domingo, 20 de agosto de 2023

Exclusões e omissões

A Ípsilon e o Capa separaram-se, informaram-me. É pena, respondi, gostava dos três. Dos três? Sim, da Ípsilon, do Capa e do casal que ambos faziam. Eles é que, parece, deixaram de gostar do terceiro elemento, daquilo que os fazia um casal. Isto, porém, são suposições, acrescentei, para evitar distorções comunicacionais. Sabe-se lá as razões que os outros têm para os seus actos. Nem as nossas, quanto fará as alheias. Não sei bem a causa, mas lembrei-me de uma passagem do livro de contos Ficções, de Jorge Luís Borges, onde alguém estreita com outro alguém uma dessas amizades inglesas que começam por excluir as confidências e que muito em breve omitem o diálogo. Não sei se a citação é completamente fiel, mas presumo que sim. O que se pode discutir é se a exclusão das confidências e a omissão do diálogo são condições de possibilidade da amizade – pelo menos na modalidade inglesa – ou se são uma consequência dessa amizade. Nunca esqueci esta frase e sempre a achei uma ideia reguladora das relações humanas. Fundamentalmente, na parte que diz respeito à exclusão de confidências. Pergunto-me, agora, se esse ideal das relações humanas não poderia salvar o casamento da Ípsilon com o Capa. Talvez, especulo, por defeito de formação, se desde o início excluíssem confidências mútuas e em breve tivessem omitido o diálogo, o casamento fosse mais robusto e não tivesse naufragado. A maioria das confidências que dois seres, ligados pelo desvario de Eros, fazem entre si são inúteis, e aquelas que não são inúteis, o melhor é não as fazer. Que cada um guarde para si aquilo que tem de perturbante na vida. A omissão do diálogo, numa era em que toda a gente pretende expressar-se e comunicar, terá as suas vantagens. Não havendo diálogo – isto é, não havendo recurso ao logos a dois, ao esgrimir de razões – não se dizem coisas que depois abrem buracos no pano cru da vida comum. Eu sei que esta omissão é difícil, pois todos nós temos uma acentuada inclinação para a tagarelice, mas a troca de palavras não tem de ser um diálogo. Por outro lado, e esta é a minha tese para hoje, os seres humanos têm outros recursos para além de usar os órgãos que conduzem directamente à discussão e à dissensão. Um casamento não é um parlamento.

sábado, 19 de agosto de 2023

Sem impunidade

Não é raro, pelo contrário, durante a noite, naqueles momentos que antecedem a queda no sono, ser invadido por ideias extraordinárias, assim me parecem naqueles breves instantes, sobre coisas a escrever. São projectos que estão longe da insensatez. Depois, adormeço e, ao acordar, não consigo encontrar o menor indício desses pensamentos. Julgo que a noite passada, depois de ter fechado o livro de Alexander Kluge e apagado a luz, essas ideias claras e distintas assaltaram-me, mais uma vez, motivadas, imagino, pelo que acabara de ler. Hoje não me lembrava de nada, como é hábito. Da Cónica dos Sentimentos, de Alexander Kluge, estão publicados, em Portugal, dois volumes. Cada um deles ronda as quinhentas páginas, mas estas são de pequenas dimensões. Parecem livros de bolso, embora com um tamanho de letra decente. Por curiosidade, fui procurar a edição francesa e tive um choque. Os dois volumes publicados em França ultrapassam, cada um, as mil páginas. Procurei, depois, a edição alemã. Também a soma das páginas dos dois volumes ultrapassa as duas mil. Parece que, enquanto português, só tenho direito a uma selecção dos textos originais. Sempre posso comprar a edição francesa, é verdade. No início do segundo volume da edição portuguesa, num texto com cerca de uma página, Kluge, a certa altura, escreve: Um dos castigos de Deus é o do afundamento no terreno da realidade. Há os que perdem todas as ilusões (perda de realidade). E há os que perdem o tempo em que vivem (perda da História). Ambos os casos crescem a olhos vistos. Ora, há muito que eu descobri que tanto a realidade como a História são coisas pouco frequentáveis, ambas umas megeras do pior. Por isso, nada tenho contra cair para fora da realidade e da História. O problema, porém, é que ambas, após cada queda, voltam a entrar pela porta dentro, ainda uma pessoa está na cama envolvida por ligaduras que escondem as terríveis escoriações, pois cair para fora da realidade ou da História é sempre um grande trambolhão. Mesmo os padres do deserto, uma forma antiga de cair fora da realidade e da História, apesar da vida pura de oração e de combate feroz ao demónio, tinham marcas assinaláveis das quedas sofridas. Nunca se cai impunemente.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Em ordem

