Quase no início da quarta elegia de Duíno, Vasco Graça Moura traduz verso e meio de Rilke assim: Não somos unos. Não nos coordenados / como aves migradoras. (…) A primeira pessoa do plural gera uma feliz ambiguidade. Quem não é uno? Quem não se coordena como as aves migradoras? Será a espécie humana o referente desse nós? É verdade que entre os homens reina sem parar a discórdia, o diferendo, a desavença, que a aliteração sublinha e intensifica, e que são o sinal da falta de coordenação e de unidade. Esse nós, todavia, pode ser um plural majestático, uma referência ao eu, a uma alma desavinda consigo. Serei eu que não sou uno, nem me coordeno como se coordenam as aves migradoras. A ambiguidade, porém, não termina aqui. Esse nós, que no original está expresso, pode ser, ao mesmo tempo, um eu e um nós. Todos os eus sofrem da falta de unidade e de coordenação consigo mesmos e por isso constituem um nós. O que introduz mais uma ambiguidade. Nós, seres humanos, estamos coordenados e unidos na falta de unidade e coordenação que cada um sofre. O que nos une é a desunião. O que nos coordena é a descoordenação. Da primeira à terceira interpretação das palavras de Rilke, ou da tradução de Graça Moura, passamos da sociologia à ontologia por intermédio da psicologia. Todo o poema – ou todo o verso – é um palimpsesto.
E não é toda a tradução uma espécie de palimpsesto? Há pouco tempo devolvi um livro de Rilke com alguns dos seus mais emblemáticos poemas traduzidos, que eu nunca tinha lido em português de Portugal. Um deles era o Torso Arcaico de Apolo, do qual só conhecia a tradução (para mim maravilhosa), de Manuel Bandeira. Detestei o poema, comparando-o com o outro, e já não quis ler mais nada. Pelo contrário, apesar da famosa tradução de Paulo Quintela, gosto das (minhas) Elegias pelo Vasco Graça Moura. Sobre o *verso e meio* talvez diga que *nós* seres migrantes, somos como aves migratórias, porque deixamos de ser - eu - (e só eu), para sermos grupo. Talvez por isso, mais à frente no poema, Rilke/ VGM, diz/dizem: *torna-se um burguês que atravessa a cozinha entrando em casa*.
ResponderEliminarOra é o que tenho feito aqui, por vezes, sem nenhum respeito pelas aves migratórias.