segunda-feira, 11 de julho de 2022

Amnésia

Há um poema de Herberto Helder que começa assim: Pequenas estrelas que mudam de cor, frias / pêras ao alto / de raízes queimadas, ainda doces, profundamente / cor de turquesa – eu sei tudo. Afinal não sou só eu, pensei. Há mais gente que sabe tudo. O meu problema é que sofro de amnésia e não há coisa melhor, para quem sabe tudo, do que sofrer de amnésia. Um dia, um padre disse-me em tom jovial: sei tudo dos meus paroquianos, até as vezes que… Nesse instante, suspendeu a voz e deixou as reticências pairar sobre a conversa. Depois, recompôs-se e acrescentou o que me vale, perante tal sabedoria, é esquecer-me com facilidade. Há muito que sofro de amnésia, a princípio julguei ser um drama, agora sei que é uma bênção, mesmo quando esqueço um encontro, a hora de uma missa, uma reunião. Também uma médica conhecida me falou sobre a bondade da amnésia, não suportaria andar com os dramas pessoais dos meus pacientes dentro de mim, esqueço e isso permite-me viver. Ao nascermos, trazemos uma sabedoria infinita, como relembrou o velho Platão. Para que possamos viver, é necessário esquecer, sofrer de amnésia, cultivar o olvido e fomentar o oblívio. Eu sei tudo diz o poeta. Todos nós sabemos tudo, mas esquecemos, para afastar para bem longe a sombra da morte. Platão sabia-o bem, pois a filosofia era, ao mesmo tempo, uma tarefa de reminiscência e uma aprendizagem a morrer e a estar morto.

domingo, 10 de julho de 2022

Judeus portugueses

As coisas que se descobrem quando não se tem assunto para escrever. Toda a gente que tem um interesse mínimo por pintura já ouviu o nome de Camille Pissarro, um dos fundadores do impressionismo. Até aqui não há qualquer novidade. Ora, o pintor era filho de um judeu português de Trás-os-Montes, que fora para Bordéus com os pais, certamente para fugir à benevolência da Santa Inquisição. Duas das grandes figuras da cultura europeia – o pintor Camille Pissarro e o filósofo Baruch Espinosa – têm as suas origens em Portugal. As famílias de ambos não simpatizavam particularmente com a Inquisição e achavam deplorável a perseguição de judeus e foram-se embora. Outra figura eminente da cultura europeia, no campo da economia, é o britânico David Ricardo, também com origens sefarditas portuguesas. É possível, caso não existissem as benevolentes perseguições em nome da religião e do amor ao próximo, e as famílias tivessem por cá ficado, que essas pessoas não chegassem a ser o que foram. Também é possível que o país em que vivemos fosse hoje muito diferente. Para melhor. É possível que exista, mas eu não conheço. Refiro-me ao levantamento sistemático daqueles judeus sefarditas portugueses – ou dos seus descendentes – expulsos de Portugal e que se tornaram, nas diversas áreas, figuras fundamentais da cultura europeia. Ter a dimensão da perda talvez sirva de lição, embora eu tenha fundadas dúvidas sobre a capacidade de a humanidade aprender com os erros. Talvez a espécie humana seja já – em termos biológicos – demasiado velha, e burro velho não aprende lição. Outra hipótese é ser demasiado nova e o seu desenvolvimento cognitivo ainda não lhe permitir compreender estas lições. Vou ver se descubro alguma maneira eficiente de descansar neste domingo.

sábado, 9 de julho de 2022

Ondas

Uma onda de calor. Não bastava o calor, ainda tinha de vir em onda, por certo análoga àquelas ondas gigantes da Nazaré que parecem levantar-se para submergir este pobre país. Como há surfistas para essas ondas nazarenas, também, imagino, os haverá – que nome lhes dar? – para as ondas gigantes de calor. Por mim, um mero narrador sem narrativa, dispenso as duas. Tenho dias em que sigo uma filosofia portuguesa que se resume na máxima o melhor é não fazer ondas. Um dia por outro, contudo, gosto de provocar alguma ondulação, talvez uma manifestação saudosa dos tempos em que achava que a vida era provocar ondulações e que os seres humanos deveriam ser todos surfistas dessas ondas existenciais. Coisas da pós-adolescência e primeira juventude. Há quem fique assim até que a morte o leve. Acontece mais aos homens do que às mulheres, mais sensatas e pragmáticas. Os homens – refiro-me aos machos da espécie – têm mais propensão do que as mulheres para permanecerem eternas crianças. Consta que também os gregos da antiguidade clássica eram tidos, pelos egípcios, como eternas crianças, se for verdade o que um certo Aristocles – alcunhado de Platão – contou. Como em tudo, também sobre o nome de Platão há larga controvérsia. Uns acham que era alcunha, outros, nome verdadeiro, e que em Atenas existia mais gente com o nome de Platão. O filósofo – para dizer a verdade, talvez o único filósofo que jamais houve ao cimo da Terra – tinha uma certa tendência não tanto para o surf, mas para fazer ondas. Tantas fez que o seu nome e até os seus escritos chegaram até hoje, aproveitando as marés. O que me intriga é não saber como se relacionava ele com as ondas de calor, pois não consta que tenha vindo à Nazaré ver as ondas gigantes. Chamo a atenção para que o facto de não constar que tenha vindo não é prova suficiente que o não tenha feito. Sábado e calor perturbam-me os raros neurónios que tenho em funcionamento. Também o aparelho neuronal tem serviços mínimos, quando há greve.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Alentejo