Uma garrafa de água, quatro folhas A4 de cartolina preta, duas caixas de óculos, uma coluna redonda, um marcador de livros, uma revista Electra, um telemóvel, uma ficha para ligar cabos USB à rede eléctrica, um monitor, tudo isto para além de um teclado, de um tapete e o respectivo rato. Por outras palavras, a secretária está um caos. Detesto o mundo caótico, pertenço à tribo daqueles que preferem o cosmos ao caos. Consta que será devido à posição dos astros no momento do nascimento. A verdade, porém, é que não faço ideia nenhuma do momento do meu nascimento, quanto mais da posição dos astros nessa hora. Depois de um almoço de sardinhas assadas, a disposição para fazer alguma coisa que me interesse é nula. Resta-me enumerar a desarrumação e pensar que tenho por finalidade, no dia de hoje, pôr a secretária em ordem, o que me levará alguns, poucos, minutos. Ficará como uma casa de um país escandinavo, ou, pelo menos, como a ideia que tenho sobre as casas nesse mundo longínquo. Não há quem não tenha mitologias privadas. Também as possuo. Uma delas é que sou habitado por um gene nórdico. Este manifesta-se, entre outros sinais, pelo conflito com o tempo quente do Sul, um ódio persistente ao Verão, para ser mais exacto. Contudo, há coisas que desmentem essa ideia. Por exemplo, o prazer que certos produtos mediterrânicos me dão. Haverá coisa mais extraordinária do que o vinho e o azeite? Não, não há. Ora, naquelas paragens onde teria habitado, em tempos, esse meu suposto gene, não há possibilidade de fazer azeite, nem sequer vinho, pelo menos com decência. Não passo de um sulista com fantasias nórdicas, que sonha com as paisagens de certos filmes de Ingmar Bergman, como as de Os Morangos Silvestres, obra que já vi não sei quantas vezes, talvez tantas quanto Um Táxi Cor de Malva. Vou entregar-me ao suplício da arrumação.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Uma questão genética

É possível que seja genético. Aliás, não há mal que não seja creditado na conta-corrente dos genes, da herança genética, para ser mais preciso. A situação não deixa de ter a sua curiosidade. A herança social, seja cultural, de status ou económica, tem sempre uma certa possibilidade de reversão. A genética, não. Isso deixa-nos uma certa tranquilidade, pois se os genes são maus, aquele que os recebeu em herança nada fez para os ter. Não somos, por enquanto, responsáveis pelos genes que temos, apenas por aqueles que transmitimos ou pelo facto de os transmitirmos. Tenho o discurso à deriva. Quando escrevi É possível que seja genético, tinha uma certa intenção. Queria sublinhar que todos nos comprazemos, por semelhança genética inerente à espécie, na partilha de certos males. É um modo de combater a solidão. Isto vinha a propósito de um assunto que, entretanto, esqueci. Queria falar sobre ele, mas imagino, agora que ele me abandonou, que não deveria ter qualquer importância, o que faz lembrar a fábula da raposa e das uvas. Esta fazia parte de um livro de leitura da escola primária. Como é possível lembrar-me disso e não daquilo que tinha, há instantes, pensado como motivo deste texto? A versão que li não foi a de Esopo, nem de La Fontaine, mas de Bocage, em verso. Também eu volto o focinho, quando cai alguma parra, pensando que era um bago, o que se desprendia da alta latada. Talvez este texto estudado tão lá atrás tenha contribuído para que um dia me tivesse interessado sobre a distinção entre a aparência e a realidade e como a raposa tenha sempre confundido a primeira com a segunda. Será, também, genético.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Falta de luz

Tinha por objectivo escrever sobre o facto de não ter objectivos. O problema é que a noite está a cair e perdi a oportunidade de o fazer. Para meditar sobre a vexata quaestio de não ter objectivos é necessário que a luz do sol brilhe. Para quê? Para iluminar a meditação e evitar que me arraste por caminhos tortuosos. Leio ao acaso, num livro que hei-de começar a ler um destes dias: As voltas e reviravoltas dialécticas da Fenomenologia de Hegel constituem sem dúvida uma doutrina esotérica. Também algumas considerações que faço por aqui constituem partes de uma doutrina esotérica, mas que é de tal modo secreta que nem o seu autor, talvez por ser destituído de inclinação dialéctica, a consegue decifrar, apesar de ter sido, noutros tempos, iniciado em diversas dialécticas, entre elas a do senhor Hegel. Há quem ache, porém, que o problema do autor reside no facto de possuir uma mente confusa, uma mente a que falta clareza e distinção, como se pode ver pela proposição tinha por objectivo escrever sobre o facto de não ter objectivos. O livro onde Hegel é trazido à colação tem por título Sinceridade e Autenticidade, de Lionel Trilling, publicado em Portugal pela Imprensa da Universidade de Lisboa, uma editora com um belíssimo catálogo, apesar de relativamente exíguo. O que me levou a comprar o livro foi o índice. Este contém a designação de seis conferência dadas pelo autor em Harvard, no ano lectivo de 1969/1970. Por exemplo, a segunda conferência, ou palestra como é designada, denomina-se “A Alma Honesta e a Consciência Desintegrada”. Agora, é noite escura, altura pouco propícia a meditações luminosas, apesar da opinião contrária de S. João de Ávila.

