Ontem recebi uma chamada. Era só para recordar que amanhã tem uma marcação para vir pôr o Holter, ouvi. Ah sim, obrigado, respondi. Está marcado para as onzes horas, mas pedimos que venha um quarto de hora mais cedo. Disse que sim, que estaria um quarto de hora mais cedo. Tinha a vaga ideia de ter este exame para fazer, mas já nem me recordava quando. E lá fui hoje, de modo a chegar um quarto de hora mais cedo, imaginando que me despacharia rapidamente. Não foi inocência minha. Apenas burrice, pois, como diz uma amiga, inocência depois dos quarenta é apenas burrice. Saí de lá uma hora depois, sem o aparelho colocado. Tinha um compromisso inadiável e não podia esperar mais. Não, não foi no serviço público. Parece que a incompatibilidade entre cumprir horários e exercer a profissão de médico se alargou para os outros serviços de saúde. Desde que os técnicos de saúde se apresentam e são apresentados como doutores, imagino, que tenham também herdado, para além do título, a prerrogativa de não cumprir horários. Em tempos um antigo professor meu da faculdade deu aulas em Medicina sobre ética e saúde. Nessa altura, achei que fazia sentido, mas estava muito longe dos quarenta e a inocência era-me permitida. Hoje continua a fazer sentido que professores de Filosofia tenham lugar para ensinar nos cursos de formação de médicos. Não sobre ética, mas, de preferência, sobre metafísica, onde se trata do problema do tempo. Uma meditação sobre o tempo e a sua irreversibilidade. Desfazer a confusão de que parecem sofrer os praticantes de profissões médicas entre tempo e eternidade. Umas boas aulas de metafísica poderiam, inclusive, ajudar a saber ler um horário e perceber, com a ajuda da ética, o seu carácter imperativo. Tudo isto seria um contributo inestimável que a Filosofia poderia dar aos pobres mortais que, querendo adiar o desfecho que a sua natureza impõe, recorrem aos serviços de saúde. Aquele tempo que gastam em salas de espera seria aproveitado em coisas mais interessantes, mesmo que fizessem mal à saúde. Estamos em época de eleições, sobre as quais não falarei. A política está-me vedada, mas faço uma confissão. Irei ler os programas de todos os partidos e coligações concorrentes, no capítulo da saúde, para ver se algum deles se propõe enfrentar o pior de todos os problemas que afectam a saúde em Portugal, a dificuldade de as profissões ligadas à saúde lidarem com o tempo.
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