Por vezes, temos desagradáveis surpresas e, ao mesmo tempo, descobrimos que o mundo se regula por estranhas leis que a ciência desconhece. Uma pessoa compra um livro e coloca-o numa estante. Mais tarde o lerá. Passam meses, anos, décadas. No dia em que pega nele para, finalmente, o ler, é confrontado com o insólito acontecimento de as letras do livro terem, com a passagem do tempo, encolhido. Quando o comprou, disso tem a certeza, as letras eram legíveis, tinham maior dimensão, bem apropriada para os olhos de leitores humanos. Por pouco que se interesse pelas ciências que estudam as leis que regulam o mundo físico, haveria de ter notícia de alguma que explicasse a razão pela qual, com o passar dos anos, as letras impressas – ou, pelo menos, algumas – vão diminuindo. Algum fenómeno químico haverá para que as manchas negras de tintas num papel mais ou menos branco se vão reduzindo no tamanho com o passar do tempo. Essa diminuição não parece ser paulatina. Durante muito tempo não se dá por nada, mas depois o encolhimento torna-se progressivo e avassalador. Tudo isto põe em causa duas das nossas mais sagradas instituições, a ciência e a indústria. A ciência – talvez a Química – ainda não foi capaz de oferecer uma lei que explicasse o fenómeno, tão pouco ofereceu uma hipótese sobre a composição química das tintas com que se imprimem os livros e que faz, com o passar do tempo, que as letras sofram uma retracção no tamanho. Este fiasco da ciência natural pode ser aproveitado pelas pseudociências que oferecem especulações que calam fundo na alma dos leitores. Por exemplo, a Alquimia poderá propor que o problema está no facto de nas tintas existir chumbo e os impressores não conseguirem transformá-lo em ouro, um metal mais nobre e que, por certo, não quereria depreciar-se, mantendo o tamanho próprio para olhos humanos. O chumbo, infeliz por não se nobilitar, está por tudo e, com o tempo, encolhe-se de vergonha. Também a Astrologia terá muito a dizer sobre este inusitado fenómeno. A conjugação astral em que é feita a preparação das tintas pende sobre o destino das letras. E um astrólogo avisado recordará ao leitor que nem todas as letras impressas encolhem, como poderá constatar abrindo diversos livros. As que encolhem são as que foram produzidas sob uma nefasta conjugação dos astros. É assim que o homem comum – e também a mulher comum – desacreditam da ciência e deixam de vacinar os filhos. Não menos humilhante é o que se passa com a indústria, com a inovação de processos e o controlo de qualidade. Como é possível que imprimam livros com tintas que ameaçam encolher tanto que até podem deixar as páginas em branco? E se depois da morte de Deus, temos de desacreditar da ciência e da indústria, o que fica para merecer a nossa fé? Esta longa meditação ocorreu há pouco quando, peguei no romance Senilidade, de Italo Svevo, que dormia numa estante quase há duas décadas, e disse é agora, neste Agosto, que o vou ler. Abri-o e qual não foi o meu espanto quando constatei que as letras tinham minguado dramaticamente, que as linham eram pouco mais do que traços uniformes e paralelos. Não compreendo a razão por que se insiste em produzir livros para olhos não humanos. Talvez os editores acreditem na história contada por Anatole France em A Revolta dos Anjos, na qual o anjo da guarda de Maurice Esparvieu, cansado da sua função, decide estudar de fio a pavio a biblioteca da família Esparvieu. E como todos nós sabemos, os anjos conseguem ler até em textos com letras de dimensão infra-atómicas. É este um dos seus poderes. É possível que os editores estejam a trabalhar para a eternidade, imprimindo livros com letras que só os anjos podem ler.
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