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Livre-arbítrio

Este é o feriado menos visível no conjunto dos dias em que a realidade quotidiana dá lugar a uma outra realidade, onde se distingue a marca da excepcionalidade. Nos dias que correm, a excepcionalidade não provém da sacralidade do dia ou do seu significado cívico, mas do facto prosaico de o tempo ser propriedade da própria pessoa. Nos outros dias, as pessoas alugam o seu a terceiros ou a si próprios, pois possuem corpo e este tem um conjunto de necessidades que exigem o mergulho no tédio da quotidianidade, com a sua procissão de horas de trabalho. Uma das grandes questões da existência é a da negociação que cada um tem de fazer para ser proprietário do seu próprio tempo, para o poder dispor segundo o seu arbítrio. Isto supõem que este, o arbítrio, seja livre. Caso não exista livre-arbítrio, então nada do que foi dito faz sentido. Tudo se inscreve numa cadeia causal e aquilo que acontece a cada um está determinado de tal modo que a sua vontade vale rigorosamente zero. Hoje, no uso do meu livre-arbítrio, fiz um número significativo de pontos cardio. Começo a fazer caminhadas, agora que o pé direito se está a libertar das consequências da intervenção a que foi sujeito. As minhas netas estão a fazer as malas e não tarda vão-se embora. A casa vai ficar mais vazia. Perante o facto, começo a desconfiar da minha crença no livre-arbítrio. Talvez exista uma incompatibilidade entre os diversos livres-arbítrios e será ela que nos dá a ilusão de que o determinismo é verdadeiro. Vale-me ser feriado. Não se perde tudo.

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Sem moralidade

Não sei bem a razão, talvez a fome devido ao atraso do almoço, mas na minha mente, até eu tenho uma, dançou a ideia de falar sobre a teoria do flogisto e os processos de combustão e de calcinação decorrentes da libertação dessa matéria imaterial que seria o flogisto. Apesar do esforço do Georg Ernst Stahl, um médico alemão e também químico, para fortalecer a sua teoria, pois foi ele que a criou, embora não do nada, pois ex nihilo nihil, Antoine de Lavoisier, um francês e químico, mostrou que Stahl vivia num mundo fantasioso e explicou a razão por que as coisas entram em combustão. A vida, contudo, nem sempre é justa para quem se entretém a fazer descobertas acertadas. Consta, pelo menos em certa enciclopédia geral produzida por autores anónimos e benévolos, que o matemático Joseph-Louis de Lagrange disse: Não bastará um século para produzir uma cabeça igual à que se fez cair num segundo. Ora, a cabeça que se fez cair num segundo foi a de Antoine Lavoisier, no dia 8 de Maio de 1974. Vivia-se uma época em que, por França, as cabeças rolavam em quantidade e a grande velocidade. Não consta que Stahl tenha perdido a sua, apesar do erro que ela produzira. Pelo contrário, acabou a vida – talvez na cama – como médico de Frederico I da Prússia. Esta história, apesar da aparência, não contém qualquer moral que se possa extrair para edificar os leitores. É uma descrição de factos e nos factos, por muito que se procure, só existem factos e não ideias morais. Lá dentro qualquer coisa se agita, as adolescentes fazem-se ouvir, talvez tenha chegado a hora de almoço. O que também não contém qualquer moralidade.

