Quando, de manhã, fui à rua, perguntei-me por onde andariam as águas mil que rimam com Abril. Claro que não me dei resposta, e ninguém veio em meu auxílio. Pelo contrário, os transeuntes desfilavam pimpões vestidos de Verão, esquecidos de que deveria chover para amenizar o clima, encher as barragens e evitar os incêndios. Ninguém quer saber disso, pensei. Depois, caí em mim, fui tocado pela humildade, e reconheci que também eu era um refinado egoísta. Só me lembrei das águas mil, porque o calor me perturba, como se eu tivesse nascido num clima frio e nebuloso e não aqui. O mal do mundo está em que há muito mais pessoas a favor do tempo quente do que do tempo frio. Por isso, não se importam com o aquecimento global. Este assunto, porém, está fora das cogitações do narrador desta gesta, um cavaleiro andante do arrefecimento global. A Primavera, por estes lados, está animada. Os pássaros não se calam, as árvores vão-se cobrindo de uma folhagem verde e vibrante, batida pelo vento, num processo aliterativo, e, por certo, haverá, por essas terras fora, gentes cujo coração foi tocado pela flauta mágica do amor. O que me impressiona, porém, é que o brilho do sol tem o selo dominical. Como todos sabem, e se não sabem deveriam sabê-lo, o sol brilha de maneira diferente aos domingos. Não conheço as razões, mas já constatei o facto. Há nesse brilhar vibrante uma melancolia inextinguível, coisa que não acontece nos outros dias. Poderia dedicar-me à abdução para estabelecer um conjunto de hipóteses científicas que explicariam o fenómeno. Contenho-me, horrorizado, ao descobrir que a palavra tem significado não apenas lógico, mas também anatómico e, pasme-se, ovnilógico. Neste caso, trata-se da gesta de pessoas que foram raptadas – abduzidas – por extraterrestres. Para a próxima vez não usarei o termo abdução, mas raciocínio abdutivo, o qual suponho, não terá ligação à anatomia e, muito menos, à ovnilogia. Hoje, porém, deixo o caso em suspenso e vou tratar da vida noutro lugar.
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