Diante de mim, um guia do Alentejo. É um belo livro, não tanto pelo que diz, mas por aquilo que mostra. Como todos os guias, este traz os sítios onde dormir, comer e que coisas se devem visitar. Como já passaram 15 anos depois da sua publicação, muitas dessas informações serão irrelevantes. Outros guias teriam ido para reciclagem, mas este foi-se conservando, não porque servisse de informação para uma visita ao Alentejo, mas pelas suas fotografias. Têm dentro delas um sentimento de diferença. Uma rua de Estremoz recorda-me uma outra onde, na mesma cidade, vivi durante um ano. Era um mundo onde as coisas não apenas se passavam mais devagar, mas de um outro modo, como se tudo fosse aí mais sério e mais decisivo. Ora, não se devem tratar as coisas sérias e decisivas de forma rápida e leviana, como aprendi na primeira loja em que entrei. Naqueles dias ainda não havia, província fora, a febre das grandes superfícies. Todas as coisas sérias e decisivas precisam de demora, de lentidão, de repousado vagar. Fiquei a gostar do Alentejo, embora nunca faria o que um amigo meu fez há uns anos. Trocou o lugar onde vivia por uma pequena aldeia alentejana. A última vez que o vi, pareceu-me reconciliado com a existência. Eu não preciso de me reconciliar com a existência ou, então, não quero fazê-lo. Qual destas proposições será verdadeira? Não faço ideia. Deveria ir ao Alentejo, lá para os finais do Outono.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Memórias

A primeira semana de Julho está concluída. O calor instalou-se sem piedade. Até ao fim-de-semana que vem estão previstas temperaturas sempre na casa dos 40 graus, havendo dois dias que chegarão aos quarenta e quatro. Nestas alturas, os neurónios entregam-se a sinapses vagarosas e entediadas. Tudo na minha mente se processa como se fosse um filme em câmara lenta. Ainda mais lenta do que habitualmente, alguém mo recordará. É verdade que não tenho neurónios de piloto de Fórmula 1. Tenho estado a ouvir um CD do pianista de Jazz Marc Copland. Há muitas anos, assisti a um concerto dele, de que gostei bastante. Os anos passaram e esqueci o nome. Queria reavê-lo, mas a memória não cooperava. Sabia que havia um compositor de música erudita com o mesmo apelido – Aaron Copland – mas trocava-o sempre por um outro e a procura era sempre baldada. Encontrava um músico de Jazz, mas não um pianista. Antes um saxofonista. Há uns tempos, porém, fez-se luz e através de Aaron Copland cheguei a Marc Copland. Qual o preço disto? Como se sabe, tudo tem um preço ou, como se usa no calão político, não há almoços grátis. O preço foi esquecer o nome do saxofonista e do compositor erudito que tinha um apelido igual. Não há coisa em que os homens mais confiem do que na sua memória e não há faculdade mais frágil do que essa mesma memória. Presumo que no dia em que me lembrar daqueles que agora esqueci, um outro esquecimento encontrará ocasião para se manifestar. O esquecimento é a manifestação pela não manifestação. Não tarda, terei de sair e enfrentar o dragão do calor. Fora eu S. Jorge, e haveria de o trespassar com uma lança verrumante e impiedosa, mas não o sou.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Uma sesta

Em dias como o de hoje, com um calor proibitivo, tenho não apenas compreensão, mas uma súbita inveja da tradição espanhola da sesta. Há nela toda uma sabedoria que, nem sei bem por que razão, não passou a fronteira para o lado de cá. Claro que há pessoas que se dedicam a essa actividade no pós-almoço, mas isso não significa a existência de uma tradição. Com tudo isto, quero dizer que estou a cair de sono. Resisto, como um herói em tempo de guerra, pois tenho coisas para fazer, mas o mais sensato seria protelar e dormir. Num livro recebido ontem, logo no segundo parágrafo, dou com a seguinte prosa: Uma nebrina espessa, veloz que nem caruje de Inverno, descera dos cabeços, enovelara-se nos pinhais e rondava já nas ourelas da várzea que à raiz dos montes ia alargando, vale em fora, verdinha de pomares, uveiras altas e milheirais ramalhudos, luzidios de viços. Posto que se não measse inda Setembro, turvara-se o tempo após uns dias trovejados. O ar transpirava relentos mornos, pesavam abafuras enervantes, e por trás da barragem das névoas, bojavam, ameaçando subir e descondensar-se, negras carregações de nuvens, grossas como odres repletos. O texto pertence a um romancista quase desconhecido, Manuel Ribeiro, e ao romance Vínculos Eternos, publicado em 1929. O autor não pertencia a elite social do seu tempo. Nunca o li e não sei ajuizar se o seu esquecimento é justo ou injusto, mas pela amostra há uma coisa certa. Teria um belo poder descritivo. Quase se vê a paisagem que descreve. Isto não é pequena virtude. Manuel Ribeiro tem uma história de vida curiosa, mas que, por hoje, omito, para que se possa ficar com a nebrina e o caruje de Inverno, o measse inda Setembro e os dias trovejados, as barragens de névoas e as nuvens, grossas como odres repletos. Nada disto diz alguma coisa a um citadino, mesmo aos que pertencem àquelas cidades que não passam de pequenas vilas. Há ali uma funda experiência da terra e dos campos, nesses campos em que talvez ainda seja possível dormir uma sesta.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Ler legendas