domingo, 13 de agosto de 2023

O amor à conspiração

Imagino que todos nós amemos conspirações. Há aqueles que fazem desse amor uma razão de vida. Em tudo vêem conspirações e por detrás destas descobrem agentes obscuros, embora possam ser nomeados, que conjugam uma inteligência diabólica e uma vontade malévola. Não vale a pena dar exemplos. Contudo estes amantes das teorias da conspiração são péssimos na arte de as amar. Um autêntico amante de conspirações, um daqueles que não apenas leu, nas versões aplicadas ao amor do conspirativo, a Arte de Amar, de Ovídio, mas também a Metafísica do Sexo, de Julius Evola, sabe que tudo é conspiração e que essa omni-conspiração se funda na conspiração das conspirações, a conspiração essencial. O modo de vida que agora se leva resulta de uma conspiração contra o modo de vida que se levava na infância. Toda a conspiração – para os amantes autênticos e letrados de conspirações – está assente no objectivo de nos destruir a infância. É evidente que nunca ninguém teve uma infância, pois quando estamos nela não temos consciência de que aquilo é a infância, e quando saímos dela já a perdemos. Então, o organismo, guiado pelo cérebro, põe-se a inventar a infância e, ao mesmo tempo, descobre a terrível conspiração contra essa infância fantasiada, conspiração que visa matar-nos a boa vida e os bons tempos em que éramos infantes. Se se reparar com atenção, todas as teorias da conspiração – tratem elas da terrível conspiração que nos quer fazer crer que os homens foram à Lua ou pretendam alcançar a dominação mundial através da disseminação da ideia de que Terra é redonda ou que houve uma pandemia do COVID-19 – são reconfigurações dessa conspiração contra a infância que cada um inventa. Por isso, estamos constantemente a dizer que eles estão a fazer isto e aquilo. O isto e aquilo não interessa o que seja, o que interessa mesmo é que o eles se refere a esses conspiradores que estão em toda a parte e cuidam não de nós, mas da destruição da nossa infância, isto é, de uma coisa que nunca tivemos.

sábado, 12 de agosto de 2023

Do sublime

Um dos capítulos, pequenos capítulos, diga-se, termina assim: Portanto, é essencial dirigir todos os olhares para essa cena terrível. A questão, porém, é se todos os olhares suportam cenas terríveis. Como se sabe, existem olhares fracos e fortes, olhares impiedosos e olhares grávidos de piedade. Será que todos eles são capazes de enfrentar cenas terríveis? A ideia de quem escreveu a frase é de que os olhares, ao depararem com o terrível da cena, ficariam horrorizados e rejeitariam a peça que ali conduz. Eis um erro de perspectiva. Haveria olhares, talvez mais do que se pensa, que ficariam fascinados pela visão, e o fascínio seria tal que nasceria na vontade de muitos o desejo de repetir, senão mesmo de multiplicar, aquela cena tida como terrível, pois neste reside também o sublime e este, por pavoroso que seja, tem poderes encantatórios sobre as almas, e não apenas sobre as mais fracas. De que estou a falar? Isso é irrelevante e não vem ao caso. O particular é apenas o exemplo de uma lei universal. Pensamentos destes, inúteis e confusos, nascem em certos sábados de Agosto, em que o almoço se prolonga mais do que é devido, onde o passar das horas tem o condão de aniquilar a censura que todos trazemos dentro do coração ou que ostentamos por decoro.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Em quarta mão

Vender produtos em quarta mão. O produto para venda é a ideia de que, em certa altura, no mercado parisiense de Les Halles se produzem mais figuras de estilo num só dia do que em toda a Eneida. Porquê quarta mão? Porque vi a afirmação num artigo de António Guerreiro no Público. Este repetia o gramático Pierre Fontanier (1765-1844), que por sua vez ecoava (sic) o poeta Nicolas Boileau, nascido em 1636. O assunto que motiva o texto de AG não me interessa, mas a frase orienta o olhar para uma realidade diferente daquela que esperamos. Cremos que a linguagem comum seja mais dada à referencialidade directa, menos propensa à equivocidade semântica, enquanto a literária seria um trabalho de jardinagem em que se cultivaria o adorno discursivo através do recurso às figuras de estilo. A realidade poderá ser outra. A linguagem comum – e haverá linguagem mais comum, mais corrente ou vulgar, do que aquela que se usa num mercado? – será um lugar borbulhante de inovações semânticas, uma espécie de fogo-de-artifício contínuo, onde a linguagem se inventa, se cria e recria, além de se recrear, enquanto o trabalho literário é um exercício de contenção desde borbulhar, a troca da exuberância de um vinho espumoso, por um denso e austero tinto, com uma longa vida ainda pela frente. A arte poética não estaria tanto no metaforizar, mas no conter da metáfora dentro de uma frugalidade rigorosa. Com tudo isto quero apenas dizer que produtos em quarta mão podem ajudar muito bem a pensar e que a sabedoria reside na reciclagem e não na produção contínua de desperdício.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Animação extramusical

