começam a sonhar com lareiras. O pior é que não está frio, apenas a água e o tédio envolvem o ambiente. O dia não foi mau. Falei com os três netos. Em primeiro lugar, com o mais novo que me perguntou se estava em casa, depois com as mais velhas que me informaram estarem de saída para uma noite de Halloween em casa de amigos. Talvez o mais novo tivesse medo que também eu fosse para o Halloween. Amanhã será dia santo ou o dia de Todos-os-Santos. Tempo de broas, que têm o condão de me saberem muito bem e de me fazerem bastante mal. Culpa minha, pois cedo sempre à tentação e ultrapasso a justa medida. Para tudo, como sabiam os antigos gregos, há uma medida justa. Nada deve ser feito em excesso e também se deve evitar a falta. A discussão, porém, surge de imediato. Cada um tem a sua justa medida ou existe uma justa medida universal, ou, ainda, a justa medida pode ser, ao mesmo tempo, individual e universal? São estas coisas que me atormentam a consciência, enquanto vou comendo broas e o organismo não se queixa.

sábado, 30 de outubro de 2021

Melancolia de sábado

Não tem sido um dia fácil, o de hoje. Não por causa da chuva e do mau tempo, mas por necessidade de ter de tomar decisões e fazer coisas desagradáveis. Por vezes, é necessário pôr as mãos não na massa, mas naquilo que tem um péssimo aroma. Todos gostaríamos que a vida aqui na terra fosse um paraíso, mas parece que os astros não estavam para aí virados, quando fadaram o destino da espécie humana ao cimo desta pequena bola rochosa. De resto, a chuva tem animado as terras e terá contribuída para que as barragens não se afoguem na secura. Isto digo eu que de barragens e de chuva nada sei. Está um sábado triste, nimbado por uma melancolia vagarosa. Na avenida não se avista ninguém, apenas os carros, poucos, passam, deixando uma esteira, feita de uma pequeníssima babugem, aberta pelos pneus ao rodar sobre os lençóis de água que cobrem o alcatrão. No bosque da escola aqui ao lado, cedros, ciprestes e pinheiros oferecem a folhagem ao anoitecer. Os campos de jogos estão vazios, nos beirais dos prédios não se avistam pombos, apenas o hospital, mais ao longe, deixa o branco das paredes contaminar-se com a ferrugem dos fungos. Não tarda e será noite.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Bolachas do Halloween

A profecia meteorológica confirmou-se. Chove, o alcatrão parece um espelho, os carros passam devagar para não molhar os transeuntes. Estes equilibram guarda-chuvas em mãos desabituadas, encolhem-se como se estivesse por aí o Inverno. Ainda não chegámos ao S. Martinho, o qual tem tendência para pequenas estiagens, nem tão pouco aos Santos e a Fiéis Defuntos. Ninguém quer saber deles, dos Fiéis Defuntos e ainda menos dos Santos, mesmo que venham por atacado e sejam todos. O que move os ânimos é o Halloween, essa velha tradição ibérica, com fortes raízes em Portugal. Já hoje me perguntaram se queria uma bolacha do Halloween. Nem estava a perceber. Uma bolacha de quê, perguntei. Do Halloween, responderam-me. Para além das bolachas Maria, Torrada, de Araruta, Americana, também há bolachas do Halloween, voltei a perguntar. Confirmaram. Até me ofereceram a possibilidade de comer uma. Disse que sim, mas depois esqueci-me e perdi a extraordinária possibilidade de aumentar o meu conhecimento gastronómico. Está uma verdadeira sexta-feira, daquelas que fazem lembrar longos fins-de-semana sem afazeres prementes. Continua a chover e o crepúsculo aproxima-se. Não sei a razão, mas estou a ouvir um álbum com a música para piano de Michael Nyman. Há qualquer coisa que não combina. Acho que vou mudar para Die schöne Müllerin, de Franz Schubert. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Coisas diversas