Chego a casa e vejo as minhas netas deitadas no sofá, de olhos postos naqueles dispositivos que parecem ser o horizonte dos adolescentes. O que fizeram, pergunto. A mais velha, ergue o indicador e o médio de cada mão num V – de vitória, presumo – e responde: nada! Decido, desgraçadamente, ter uma atitude pedagógica e informo que o avô na idade delas, em tardes assim, onde não dá para sair de casa, lia e lia. Também lemos, avô. Depois de fazer um silêncio, acrescenta: as legendas. Ri-me e pensei que mais vale ler as legendas de séries e filmes do que só verem coisas dobradas. Lá chegaremos. Perguntei-lhe, à mais velha, se já tinha lido a Alice no País das Maravilhas. Já vi ou filme, respondeu. E que tal ler o livro? É um bocado infantil, avô. Optei pelo silêncio. Tomei consciência de que está a ser reeditada a obra discográfica de José Afonso. Pus-me a ouvir os primeiros álbuns, aqueles de que mais gosto, os que vão de uma combinação da tradição popular com a poesia erudita do início da nacionalidade até ao mais surrealista de todos, Venham Mais Cinco. Há muita gente que resume José Afonso a cantor de intervenção. Ele foi-o, claro, mas a sua música e muita da poesia que seleccionou para cantar estão muito para além disso. Quando penso na música que traduz o espírito de Portugal, seja lá isso o que for, penso sempre em José Afonso e Carlos Paredes. Então a Amália ou os Madredeus? Sim, cada um a seu modo, são uma representação do espírito português, mas há qualquer coisa indefinível dessa portugalidade que só encontro na música de José Afonso, nos primeiros álbuns, e na de Carlos Paredes. E isso nada tem a ver com a política. Agora, volto para a tarefa que tenho entre mãos, literalmente. Não sei como me meti nisso, mas hoje tenho um trabalho manual para realizar. Não vai correr bem. Talvez mais valesse ir ler legendas.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Efemérides

Por vezes, quando não me ocorre nada para escrever ou não tenho um desses acontecimentos do quotidiano que se inscrevem numa verdadeira gesta, consulto um certo blogue que escreve longos, informativos e ajuizados textos sobre as efemérides do dia. Hoje, quatro de Julho, é bastante rico, a começar com o dia da independência dos Estados Unidos, passando pela tomada de Jerusalém por Saladino, pela morte da Rainha Santa Isabel, de Portugal, pelo nascimento de Giuseppe Garibaldi. Não nego que todos esses eventos sejam importantes, aqui ou ali. Contudo, não poderia deixar de registar que foi a 4 de Julho de 1865 que foi publicado Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Suspeito, porém, que apesar do meu entusiasmo, não conseguirei convencer as minhas netas a lê-lo. Bem me poderia levantar e ir propor-lhes a aventura, mas temo que, deitadas no sofá, entretidas com os gadgets que invadiram a existência dos mortais, me olhem como se eu fosse um extraterrestre. Outro acontecimento digno de nota passou-se também a 4 de Julho, mas de 1811, o nascimento de Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha, essa mulher que traçou novos caminhos para o vinho em Portugal. Não declarou nenhuma independência, não transformou pão em rosas, não unificou um país, não conquistou nenhuma cidade, nem escreveu um livro, mas abriu caminho para que muitos encontrem um secreto prazer nesse produto que só gente civilizada pode compreender e amar, o vinho. Lembro-me, embora com pouca precisão, de que há um poema romano, presumo, traduzido por Jorge de Sena (disto, estou certo) em que o poeta afirma, com inteira razão, que o vinho é de gente civilizada e a cerveja, de gente bárbara. A Ferreirinha contribui para o crescimento da civilização por estes lados. O dia, por aqui, nasceu fresco e nublado, mas está a desnublar-se e promete chegar aos trinta e três graus. Há uma coisa que me está a irritar. Tenho ali o romance Lusitânia, de Almeida Faria. Isolado. Comprei-o há dias, via internet, num alfarrabista. Está pejado de furinhos, que não impedem a leitura, mas anunciam a traça do papel. Vou ter de o deitar fora, mas ainda não ganhei coragem. Tem boa aparência, mas quem vê caras, não vê corações.

