Ida ao aeroporto buscar alguém, almoço em Lisboa, retorno ao lar, doce lar, à cadeira do escritório. Depois de uma semana tensa, o que me apetece mesmo é dormir. Este apetite pelo sono, todavia, não é partilhado pelo corpo, ou pelo cérebro, caso este não faça parte do corpo, pois quando chega a hora de dormir, com ela vem, velada sabe-se lá por quê, a insónia. Nessas alturas, que não são poucas, aproveito para adiantar leituras. Há pouco, em viagem, ouvi, na Antena 2, que a civilizada Coreia do Sul é um dos países do mundo onde menos se lê, apesar de ser um país tecnologicamente avançado e onde as pessoas mais usufruem das novas tecnologias. O comentador, alguém cujo nome esqueci, mas que falava em castelhano, não via no facto um problema. Não estabeleceu uma correlação entre o uso das novas tecnologias e o baixo índice de leitura. Pelo contrário, sublinhou os progressos que o país está a fazer para trazer a leitura para a vida das pessoas, dando a entender que ler não fazia – e ainda não faz – parte da cultura daquele país. Se isso se passasse em França, acrescentou, seria grave, pois era a marca de um retrocesso. Talvez nós, ocidentais, tenhamos sido vítimas de um fetichismo, o dos livros. Havendo pessoas que decoram estantes com livros, ou mesmo com simulacros de livros, movidas pelo encantamento em que caíram. O encantamento seria o de um suposto estatuto social que, contra qualquer evidência, o livro daria. Os livros nunca deram status. O que acontecia era que, em tempos, tempos longínquos, as pessoas que tinham status também tinham livros. Ora democratizar o livro não implica a democratização do status. Este, por natureza, não é democratizável, pois o seu fundamento é a diferenciação, a distinção, mesmo que esta se deva a coisas que pouco ou nenhum sentido tenham. Imaginemos uma pessoa que cria canários pelo prazer de os contemplar, de cuidar deles, de ver florescer as linhagens. Ninguém alcança status a criar canários. Quem gosta verdadeiramente de livros não é diferente de um criador diletante de canários. Gosta de os contemplar, de os ler, de ver florescer as múltiplas linguagens que ali se encerram, mas isso não acrescenta um grama ao seu status social, felizmente.
Fiquei (como é costume), aqui a pensar, se faria sentido um Fahrenheit para canários. Parece-me, no entanto, que 451 fosse mais do que suficiente para lhes abafar o canto.
ResponderEliminarSe um Fahrenheit para humanos foi e é possível, para canários será mais fácil.
ResponderEliminarAcredito que os livros resistam à cremação. Basta sabê-los de cor. Li que na Arménia, durante as muitas invasões e perseguições, dividiam os manuscritos mais pesados em partes para os poderem transportar, e que por vezes os escondiam entre as rochas, para não os perderem. Haverá biblioteca mais bonita do que esta, disposta a ser encontrada?
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