Consta que no próximo fim-de-semana muda a hora. Também constou que hoje mudava o tempo e que, a esta hora, deveria haver aguaceiros a sério. Ora, está uma noite tranquila. Nada de chuva. Tenho esperança de que também a hora não mude no fim-de-semana. Não é que me faça grande diferença, a não ser ter de acertar um ou outro relógio, mal dou pelo acontecimento. Parece que o país anda divertido com as peripécias da distribuição da mercearia. Houve um problema qualquer com o rol, mas sobre isso estou proibido pelo autor de fazer comentários. Isto é muito injusto. Um autor pode ter opiniões políticas, mas um narrador está proibido. Nem sequer pode falar em róis de mercearia, nem de venda a grosso e a retalho. Nada. Por outro lado, ouvi dizer que a pandemia ainda não está domada, que os casos podem vir a aumentar exponencialmente. O pior é o senhor da Marinha já não estar ao leme. Sempre podia chover, as terras estão a precisar de água e não tarda virá por aí grande charivari por causa das barragens. E ainda me lavava o carro que tenho na rua. Na minha frente repousa um livro que deve pesar mais de um quilo. É um saber substancial, diga-se. Não partilho o título para preservação do que resta do meu bom nome, se é que alguma vez o tive, ou possa haver um nome que seja bom.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma aventura

Entrego-me ao anacronismo. Deveria contar uma aventura de hoje, mas não encontrei nenhum torto para endireitar, nenhum gigante para pôr na ordem. Resta-me narrar uma aventura na qual, no lugar de ser um glorioso agente, não passo de um glorioso paciente. Tudo começou há umas semanas quando, apenas para tranquilizar o espírito, talvez porque não fizesse meditação transcendental, um cardiologista, rapaz da idade dos meus filhos, achou por bem mandar-me fazer uma ressonância magnética ao coração. Disse-me que aquilo era um bocado chato, pois demorava cerca de quarenta minutos. Ontem lá fui fazer a coisa para tranquilizar o espírito. Descobri, no acto de pagamento, que afinal não era uma ressonância magnética, mas três. Uma morfológica, outra funcional e a terceira para estudo da perfusão do miocárdio. Quando olhei para a requisição feita pelo médico, confesso que não consegui ler coisa alguma do que estava escrito. Pensei que ele escrevia num alfabeto que eu desconhecia, mas que haveria nos centros de imagiologia hermeneutas especializados e infalíveis na interpretação. A aventura, que supera as do Cid e do Quixote, senão mesmo as de Ulisses, de Eneias e do peito lusitano, consiste em entrar numa espécie de túnel, onde se fica muito quieto, com uma buzina na mão para o caso de dar para o torto, e se ouvem ordens através de uns auscultadores. Ainda me perguntaram se queria música, mas declinei tendo em conta o que os técnicos estavam a ouvir. Que ordens eram essas? Eram muito claras. Um técnico dizia: encha os pulmões de ar, despeje-os, não respire. Ouvia uns sons cortantes e estranhos. Quando paravam, ouvia a mesma voz: pode respirar. A partir de certa altura comecei a contar as emissões sonoras. Desconfiei que estava perante uma mente caótica. A do técnico, claro. Umas vezes, apenas havia a emissão de um desses sons, outras vezes ultrapassavam as vinte – cheguei a contar vinte e cinco – sem que um padrão lógico se me apresentasse ao espírito. O meu medo – um herói também tem medo – foi que ele se esquecesse de dar a ordem para voltar a respirar. Cheguei a imaginar-me num sarcófago. O momento mais perturbador aconteceu, porém, por volta da meia-hora de exame. Estava à espera de ouvir o técnico a dar as suas ordens quando chega até mim uma voz feminina. Fiquei de tal maneira perturbado que nem percebi que também ela dava as mesmas ordens. Talvez o técnico tenha precisado de ir à casa de banho, pensei depois. Após uns instantes de confusão, lá me recompus, e fui obedecendo. Até que chegou o fim, entraram pela sala umas raparigas para me livrarem da parafernália que me envolvia. Pensei ter chegado a Ítaca e estar rodeado de Penélopes. Descobri, porém, que era uma ilusão. Apenas queriam que eu me fosse dali para fora, que lhes desamparasse a loja, que elas tinham mais que fazer. Obedeci, claro, pois a obediência é a maior virtude de qualquer herói.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Livros de cowboys