Como temia, repetiu-se no concerto de ontem a cena do de domingo. Quem comprou os bilhetes online tinha-os com indicação de lugar, ao contrário de quem os comprou na bilheteira. A organização ainda tentou sentar, no seu lugar, a pessoas com lugares marcados, mas em vão. No meu, estava um senhor que, fui de imediato informado pela funcionária da organização, se recusava sair daquele lugar, aquele era o dele, desse por onde desse. Teria mais uns vinte anos do que eu. Só pedi que nos dessem quatro lugares seguidos e que não fôssemos incomodados pelos detentores daqueles lugares. Uma confusão sem fim, que atrasou o concerto em quase vinte minutos. De vez em quando, o pianista, Artur Pizarro, espreitava, meio divertido, a confusão. Tudo acomodado, a organização pediu desculpa, mais uma vez, mas a responsabilidade era da empresa que vendia os bilhetes online. A tradição ali é não haver lugares marcados, o que dava razão ao senhor que ocupara, de modo selvagem, o lugar que deveria ser o meu. Depois de agradecer o aplauso do público no fim de tocar as peças de Fauré, o pianista informou os presentes de que o cachet para solista era maior que o dos artistas de música de câmara e que ele tinha contas para pagar, precisava de receber como solista. Disse-o em português e em inglês. Depois, pediu para desligarem os telemóveis. Alguém se entreve a receber mensagens enquanto o concerto decorria, num diálogo com a música de Gabriel Fauré. Para além do desempenho de Pizarro, o programa extramusical foi dos mais interessantes a que já assisti e as minhas netas estavam divertidíssimas com a animação ou talvez com a expectativa de irem à feira andar de carros de choque, que nunca se sabe o que vai na cabeça de qualquer adolescente.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Perplexidades

Há um quadro famoso do pintor florentino do século XVII, Lorenzo Lippi, que alimenta inúmeras controvérsias, a começar pelo título da obra, Mulher com Máscara ou Alegoria da Simulação. São múltiplos os ensaios interpretativos, com a exploração da simbólica presente no quadro – a máscara, na mão direita, e a romã, já fendida, na esquerda – e também da figura da jovem mulher. Há duas coisas que me deixam perplexo. Em primeiro lugar, a indecisão sobre a acção representada. A mulher está a tirar ou a pôr a máscara, ou nem uma coisa nem outra, apenas a exibe sem intenção de a utilizar? O mesmo se passa com a romã. Foi acabada de receber ou, pelo contrário, está a ser oferecida, ou é apenas uma exibição do fruto? A segunda perplexidade deve-se ao estranho afastamento entre os dedos anelar e médio da mão direita, a que segura a máscara. Olha-se e fica-se com a sensação de que ali caberia outro dedo ou que falta um dedo entre aqueles dois. Estas duas perplexidades parecem-me ser a porta que fecha para sempre o mistério do quadro, o que tem um efeito interessante. Quebra a tentação narrativa, a ideia de contar uma história interpretativa da obra, obrigando à suspensão do discurso para dar lugar à pura contemplação da obra. Agora, depois deste discurso contra o discurso, vou recolher-me para tomar uma decisão. Será que devo tomá-la fazendo o caminho da deliberação, o raciocínio prático do velho Aristóteles, ou suspendo o discurso e deixo que uma intuição me ilumine na decisão a tomar? Não se pense que é uma coisa importante, apenas se devo ou não comprar um certo produto. Se a deliberação estiver errada ou a intuição me iluminar mal, não perderei grande coisa.

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Por uma Teologia científica

Não admira que a Teologia seja, nos tempos que correm, uma área científica menosprezada. A culpa, ao contrário do que pensam mentes pouco iluminadas – seja pelo espírito das Luzes, seja pelo Espírito Santo, seja pela luz eléctrica – não está no êxito transbordante das chamadas ciências empírico-analíticas, que com o seu sucesso permitem conhecer a realidade e encher o mundo de dispositivos que servem para tudo e mais alguma coisa, inclusive para dar cabo do mundo. A culpa desse longo ocaso da Teologia reside no pouco interesse, ou mesmo nulo, que os teólogos profissionais votam aos problemas teológicos verdadeiramente pregnantes. Por exemplo: que distância vai do vestíbulo do inferno à antecâmara do paraíso? Se os teólogos se interessassem pelo problema, diriam, por certo e dentro da sua previsibilidade, que sendo o inferno e o paraíso, a priori, locais incomensuráveis, a distância entre ambos é infinita. Não precisamos de recorrer à experiência para saber uma coisa que até a razão natural sabe. Embora não sendo teólogo, posso dar um contributo para uma Teologia científica, matematicamente fundamentada e que coloque os teólogos no devido lugar. A distância entre o vestíbulo infernal e a antecâmara do céu é de dezassete graus celsius, medida hoje entre dois locais onde estive. Num, por acaso o sítio onde entretenho a minha existência, estavam 41o. No outro, aquele onde me refugio do bafo atenazador dos diabos, o termómetro marcava 24o, por certo a temperatura do Éden quando o Senhor Deus dava por lá os seus divinos passeios e Adão e Eva se escondiam, já encalorados, sabe lá bem porquê. Como se demonstra aqui, não apenas a Física pode ser matematizada, mas a própria Teologia se deve constitui como uma Teologia matemática. Prova-se assim que a distância entre o inferno e o paraíso é uma distância térmica, mensurável por qualquer aluno do ensino básico. Fica aqui o meu contributo para o desenvolvimento da ciência. Amanhã, caso me lembre, irei reflectir, no campo da linguística, sobre o estranho caso da palavra pregnante. Sou um poço de sabedoria, onde me afundo a toda a hora.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Com e sem lugar marcado

