Um dia para esquecer. Os motivos, omito-os. Também o clima não ajudou. Quente e abafado, com o corpo a pedir chuva, literalmente, ou mesmo uma boa trovoada. Subia com a lentidão do trânsito o viaduto e ia ouvindo a Antena 2, como é hábito. Uma peça musical para oboé, salvo erro. A certa altura pensei que toda a arte é um trabalho sobre a matéria, mas não sobre a materialidade da matéria. O artista trabalha a matéria para que se revela o espírito que ali se oculta, para manifestar a espiritualidade da matéria. Esta ideia fez-me sorrir, enquanto contornava uma nova rotunda e já me encaminhava para outra. Depois, pensei em Hegel, na sua tese de que a arte é uma forma sensível de manifestar o espírito, a ideia, mas este é o pensamento de Hegel e não aquilo que eu tinha pensado. Não se trata de um espírito absoluto a caminho de si mesmo, mas de espíritos particulares que estão presentes num bloco de mármore, na combinação de uma certa tela e da tinta que a vai tingir, na conjugação de ondas sonoras, ou de corpos que lutam contra a gravidade. Ao estacionar o carro, percebi que estava perto do politeísmo ou então de uma certa forma de angelologia. No elevador, ocorreu-me que, por exemplo, num certo bloco de mármore estão contidos inumeráveis, senão infinitos, espíritos, mas a limitação da arte humana só consegue revelar um. A consequência é que toda a arte é um exercício de homicídios espirituais. Nisto é muito idêntica à reprodução sexuada. Por cada espermatozóide que atinge a meta, morrem milhões com todas as suas infinitas potencialidades. Agora que estou sentado e escrevo tudo isto, constato que o dia não está a melhorar. Daqui a pouco irei fazer a caminhada diária, mas o ar pegajoso que adivinho nas ruas deixa-me relutante.
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