Uma troca de comentários aqui no blogue levou-me à evocação de um tempo muito remoto, no qual eu ia, bem criança, aos domingos de manhã ao café com o meu pai. Ele lia os jornais, um de informação geral e outro desportivo, e eu entretinha-me com o Falcão ou o Mundo de Aventuras, umas vezes. Outras eram o Condor e o Ciclone. Tudo isso revistas de banda desenhada populares. Conhecidas por livros de cowboys. Na altura, a escola desaconselhava tal tipo de literatura, mas ninguém queria saber do desaconselhamento. Se não foi por aí que comecei a ler, foi talvez pelas aventuras do Pinóquio, nas edições Romano Torres, uma gloriosa editora popular que foi tragada há muito. Havia uma enorme estultícia nesse acto de desaconselhar essas leituras, a presunção de que as pessoas começavam pela literatura de qualidade, ainda que infantil. Foram as horas intérminas de Verões sem fim a ler essa má literatura que me conduziram a Kafka, a Mann, a Borges, a Sartre, a Camus, já nem sei bem a quem. Antes do prazer do texto, que vem bem depois, há o prazer de acompanhar o desenrolar da acção, de saber como acaba a história, de ver acontecer as peripécias que levam ao desenlace. Isso estava tudo nessa pequena literatura. Estava ainda uma outra coisa, a vitória do bem sobre o mal, o sentimento de que vale a pena bater-se pela boa causa. Não era pouco.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Admirável mundo novo

O dia começou com uma visita ao laboratório de análises clínicas. Tudo muito eficiente e despachado, mas – há sempre um mas – também um pouco desconcertante. Outrora sabia de quem era o laboratório, passava pela proprietária, cumprimentava-a, fazia parte de uma paisagem bem definida. Passou, há uns tempos, para uma grande cadeia de laboratórios, da qual nunca chegarei a saber quem é o proprietário. Não é que tenha algum interesse em conhecer donos de laboratórios de análises ou de supermercado, ou seja lá do que for. A questão é outra. A paisagem despovoa-se. As coisas que tinham donos por todos conhecidos entraram numa vertigem tal que os donos foram sugados e enviados para Marte. Tudo se tornou anónimo, obediente a normas burocráticas e a imperativos de racionalização. O espaço para o improviso, para recorrer, em caso de necessidade, à fonte do poder, esse espaço está morto. As pequenas cidades de província – também as não tão pequenas – vão-se tornando em dormitórios de assalariados de poderes estranhos, sem rosto. Tudo a fingir que se está num sítio muito civilizado, muito cosmopolita. Não, não se está. Sempre desconfiei de que o jejum que antecede a realização da colheita dos materiais a analisar não faz bem a ninguém. A mim, por exemplo, dá-me para devaneios sociológicos. Ora, o que me interessa a sociologia? Tanto como a psicologia, isto é, nada. Seja como for, as coisas são eficientes, os resultados já chegaram por email, agora encriptados, a que só se pode aceder com uma password, vá lá alguém saber que tenho o colesterol onde deve estar, mas os triglicéridos estão com ligeira inclinação para a hipérbole. Imagino que este encriptamento dos resultados deve ser uma vantagem competitiva do laboratório contra os rivais. Um admirável mundo novo.