domingo, 3 de julho de 2022

Inércias e domingos

Como eu sabia, o compromisso de ontem foi agradável. O problema é que me obrigou a fazer uma deslocação – aliás, pequena – que me retirou do estado de espírito em que me encontrava e que era marcado, fisicamente (sic), por não fazer rigorosamente nada. Estando em estado de repouso, o corpo pedia-me que assim ficasse. Tendo-me posto em movimento, logo o mesmo corpo pediu que assim permanecesse. Além de ser muito volúvel, ele sofre de inércia. Sublinho que é o corpo e não eu. A palavra inércia, para além das aplicações conceptuais em Física, tem múltiplos sentidos. Um deles é o de resistência passiva à inovação. Esta significação deve ter sido dada pelos adeptos furiosos da inovação. As pessoas que resistem à inovação permanecem num estado de repouso que é a tradição. Contudo, se esses hooligans inovadores tivessem compreendido o conceito físico de inércia, descobririam que também eles sofrem de inércia, já que não conseguem alterar o estado de movimento em que se encontram constantemente, sempre a deslocar-se daqui para ali, pois é sempre ali que se encontra o novo. Deveria proibir-me de escrever coisas destas ao domingo, embora os domingos de hoje já não sejam como os de outrora, em que as pessoas se endomingavam para ir à missa, as que iam, e as outras porque, irmanadas num espírito igualitário, partiam do princípio de que se uns se endomingavam, também os outros se deveriam endomingar. Agora ninguém se endominga e poucos vão à missa. Toda a gente quer dar o ar mais displicente possível, para que os outros imaginem que eles são pessoas do mundo, gente cosmopolita que não tergiversa perante os dias de descansos. Agora, tenho de ir saber a que horas chega o meu neto, que não se preocupa com inércias nem domingos. Por enquanto.

sábado, 2 de julho de 2022

Pagar a dízima

Acabaram de me perguntar o que eram sezões. Respondi são febres. Há palavras que abandonam o quotidiano das pessoas e que ficam presas no tempo, a dormitar na literatura. Hoje em dia ninguém sofre de sezões e cada vez se sofrerá menos de febres. Estas são sintomas e não doenças. Com o aumento da escolaridade, a linguagem médica penetra no senso comum e as pessoas designam as doenças pelos seus nomes. Parece que a vida da linguagem aponta para, a cada dia que passa, uma maior especialização e um aumento da capacidade de dizer a realidade, caso esta possa ser dita. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros, em que um quinto – estou de uma grande precisão – é feita dentro do mar, percorrendo para um lado e para o outro os seiscentos metros de um molhe. Isto é uma suspensão da realidade. Uma temperatura que não passa os 21 graus. Amanhã, retornarei a esse lugar para onde se prevêem, daqui a dias, quarenta e dois. Quando se diz que o deserto avança, imagino que seja a isto que se estão a referir. Com a aproximação das férias, nasce a preocupação com a literatura adequada a essa queda na fantasia. Pensei que não seria mau ler as aventuras de Arsène Lupin, de Maurice Leblanc, ou as de Fantômas, de Pierre Souvestre e Marcel Allain, uma literatura com que entretive algumas horas da adolescência. Não seria má ideia voltar a ler Georges Simenon, tanto os policiais de Maigret, como os outros romances. Simenon era um óptimo escritor. Talvez fosse melhor dar alguma atenção a Walter Scott e a Victor Hugo. Nada de coisas sérias. Também há coisas pouco sérias que me aborrecem. Estou a ler um romance – cujo autor omito – que, por vezes, me aborrece. As personagens são tão cultas e tão cheias de dilemas morais que, confesso, não consigo suspender a descrença, tal como ordena o imperativo de Coleridge. Os problemas que lá encontro são os do autor e não os das personagens. Há autor a mais e personagens a menos. Logo à tarde tenho um compromisso, que eu trocava de bom grado por ficar a preguiçar longamente. A realidade, porém, é o que é e há que lhe pagar a dízima.

