domingo, 14 de agosto de 2022

Estranhamento

O mundo anda tão às avessas, e gastar o tempo com estes escritos é atitude de um autêntico alienado. Disseram-me isto com tom reprovador. Fiz notar que não tinha paciência para a reprovação e para moralismo de ocasião, mas concordei no tema da alienação. Só aquele que se estranha a um certo ambiente se pode livrar dele. Para aqui não quero trazer manifestações desse material que constitui a essência da História, se é que a História tem uma essência. Esse material é a paixão pelo poder, a mais autêntica das paixões humanas. Contrariamente ao que muitos pensam, a paixão pelo poder não é uma manifestação da natureza alfa de certos machos ou fêmeas da nossa espécie, o que estaria no âmbito da Biologia e da Química. A paixão pelo poder tem uma natureza metafísica e pretende uma transubstanciação. O macho alfa ainda é um animal como os outros, mais forte. Ora, a paixão pelo poder manifesta o desejo de deixar de ser um membro do rebanho para se tornar pastor e transportar consigo o cajado, esse símbolo de pertença a uma outra realidade. Um pastor não é uma ovelha ou um carneiro. A caracterização do poder como pastorado foi descoberta há muito, ainda antes da era cristã, e pensadores eminentes dedicaram-lhe a sua atenção. Por vezes, corre a ilusão de que o poder não é o lugar do pastor, pois não há rebanho, mas uma associação de homens racionais e livres. Chega-se a falar em contrato. Basta, porém, dar alguma atenção aos seres humanos para perceber a ilusão e que haverá sempre, enquanto existir a espécie humana, lugar para a paixão pastoral. É esta paixão que não me interessa, a não ser como espectáculo. Por norma, comédia, mas, por vezes, tragédia. Sou um narrador alienado, isto é, que se estranhou à mais humana das paixões. Foi isto que me ocorreu neste segundo domingo de Agosto, um tempo em que deveria pensar em não pensar em nada, entregando o corpo aos raios solares e ao ritmo benfazejo das ondas. A verdade é que não somos senhores do nosso caminho e muito menos do caminho que os pensamentos que existem dentro de nós decidem tomar.

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