Comprar livros em segunda mão online não tem só vantagens. Também há inconvenientes. Tive em tempos, embora nunca tenha chegado a ler, um romance de Julien Green denominado Moïra. O que lhe aconteceu, não sei. Decidi comprar outro exemplar num alfarrabista que vende em plataformas tipo olx. O livro veio em bom estado. O único problema é que o antigo proprietário deveria ter uma fixação na sua rubrica. Muitas páginas – quase metade, por certo – está rubricada. Gostava de perceber o que terá passado pelo cabeça da pessoa que decidiu, por amor à propriedade, afirmar a posse daquela maneira exuberante. O cuidado foi inútil, pois o livro voltou para o mercado e aquela assinatura já não serve para nada, a não ser para estragar o livro. Ontem, com as minhas netas, fui ver um concerto com o pianista japonês Jun Kanno. Mozart, Chopin e Debussy. Uma viagem do classicismo ao impressionismo, com passagem pelo romantismo, embora nada disso tenha uma grande importância. Elas, as minhas netas, aproveitam estas ocasiões para fazerem, com os avós, um programa complementar ao agrado delas. O pior do concerto foi o facto de o público estar dividido em duas facções. Os que compraram bilhete na bilheteira e os que compraram online. Os primeiros não tinham lugar atribuído. Os segundos, pelo contrário, traziam inscritos nos bilhetes o lugar que lhes competia. A interpretação da organização era de que não havia lugares marcados, o que gerou uma bela confusão na sala. As coisas lá se compuseram sem grandes atritos, o pianista entrou na sala e a confusão desapareceu. Foi uma experiência nova e interessante. Estou expectante com o que vai acontecer no concerto de quarta-feira.

domingo, 6 de agosto de 2023

A nódoa

A única vez que falei aqui do assunto, um dos mais fundamentais na existência da humanidade, foi a 1 de Setembro de 2019. Isso, devido àquela história da pandemia, significa que foi noutra era. Sobre ele, o assunto, há várias teses, embora não tenha a certeza de que sejam incompatíveis entre si. Existem teses negativas e teses afirmativas. Um exemplo de uma tese negativa diz-nos que as mulheres, às refeições, nunca põem uma nódoa na roupa que trazem vestida. Talvez existam alguns casos esporádicos, o que mostraria a tese como falsa, mas há outra possibilidade para interpretar esses escassos eventos. Nesses fortuitos encontros entre a nódoa e a roupa feminina, a mulher não estava a ser mulher, mas sofria de um súbito toque viril e, nesse instante, estava possessa por uma substância que lhe é estranha. Portanto, acontecimento raro e que não refuta a tese. As teses afirmativas dizem respeito aos homens ou a algum em particular, neste caso eu. No campo das teses gerais, há uma que diz que a propensão a pôr nódoas na camisa é inerente ao cromossoma sexual ípsilon. É uma tese respeitável, corroborada por muita gente. A tese particular, a que me diz respeito, sublinha que sou um praticante desastrado e desatento da arte de comer sem se sujar. Por vezes, são retirados corolários que põem em evidência o meu desacerto com a realidade. É possível que seja assim, mas há coisas que têm uma atracção fatal por mim. Melgas, moscas e nódoas. Deixemos os insectos para outra ocasião. Como se sabe, a nódoa é um ser parasitário. Sem um hospedeiro, não existe. Quando uma nódoa ainda não o é, mas existe já em projecto, observa os circunstantes à mesa e, por norma, escolhe a roupa que eu trago vestida. Posso aceitar que todos os homens sejam potencialmente hospedeiros, mas faço-o contrariado. Quero pensar que elas, as nódoas, têm uma terna inclinação por mim e me escolhem para virem ao ser, tornando o mundo mais rico e variado.

