segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Entardece

Um bando de crianças aterrou no parque infantil. Trazem o Ano Novo pendurado ao pescoço. Correm, gritam, chamam pelos pais ou são, por estes, chamadas. O sol está como a minha vontade, anémico. Um medicamento age sobre a rigidez do meu corpo e torna-me fraca a vontade. Ainda não saí de casa, o que me permite dizer que não vejo as ruas há um ano. Uma pilhéria fácil. Aliás, sou um narrador vergado ao peso das coisas fáceis, nado no mar da trivialidade. Penso no estado do mundo, mas, após longa ruminação, concluo que o mundo não tem qualquer estado, não é sujeito de seja o que for, tão pouco é substância em que possamos espetar uns pregos para pendurar o casaco da existência. Na televisão, alguém falava de uma secular tradição começada há vinte anos. Talvez, isto é uma conjectura, não exista tradição que não seja secular e aquelas que nasceram hoje, ao serem denominadas tradição, tornam-se de imediato seculares, o que anima bastante as pessoas. Estas adoram tradições e séculos. Logo, amam com desvario as tradições seculares. Um historiador, Hal Foster, diz numa entrevista que existe actualmente um problema entre os jovens intelectuais, que é o de terem as respostas quase antes de se formularem questões. Pensei sobre o assunto e fiquei aliviado. Não sendo nem jovem nem intelectual, não sou um jovem intelectual. Por isso, não tenho respostas e vivo rodeado de problemas. A uns trato como rosas; a outros, como cardos. Lido com cuidado com ambos, para evitar picadelas. O problema do tal medicamente é que ele não apenas me descontrai a rigidez de certos músculos e torna a vontade fraca, como me põe uma névoa dentro da cabeça, o que dificulta o contacto entre os neurónios e a transmissão da actividade nervosa, ficando, a actividade nervosa, engarrafada no interior de cada neurónio. Uma criança grita, parece ser mais uma birra, de que ela é contumaz. Entardece. É sempre tarde para qualquer coisa.

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