Olha, aquelas flores maquilhadas com a púrpura do teu rosto. Quando ouvi isto, nem acreditei que houvesse alguém que pronunciasse uma frase como aquela. Tentei perceber quem era, mas o dono da fala tinha-se perdido, bem como aquela que detinha um rosto de onde se extraía a púrpura com que certas flores se maquilham. O mundo está cheio de acontecimentos que mereciam um pouco mais de atenção, mas a trivialidade da existência rapta-os para os aniquilar. Não se pense que sou sensível a uma eventual poeticidade da frase. Não sou, pois é uma poética adocicada e há muito que bebo café sem açúcar. O que me sensibilizou foi alguém falar daquele modo. Depois, há sempre um depois, continuei o meu caminho em direcção ao molhe, para poder ver as águas do oceano e os barcos ancorado a tremer, pois também os barcos são sensíveis ao frio, e a manhã não estava ainda quente. Quando me ponho nesse caminhar, o rosto das pessoas com que me cruzo torna-se difuso, perde os contornos, é uma mancha móbil na paisagem, uma nódoa que se aproxima para logo ser deglutida e desaparecer no nada. No final da manhã, tentei ir a uma ilha que, por acaso, é uma península. Se conseguisse lá parar, haveria de beber um café. Não consegui. O aumento dos carros que ali chegam nestes dias é inversamente proporcional aos lugares para estacionar. Quanto maior a procura, menor a oferta. Os serviços municipais todos os anos fecham um número considerável de lugares de estacionamento. Isto prova que nem tudo se rege pelas leis do mercado. Fui estacionar para outro lado, onde procurei flores maquilhadas com a púrpura que certas mulheres deixam cair do rosto. Não as havia, sinal de que pouca ou nenhuma púrpura haverá em rostos de mulheres que por aí andam. Talvez sofram de anemia, pensei.
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