sábado, 5 de agosto de 2023

Expulsão do paraíso

Em tempo de férias, tiro o relógio e esqueço o calendário. A desmemoriação, porém, não é tarefa fácil. Não faltam por aí relógios a debitar as horas e não é empreitada simples esquecer a sequência dos dias da semana. Não tenho a certeza, mas penso que foi no primeiro dia da escola primária que o tempo entrou na minha vida. Até aí, não havia dias úteis e dias inúteis, não havia horas ou minutos, apenas a regulação maternal das horas de dormir e de estar acordado, ou os tempos das refeições. Não me consigo recordar, mas imagino que não separaria as manhãs das tardes, apenas o dia e a noite se mostravam no seu antagonismo. Dos primeiros dias dos anos lectivos que vivi, e não foram poucos, só me lembro do primeiro, de ser acompanhado à escola pela minha mãe e de lá haver uma turbamulta azougada. Não percebi que, nesse instante, eu era um pobre Adão a ser expulso do paraíso, cujas portas foram irremediavelmente fechadas. O facto de não perceber não significa que o ferrete não se tenha inscrito duradouramente em mim, de tal modo que estou agora, passadas tantas décadas, a falar dele, num tributo ao princípio e irresponsabilidade que toda a infância significa. Pior do que eu, está o meu neto. Ainda antes de entrar na escola, já se encontra na escola travestida de pré-escola, o que significa que o progresso educacional da humanidade é feito à custa de uma expulsão do paraíso sempre mais precoce, como se se cometesse o pecado original cada vez com menos idade.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Contra a abdução

Poderia recorrer à abdução, a um argumento a favor da melhor explicação. Contudo, acho a melhor explicação destituída de espírito. Oiço – e não estou com alucinações auditivas, embora não o possa provar – o ruído insuportável de um aspirador. Como poderia justificar a tese de que o aspirador é ruidoso? A melhor explicação seria que a mecânica do aspirador não é suficientemente sofisticada para o tornar silencioso. Isto, porém, é justificação que se dê? Claro que não. O aspirador é ruidoso por dois motivos. O primeiro é que faz parte activa e consciente de uma conspiração contra o meu estado de descanso contemplativo. Não existisse uma conspiração contra mim e o aspirador seria uma das máquinas mais silenciosas ao cimo deste pobre planeta. Uma segunda razão, talvez tão fundamentada quanto a primeira, diz-nos que caso o aspirador fosse silencioso, este narrador não teria o que escrever. Eu sei que os lógico-dependentes acharão as minhas razões estapafúrdias, pouco plausíveis, como eles logo afirmariam. Contrariam o natural bom-senso e o argumentário a favor da melhor explicação, uma estratégia lógica com a finalidade de fazer prevalecer o bom-senso sobre a falta de senso. Ora, o que é o mundo e a vida mundana senão falta de senso. A minha tese é que se tudo se regesse pelo bom-senso, o mundo não existiria, implodiria devido à pasmaceira universal instalada. Não há como uma citação apócrifa para demonstrar a minha razão. Apesar de não ter sido proferida por Tertuliano, apesar da absurda e contumaz insistência, a proposição Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo) é um fundamento indestrutível da minha crença de que a falta de senso é superior ao bom-senso. Enquanto se mantiver a conspiração contra o meu estado de descanso contemplativo e eu não encontrar motivo para escrever, os aspiradores continuarão apostados – sim, eles têm vontade própria – em escolher das ondas sonoras aquelas mais desprezíveis e mais malévolas do que a Rainha da Noite. Por mim, tenho encontro marcado com a Rainha de Copas, que me convocou. Seria falta de senso não respeitar uma convocação de Sua Alteza.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Ver o Papa

Ontem acabei a postagem com a referência à visão – literal – das minhas netas da pessoa do Papa. Só mais tarde recebi a notícia de que o meu neto também viu sua Santidade. Imagino que ele, a caminho dos cinco anos, não faça a mínima ideia de quem seja o Papa. O primeiro Papa de que me lembro foi de João XIII. Não propriamente dele, mas da sua morte, portanto já não era ele. Era coisa que os noticiários não calavam. Nunca esqueci esse facto, mas era mais velho que o meu neto é agora. Ele irá esquecer o acontecimento. Constou-me que Lisboa está uma animação. Francisco parece-me um desafiador de dragões, mas não estou certo de que seja um S. Jorge, apesar do nome civil. Os dragões são uns finórios dissimulados e fingem que as estocadas que caem sobre o seu corpo escamoso nada têm a ver com eles, convencidos de que possuem um poder de regeneração mais forte do que a ousadia daquele que conspira para os liquidar. Esperam que o Papa se torne, como este narrador, num cavaleiro da triste figura, um D. Quixote de que se rirão. Longe da capital, entrego-me à difícil tarefa de nada fazer. É preciso ser claro. Não me devoto ao lazer, nem ao ócio, tão pouco à preguiça ou sequer sofro de acédia. Obrigo-me à suspensão de fazer seja o que for. Nem praxis, nem poeisis. Isto é, nem me entrego a pôr em prática uma teoria ou ideia, nem a dar origem a qualquer coisa que antes não existia. Poder-se-á discutir qual dos vocábulos gregos - πρᾶξις ou ποίησις – é esteticamente mais agradável à vista. Por mim, prefiro a contenção da ποίησις. O ξ dá à πρᾶξις uma exuberância desnecessária. Imagino que o Csi (ξ) seja uma espécie de antena, talvez um antepassado do Bluetooth, que liga a teoria que está na mente à vontade que impele a materialidade do corpo a fazer qualquer coisa, que, por norma, não devia ser feita. Portanto, uma transferência de dados, o que me parece ultrapassar o decoro com que nos devemos pautar, pelo menos nos dias de Agosto, ainda mais quando somos visitados por um Papa que combate dragões. Mais logo, terei de fazer uma ronda pelos netos, para saber qual deles viu hoje o Papa. Talvez isto seja já um pecado contra a minha decisão de nada fazer. Por certo, se confessado, será perdoado.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Vida quotidiana