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Uma estranha nostalgia

Envelhecer não significa apenas que o tempo de vida encolhe e a morte se torna cada vez mais iminente. Ao encolhimento do tempo de vida corresponde um outro encolhimento, o dos interesses. Durante toda a minha vida fui um consumidor de jornais. Um diário e múltiplos semanários. Há anos que acabei com a compra de jornais em papel, tendo acumulado três assinaturas digitais. Hoje, assino apenas um diário. Será que o leio? Comecei a explorar as minhas fidelidades e tomai consciência de que há muito só sou fiel a dois articulistas. Eram três, mas um morreu há dois anos. Mantenho a minha assinatura apenas para ler um artigo às sextas-feiras e outro ao sábado. Por vezes, leio um ou outro artigo de outros autores, mas sem fidelidade. Notícias, nunca as leio no jornal que assino. Elas estão de tal maneira disponíveis que se tornaram dispensáveis na imprensa. Imaginemos que um ministro troca as mãos pelos pés. Essa miraculosa operação é anunciada por tudo o que é sítio, não vale a pena ir ao jornal ler. Há uma coisa, porém, que faz falta em Portugal. Uma imprensa que tenha artigos que não sejam nem textos académicos, nem artigos de opinião. Esse meio termo existe em alguma imprensa internacional de qualidade, mas não entre nós. São pequenos ensaios que ajudam o público a entender a realidade. Por cá, o que interessa a quem escreve opinião é a espuma do dia, os terríveis dramas de que ninguém se lembrará daqui a meia dúzia de meses. Não faço ideia por que razão escrevi sobre isto. Terei sido assaltado pelas saudades de um tempo em que ainda se acreditava na frase de Hegel: a leitura dos jornais é a oração matinal do homem moderno. Talvez tenha deixado de ser um homem moderno e sofra, por isso, de uma estranha nostalgia.

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Não ter história

Ontem disse que a Arminda casou com o Gustavo, mas o casamento não foi ontem. Foi há mais de um século, em pleno século XIX. Para ser mais exacto, eles não casaram efectivamente, mas o romancista Teixeira de Queirós casou-os no romance os Noivos, obra publicada em 1879. Ontem estava a ler a descrição do casamento, um retrato da Lisboa burguesa, melhor da Lisboa onde uma certa aristocracia se cruza com a emergente burguesia nacional, ainda em fase de brunidura. Segundo alguns especialistas nas coisas literárias (Óscar Lopes e António José Saraiva), Teixeira de Queirós tinha um talento literário semelhante ao de Eça de Queirós. Apesar dos apelidos, julgo que entre eles não haveria qualquer relação familiar, mas estas coisas nunca se sabem. Junho acaba ventoso, com as temperaturas por aqui domesticadas. A partir de amanhã, porém, chegam aos trinta graus, lá para o fim da próxima semana batem à porta dos quarenta. A vida não passa desde perpétuo desequilíbrio. Estava tudo a ir tão bem, tão civilizado, e logo o tempo tem uma crise, um gosto desmesurado pela hipérbole, uma cultura do excesso, que tenho de suportar como posso. Não me perguntem se o casamento de Arminda e Gustavo foi feliz. Não faço ideia, ainda não cheguei lá, mas desconfio que não. Dos amores felizes não há literatura, pois não têm história. Caso exista um paraíso e uma vida eterna nele, também nada disso terá história, pois a história só começa com o mal. É ele que é preciso narrar, talvez, imagino, para esconjurá-lo. Felizes, as pessoas que não têm história, embora todos queiram ter uma. Os desejos pagam-se caro.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Sem narrativa

Há dias como o de hoje em que até um cavaleiro andante se sente no desemprego. Sem tortos para endireitar, sem mundos para pôr nos eixos, logo sem aventuras para delas dar notícia ao mundo. Fui à capital de distrito, que é um lugar aonde gosto de ir, mas nem aí se apresentou caso digno de menção. Diante de mim, acumulam-se as tarefas a que a minha diligência há-de pôr fim, embora esteja pouco inclinado para ser diligente. Está vento, sei-o porque vejo o ramalhar das árvores. As cevadilhas da escola aqui ao lado já perderam as flores. Estavam, ainda há dias, tão exuberantes, mas não suportaram a vinda do Verão. Não estou só no mundo. Na avenida, os carros passam devagar, não vá algum peão intrometer-se no reino dos automobilizados. Também devagar, vão os transeuntes. Algumas mulheres preocupam-se com as saias. O vento tem súbitos atrevimentos, mas ninguém estará interessado em ver aquilo que as saias deixam de tapar. O que me preocupa, neste momento, é o friso das orquídeas. Este ano, as coisas não correram pelo melhor. Umas ainda não floriram, outras deixaram as flores murchar rapidamente. Tivesse eu tempo, e falaria com Nero Wolfe. Ele, entre a resolução de dois crimes e três jantares, haveria de me dar uma solução para as pobres orquídeas. Não tenho tempo, infelizmente. Ah… a Arminda casou com o Gustavo. Estavam noivos e casaram. Isto vem a propósito de quê? De nada, mas talvez amanhã explique, caso deseje tornar-me um émulo do folhetinista Cerdeira.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Precipitações no juízo