domingo, 24 de outubro de 2021

Rainhas

Não é pequena coisa o espírito comercial e a livre iniciativa. Digo-o sem a mínima ironia. Operam verdadeiros prodígios e nunca deixam de nos maravilhar. Já hoje comi um recente doce tradicional de Natal e ainda nem chegámos aos Santos. Por aqui, ainda os particulares, neste caso as particulares, não se entregam aos rituais das broas, e já se vendem Bolos-Reis e Bolos-Rainhas. Foi um destes últimos que foi vítima da minha gula. Uma pequena parte, esclareça-se. Durante décadas só conheci o Bolo-Rei, depois a livre-iniciativa preocupada com a infracção aos princípios da igualdade de género introduziu o bolo consorte. Como acontece sempre, o que vem depois é francamente melhor. Também no acto da criação Deus deu vida a Adão, mas temendo algum desvio narcisista ou práticas indecorosas e solitárias, tirou-lhe uma costela e de lá nasceu a Eva, incomparavelmente mais interessante que o pobre descostelado. Mesmo no Xadrez as Rainhas são muito mais poderosas que os Reis. É certo que se este morrer de xeque-mate o jogo acaba, mas o coitado mal se pode mover pelo tabuleiro, enquanto a Rainha desloca-se por ele, grácil e ameaçadora, não havendo peça que o adversário mais tema. Se ela morrer ou for feita prisioneira, o que é o mesmo, o jogo não acaba e ela, por acto de magia, pode voltar ao tabuleiro pela promoção de um peão. Pena que Ovídio tenha escrito as Metamorfoses sem conhecer a do peão em rainha. Mais grave que isso é, porém, a possibilidade de um Rei, devido à promoção dos peões, ter mais de uma Rainha. O que pode ser concebido como um ataque à família monogâmica. Isto levanta sérios problemas e estes não se resumem aos aspectos teológicos da questão. O domingo afunda-se no mar da noite. Já estava com saudades de umas frases a cair para o kitsch.

sábado, 23 de outubro de 2021

Música vesga

Quando chegamos a eles, esperamos que sejam gloriosos e quase eternos, mas os sábados são tão triviais como quaisquer outros dias. Fazem a única coisa que um dia sabe fazer. Passar. Comecei com a ida ao centro de inspecção com um carro. Na verdade, um ancião. Descobri, ao atentar na documentação, que o pobre nem chega a fazer 2 000 km por ano. A maior viagem que faz é de 100 km para um lado e outros 100 km de retorno a casa. É verdade que nos últimos dois anos a pandemia o impediu de andar por aí, mas sem ela duvido que passasse dos 2 500 km. Tenho pena dele, pois sempre que são viagens a sério, é dispensado e deixado a dormir ao relento ou na garagem. Depois, de inspeccionado recebeu a aprovação, mas parece que terei de mandar regular os faróis de nevoeiro. A lei mudou e a incidência da luz ficou desactualizada. A inspectora comentou que sempre que a lei muda não é para favorecer o cidadão. Pensei que havia nela uma certa sabedoria e sorri. Ela não viu o meu sorriso, pois eu estava de máscara, como ela. Fiz um esforço e não consegui lembrar-me da última vez que usei, neste carro, os faróis de nevoeiro. Agora, o sábado entristece-se. Uma luz mortiça embate nas paredes e chega a mim como uma onda de melancolia. Descubro que um livro comprado há dias em Lisboa é exactamente igual a um que tinha comprado há uns anos. Maldigo a memória e deixo-me embalar pela música vesga das tardes de província.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

As virtudes da segunda mão

Comprar livros em segunda mão é um exercício virtuoso, um modo de reciclar o papel, sem desfigurar o objecto que o usa. Em tempos, comprei, num desses leilões de livros que ocorrem nas redes sociais, uma Histoire du Roman Moderne, de R. M. Albérès, publicada em 1962, pelas Éditions Albin Michel. O anterior proprietário, suponho que português, cuidaria com esmero dos seus livros, pois a obra está encadernada, mas com cuidado de manter, no interior da encadernação, as capas originais. Estava a folheá-lo e deparei-me com um folheto, que presumi ser da mesma idade do livro. Publicitava o Méthode A.B.C. Este serviria para pôr um pobre mortal a desenhar e a pintar de um dia para o outro: Apprenez aujourd’hui à dessiner et à peindre par la Méthode A.B.C. Pena que não existisse em Portugal, escusava eu de passar pela humilhação de ser o pior aluno do colégio em Desenho, título que não foi confirmado em exame nacional, esclareça-se. Chego sempre tarde a tudo o que é essencial. O folheto tem inclusive alguns testemunhos que comprovam a eficácia do método, um cavalheiro de Seine-et-Oise, outro da zona de Charente-Maritime, uma menina – Mademoiselle – belga e, de Saumames-de-Vaucluse, outro cavalheiro, mas de nome português. Não consta que tenha ficado na história da pintura, apesar de se ter dado conta desde a primeira lição de reais progressos. Guardo o folheto dentro do livro, este na prateleira e olho a noite pura maculada pela iluminação pública e as luzes melancólicos do hospital. A sexta-feira declina.