Por aqui, o Sol ainda não deu um ar da sua graça, remetido para lá da muralha de nuvens. Estas deixam coar uma luz esbranquiçada e indecisa, que o vento faz rodopiar, antes de a levar para outras paragens. Parece que há, no que escrevi, uma incongruência. Que eu saiba, o vento, com o seu passo arrastado, mesmo se sopra a muitos quilómetros por hora, não tem o condão de arrastar consigo as ondas-corpúsculos que constituem a luz. Ora, se eu escrevesse apenas coisas com congruência, o mais certo seria não escrever nada. O que me impede de imaginar os fotões a serem empurrados pelo vento? Hoje, após quase um mês calcei sapatos, sapatos a sério e fui com eles ver o mar. Estava orgulhoso de ter os pés calçados como deve ser e ser levado por eles desde o carro até à esplanada, como se tudo tivesse voltado à normalidade, o que é quase verdade. Durante a estadia na esplanada, chegou um grupo de jovens casais espanhóis, carregados com filhos pequenos. Elas foram tirar uma fotografia num barco que faz parte da decoração do estabelecimento, enquanto eles tomavam conta da criançada e lhe aprontavam a comida. Falavam num castelhano sem exuberância e apenas uma criança, ainda no carro de bebé, chorou. Depois, acabaram por se ir sentar fora do alcance da vista e fiquei sem história para contar. Tenho de suspender estas idas à esplanada, pois caio sempre na tentação de comer um pastel de nata, coisa que, com a minha idade, seria de bom tom evitar. Por volta do meio-dia, no retorno da tal malfada esplanada, as minhas netas ligaram. A mais nova estava eufórica, pois quando caminhavam não sei bem para onde, viram o Papa. Gritaram, elas e as amigas, e ele voltou-se para elas, certamente para perceber que barulho seria aquele. Um acontecimento, para contarem aos netos. Tenho de diminuir a verborreia.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Para canto

Fiz uma nova viagem de uma centena de quilómetros, mas agora a conduzir. Ao aproximar-me do destino, constatei a realidade do ditado da zona Oeste: Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. Apanhei chuva na estrada, e à chegada esperava-me um céu cinzento carregado, embora sem chuva. A manhã correu-me bem. Só esperei cerca de vinte minutos pela consulta com o cirurgião. Quando entrei, abriu-se num sorriso. Já saiu o resultado da anatomia patológica, está tudo bem, anunciou. Com estas coisas, acrescentou, nunca se sabe. Eu não lhe disse que sabia que nunca se sabia, sabia-o até por deformação formativa, o que parece uma contradição. Aliás, tinha já notado, nas duas consultas anteriores, alguma ansiedade dele em relação ao resultado das análises dos materiais recolhidos. Respondi apenas que a espera pelos resultados é como a angústia do guarda-redes antes do penalty. Ficou suspenso, depois disse: bom, essa espera é menor. Anuí. Ele ficou a pensar que sou um maluquinho da bola e eu fiquei a saber que ele não faz a mínima ideia de quem é Peter Handke ou Wim Wenders, ou a relação deles com a marca da grande penalidade. Isso, porém, não interessa. É um rapaz mais novo que os meus filhos, bem-disposto e que até acabou por me fazer o curativo no pé para me orientar o tratamento nos próximos dias. Eu, com as minhas referências pseudo-eruditas, é que pertenço a um mundo muito mais antigo e decadente, um mundo sem futuro, enquanto ele ainda tem um futuro diante de si. Quando saí do consultório, respirei fundo, embora não tenha sido o único. Esta foi desviada para canto, pensei.