Por certo, devido ao livre-arbítrio, precipito-me muitas vezes nos juízos que faço e promovo como verdadeiras crenças, que uma análise mais atenta revelará, ao menos dotado dos observadores, a sua falsidade. Imagino, embora seja uma presunção da minha parte, que haverá observadores ainda menos dotados do que eu. Entrei numa livraria. Bem, esta afirmação é falsa. Entrei numa superfície comercial que também vende livros. Dirigi-me às estantes onde está a literatura de ficção, em geral romances e contos, e deixei correr os olhos pelas lombadas dos livros. Passei por de Javier Marías para Amin Malouf e, antes de chegar a José Luís Mendonça, deparo, com grande surpresa minha, com o Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. Mas isto não é literatura, mas política, quanto muito filosofia política, disse de mim para mim. Devido ao meu livre-arbítrio, conjecturei de imediato que a pessoa que tem a função de arrumar os livros nas prateleiras não faz a mínima ideia dos géneros pelos quais os livros se podem dividir e arrumar. Em abono dessa pessoa desconhecida, tive também um pensamento benévolo. Pelo menos sabe que Marx vem antes de Mendonça e depois de Malouf, o que já não será mau. No entanto, aquela ideia de que a pessoa arrumadora não sabia distinguir os géneros poderá ter sido um juízo precipitado e falso. Ela pode ter pegado no livro, feito uma leitura rápida e achou que tudo o que lá se encontrava era pura ficção. Afinal, penso agora, as pessoas que arrumam livros não estão tão mal preparadas quanto pensei de início. Um leitor atento de Borges teria percebido de imediato o que estava em jogo. Há muito, porém, que não leio Borges e perdi o treino. Não se pense que há, no que escrevo, algum acinte para com a dupla Marx e Engels. Acontece com o que escreveram aquilo que acontece com todos os que escrevem sobre ideias. Políticas, morais, metafísicas, estéticas, religiosas, científicas. As suas obras chegam ao mundo com a pretensão de dizerem a verdade e, com o passar dos anos, transformam-se em literatura, pura ficção, romances, novelas, contos, disfarçados de ensaios, tratados, artigos especializados, sei lá. Veja-se o exemplo dos diálogos platónicos. Literatura e da melhor; o que se pode dizer de Platão, pode afirmar-se de Aristóteles e de todos os que se entregaram à ensaística. O destino de qualquer livro é tornar-se ficção, mesmo os mais ferozmente científicos. Foi isto que aprendi com a sábia decisão de quem arrumou Marx e Engels e o seu popular Manifesto entre a literatura de ficção. Terei de me precaver para evitar, no futuro, a precipitação ao formular juízos. 

segunda-feira, 27 de junho de 2022

D. Taresia

Começámos mal, e o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Descubro que tenho uma autêntica colecção de provérbios ao gosto popular. Isso mostra que o meu pensamento, caso tenha um, é puro senso comum. Este mal começar refere-se a Portugal, este país soalheiro, inclinado para o Atlântico, onde se comem farturas e se acompanham as imperiais com pires de tremoços. Como a minha ignorância é muito vasta, não sabia uma coisa que só hoje descobri. A Bula Fratrum Nostrum, de 18 de Junho de 1116, do Papa Pascoal II, reconhece D. Teresa de Leão, a mãe de Afonso Henriques, como Rainha de Portugal. Mais, ela foi reconhecida como Rainha também por Urraca de Galiza, Leão e Castela, sua irmã, e, posteriormente, pelo filho desta, Afonso VII de Galiza, Leão e Castela. Depois, as coisas entornaram-se entre as irmãs e, como costuma acontecer, houve guerra. Afinal, o primeiro rei de Portugal foi uma rainha – assinava: Ego regina Taresia de Portugal regis Ildefonssis filia – o que não deixa de ser particularmente perturbador para nós, homens portugueses, os mais másculos neste mundo e mesmo no outro. Em vez de um patriarca, um macho alfa autêntico, temos uma matriarca originária. O que nasceu torto, porém, não foi o facto de ser uma rainha e não um rei que inauguraram esta aventura, mas aquela história da batalha de S. Mamede. Um acto de sedição. Mal a coisa tinha começado, tivemos logo direito a um golpe de Estado. Ainda por cima, a revolta de um filho contra a mãe, o que dá uma tonalidade psicanalítica, embora invertida, à nossa nacionalidade. Não sei como se poderão sentir todos os varonis aficionados deste meu Ribatejo, educados numa tradição monárquica que remonta a Afonso I, sempre prontos à camaradagem máscula para defrontarem os toiros, quando souberem isto, que afinal foi uma mulher quem, pela primeira vez, pegou o toiro pelos cornos, isto é, o governo de Portugal. Por mim, não me importo que o primeiro rei tenha sido uma rainha, já vi no mundo muitas coisas, mas que se lhe dê o nome pelo qual assinava. Ter uma D. Taresia por rainha é muito diferente de ter uma qualquer Teresa. Começou a semana, e a utilidade desta não faz bem a ninguém.

