Num texto com o desapiedado título Mademoiselle Esqueleto, António Ferro escreve: Os dedos, os olhos, os corpos, ensaiam tangos na sombra. Eu sou um adivinho de gestos. Entretenho-me a soletrar atitudes… Eis uma arte divinatória que merece respeito. Adivinhar nos gestos as atitudes, mesmo que não se soletrem. Ler o futuro nos astros, nas entranhas dos animais, no voo das aves, tudo isso me parece falaz, fruto de uma alucinação, mas é difícil, muito difícil, que um gesto não traia uma atitude. Quem não se quer trair deve permanecer imóvel, parado como uma estátua. Deve, inclusive, deixar de respirar, pois até a própria respiração terá uma leitura reveladora de um gesto a vir. Os dias estão bem maiores, cavalgam em direcção ao solstício de Verão, para então se apaziguarem. É possível ler os desígnios da natureza nos gestos de cada dia? Eis um problema que deveria ocupar as mentes mais brilhantes, pois que coisa mais importante poderá haver para os homens do que o conhecimento daquilo que a natureza pretende? Um pássaro passou diante da janela, uma sombra rápida, que logo desapareceu. Acabei de chegar a casa, mas vou sair de novo, vou esperar o fim do dia noutro lado, para ver se descubro alguma novidade, um gesto inusitado, embora não tenha esperança de nele conseguir descortinar o desígnio da natureza.
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