Fui
para aquele sítio onde oficio uma liturgia que não toca o coração da
assembleia, a qual se entrega ao ritual como quem se entrega a um hábito tão
enraizado que já nem dá conta de que é um hábito. O pior é que antes de ir
troquei de casaco. Trocar de casaco não é um acontecimento que traga mal ao
mundo, tão pouco ao trocador. O caso é simples de perceber. Deixei os óculos no
casaco despido. Quando quis ler alguma coisa, um salmo ou uma epístola, as
letras tinham encolhido de tal modo que as linhas me pareciam rectas puras, sem
que qualquer relevo me anunciasse ali a existência de letras. Valeu-me que os
salmos e as epístolas a que recorro não pertencem ao domínio da religião, o que
me permite inventar salmos e epístolas sem cair na heresia. Aliás, não recorro
muito a leituras, coisa que nem os crentes suportam, quanto mais os agnósticos e
ateus que frequento. O mais interessante de tudo isto reside no facto de ser
mentira. Contar uma coisa que nunca se passou é mais aliciante do que contar
coisas que se passaram. Contar uma coisa que se passou tem o odor da confidência,
o que repugna qualquer ouvinte. A gesta que aqui narro, a minha epopeia, é composta
por grandes aventuras que nunca existiram. Não se pense, todavia, que essa
gesta é nada. Não é. Fazer de não acontecimentos alguma coisa é um acto mais
que humano. É tirar um mundo do nada e é isso que faz de mim um narrador digno
não de dó, mas de crédito. Só narro mentiras.
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