domingo, 26 de junho de 2022

Um pecado capital

Na sexta-feira, passei o dia a julgar que estava no sábado. Ontem, não foram poucas as vezes que pensei ser domingo. Hoje, porém, não acho que seja segunda-feira, mas também não acho que seja domingo ou outro qualquer dia da semana. Há dias assim, dias que não estão azados para serem seja o que for. São dias sem qualidades. Tanto podem ocorrer ao fim-de-semana, como durante a semana, naqueles dias a que se deu, pela sua inutilidade, o nome de dias úteis. Não se pense que venho aqui, como o fez o genro do senhor Marx, fazer o elogio da preguiça. Ela não precisa de elogios. O pior é que é um pecado capital. Começou por ser designado acédia, mas alguém achou por bem mudar-lhe o nome. Estava, porém, a falar dos dias sem qualidades. O que distingue as coisas e lhes dá a sua individualidade é as qualidades, ou, melhor, a combinação destas. Portanto, hoje vivo um dia indistinguível, pura substância sem acidentes. Imagino que estas ideias só me ocorreram depois de almoço, o que pode ser um sinal de que não bebi água à refeição. É uma possibilidade, mas não confirmo nem desminto. Seja como for, quem me falou de acédia foi o padre Lodo, na chamada dominical. Costuma dizer que ao domingo tem de dizer missa e falar com os amigos. Desconheço a ordem pela qual cumpre a tarefa. Seja como for, disse-me que estava a sofrer de acédia. Temia estar estuporado e não se interessar nem por ele nem pelo que se passa no mundo. Ando há dias assim, vociferou. Sugeri-lhe um psicanalista. Ele riu-se. Não sabe que sou jesuíta, perguntou-me. Sei, sei bem, mas talvez ajudasse. Um jesuíta não se psicanalisa. Confessa-se. Respondi que no foro da consciência de outrem eu não me intrometia. A cada um a sua fé. Ele riu-se e perguntou-me quando iria a Lisboa. É que tinha descoberto um pequeno restaurante que merece bem uma visita demorada. Eu pensei que a acédia era sol de pouca dura.

sábado, 25 de junho de 2022

A invenção do tempo

Talvez seja uma doença, uma adicção. Logo de manhã, recebi um, ou será uma?, sms indicando que o livro que tinha encomendado já estava na pequena fnac que há nesta pequena cidade. Não me precipitei. Deixei passar a manhã e quando, nas torres das igrejas, batia a uma da tarde entrei pela superfície comercial, mas não me dirigi logo ao balcão para fazer o levantamento. Havia que ver os livros. Estava a olhar para as estantes quando me lembrei que um amigo me tinha dito que o último romance do Houellebecq, Aniquilação, é bastante bom. Procuro-o e lá estava ele com os seus 4 centímetros de lombada e 640 páginas. Ao lado estava Serotonina, o penúltimo do mesmo autor e que não tinha comprado. Este é mais comedido. A lombada não chega aos 2 centímetros e as páginas não alcanças as 280. Já podia dirigir-me ao balcão para levantar o que tinha comprado online, o romance de Almeida Faria, Cortes. Quando me desloco da estante para o balcão passo por um outo móvel pejado de livros. Fico a olhar. Peguei num pequeno livro de Ludmila Ulitskaya, um romance denominado Sonechka, com uma miserável lombada de 1 centímetro e que não chega às 120 páginas. Mais centímetro, menos centímetro, peguei também nele. Podem achar que interessar-se pelos centímetros das lombadas é coisa de gente que enlouqueceu. Não os desminto, mas o problema é que cada 10 centímetros de lombadas exigem 10 centímetros de estante. O que me levou a comprar o livro da Ulitskaya foi o que dizia numa das badanas: Para Sonechka, a leitura tornara-se uma forma ligeira de loucura, que não a abandonava nem durante o sono: dormia como se estivesse a ler os seus sonhos. Sonhava com romances históricos cativantes e, pela natureza da acção, adivinhava o tipo de letra e, estranhamente, sentia os parágrafos e a pontuação. Isto convenceu-me. Nunca tive inclinação para o romance histórico, mas, agora que não tenho pouca idade, descobri que isso era um erro. Eles são uma espécie de ficção científica ao contrário. Esta, muitas vezes, inventa mundos futuros. Os romances históricos inventam mundos passados. Que diferença há entre eles e os romances que se presumem num presente? Nenhuma, pois todos fazem o mesmo. Inventam um tempo. Agostinho de Hipona, um converso ao cristianismo, num arrebatamento confessional escreveu: Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei. Estas palavras têm sido citadas milhares e milhares de vezes, como introdução ao enigma do tempo. Talvez não exista enigma nenhum. Porquê? Porque não existe tempo. Então por que razão temos a sensação de que ele existe? Porque contamos histórias. O tempo é aquilo que as nossas histórias – os romances, por exemplo – inventam. Uma curiosidade. A Ludmila Ulitskaya e o Almeida Faria nasceram ambos em 1943. Ela nos Urais e ele no Alentejo. Não se pode dizer que sejam sítios fáceis para nascer.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Com papas e bolos

