Comecei com O outro nome – Septologia I-II, depois foi a Trilogia e agora apresto-me para acabar Manhã e noite. Tudo romances do norueguês Jon Fosse, tudo lido graças às insónias. A escrita de Fosse parece, muitas vezes, focar-se na trivialidade, mas fá-lo de tal maneira que torna manifesto algo de decisivo na existência, nem que seja a sua pura trivialidade. Contudo, é mais do que isso, é a exploração de territórios fronteiriços, aqueles onde o presente e o passado se misturam ou aqueles em que o reino dos vivos e o dos mortos se confundem. É possível que tenha sido nesses territórios que Orfeu tenha perdido Eurídice. É curiosa – e por certo terá ardentes inimigos – a ideia de que os mitos gregos só ganham pleno sentido lidos a partir de uma perspectiva judaico-cristã. A tentação de Orfeu, o desejo de Eurídice e a necessidade de certificação, levaram-no a olhar para ela antes da hora e com isso perdê-la. Contudo, o que Orfeu perdeu não foi a sua amada, mas a sua própria alma, perdeu-se a si mesmo, não percorreu o calvário até à morte e ressurreição. O espantoso reside na necessidade de certificação ser tido como um princípio de perda e mergulho no abismo. Esta ideia liga-se, de modo inusitado, a um momento central da nossa cultura, o início da Modernidade. O chamado projecto cartesiano está assente na busca da certeza, na procura de evidências que certifiquem as nossas crenças. Esse momento seminal da cultura europeia, momento celebrado como uma revolução, é também visto, por mentes mais sombrias, como um momento de decadência. A busca da certificação é uma queda, o mergulho no abismo. Quem precisa de certificação já perdeu o conhecimento. Descartes representaria para a cultura ocidental esse olhar para trás de Orfeu para se assegurar de que Eurídice o seguia, de que a sua alma seguia o seu corpo. Assim como Orfeu perdeu a sua sombra, também a cultura europeia a perdeu com Descartes. A partir dessa hora, a Europa entrou na mais pura errância. Não percebo por que razão esta especulação me acometeu hoje, quarta-feira. Costuma atacar-me às sextas, como prenúncio do fim-de-semana, alguma coisa está fora dos eixos. O que poderei eu dizer? O mundo está fora dos eixos. Oh! Sorte maldita! … Por que nasci para colocá-lo em ordem! Quem escreveu isto terá antecipado a errância que Descartes trouxe ao mundo.
olhar para trás
ResponderEliminarsim, se tenho dúvidas
dos meus pés leves