Por razões que não vêm ao caso, tenho estado a ler um romance de Luís Augusto Rebelo da Silva, Lágrimas e Tesouros: Fragmentos de uma História Verdadeira, publicado no ano de 1863. O título não é particularmente prometedor. A acção passa-se no tempo de D. Maria I e centra-se na figura de William Beckford e da sua viagem ao mosteiro de Alcobaça. A descrição da recepção do aristocrata inglês e dos priores – de Aviz e de S. Vicente – que o acompanhavam é um exercício de ironia que nos retrata muito bem. Não deixa de ser interessante que, desde o século XVIII, se democratizou aquele estilo pomposo e provinciano de recepção de gente reputada como importante, tão bem descrito por Rebelo da Silva. Encontramo-lo numa câmara municipal se lá vai um ministro, numa instituição pública se um superior na hierarquia burocrática a visita, provavelmente numa paróquia, se o bispo ali se desloca. Não se trata, todavia, de uma mera saloiice, mas de um acto de fina manhosice com que os que estão em baixo tentam, e muitas vezes conseguem, enganar quem está acima. O ridículo em que facilmente se cai é menos ridículo do que parece, é um exercício gongórico para apaziguar e, se possível, cegar as potestades que têm um poder despótico, mesmo num regime democrático. Penso muitas vezes que os portugueses cultuam os que estão acima apenas porque não os podem matar. Como não se pode democratizar o homicídio, democratizou-se esta arte de bem receber que assenta no provérbio com papas e bolos se enganam os tolos. De resto, somos um povo pacífico, apesar de no século passado termos assassinado um Rei, um príncipe herdeiro, um Presidente da República e de termos falhado por um triz o homicídio de um Presidente do Conselho. Nem sempre os homicidas são competentes.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Mouras encantadas

O meu apaziguamento com S. Pedro é total. Está um magnífico dia de Outono. Temperatura amena, o sol escondido por nuvens não ameaçadoras, um vento moderado. Talvez a chuva faça uma visita, mas sem excessos. O dia está de tal modo que comecei a imaginar que não faltaria muito para o Advento e logo chegaria o Natal. Eu sei que este tempo é sol (ou antes falta de sol) de pouca dura. Estou sem assunto. Enquanto este – o assunto – me vai faltando, oiço a música do tunisino Dhafer Youssef. Veio de outro mundo, mas a sua estranheza não é inquietante. Pelo contrário, há nela qualquer coisa que estabelece uma relação com um ouvinte ocidental. Talvez acorde imagens vindas da infância, de um tempo em que se ouviam histórias sobre mouras encantadas. É possível que já não se contem histórias de mouras encantadas. Não as contei aos meus filhos nem aos meus netos. Talvez devesse sentir remorsos por o não ter feito, mas nunca me ocorreram. É assim que se quebram tradições. As coisas entram no reino do esquecimento e desaparecem. Este desaparecimento, todavia, não significa uma dissolução dessas coisas no nada. De súbito, elas reaparecem e saudamo-las com o coração aberta, como se fossem um velho amigo que há muito não víamos. Aqui, nesta cidade onde enfrento o duro peso da realidade, também viveram, há muito, mouros e, por certo, mouras. Imagino que algumas possam ter sido encantadas, outras foram apenas encantadoras. A estas, a morte levou-as. As outras estão por aí invisíveis à espera da hora em que possam manifestar-se numa qualquer história que um pai conta a um filho. O Outono benfazejo progride por dentro deste Verão. Quando se não tem assunto, fala-se do tempo. Eu sigo à risca o adágio.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Aristocratas falhados

No ano de 1883, Alberto Pimentel publica um romance com o título Aventuras dum Pretendente Pretendido. Os dois primeiros curtos parágrafos são um retrato do país. Cito-os, mas como se fossem apenas um: Portugal é um país de pretendentes e de ministros. Começa-se por pretender qualquer coisa e acaba-se por pretender qualquer pasta. Estas coisas vêm de longe e, provavelmente, irão para longe. Somos um país cheio de pessoas com pretensões. Estas, aliás, alimentam uma boa parte da nossa literatura e não apenas a de segunda classe. Talvez sejamos todos aristocratas falhados. Pode haver mesmo uma causa genética para tamanho desgosto com aquilo que se é e tanta azáfama para se ser o que não se é. Há tempos, embora não me lembre quando, li que um especialista em genealogia, dos mais reputadas, asseverava que todos os portugueses são descendentes de Afonso Henriques. Não serei eu que o vou desmentir, mas sendo assim já se percebe de onde vem este vício da pretensão, que se terá tornado em virtude. Também Afonso Henriques, um dia, pretendeu ser Rei. Daí, por via genética, através de uma rede de trocas de genes, umas legais outras nem por isso, a pretensão fez caminho e aninhou-se no coração de cada português, neto longínquo daquele que, entre nós, mais pretensão albergou. Aliás, isso explica por que razão vivemos numa República. Seriam tantos os pretendentes à coroa, que o melhor é que nenhum a use e que se pretenda outra coisa, nem que seja a pasta de ministro.