Estou em maré de citações. Citar outrem é aliviar-se do encargo de pensar por si. É uma espécie de coexistência espúria, como o são todas as coexistências. Ouvi-o a Bernardo Soares e li-o no seu livro do desassossego, quando passei os olhos pelo trecho Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao facto satânico de coexistir. Descobri, em tempos, que vivemos num mundo de colaboradores e que colaborar é uma virtude primeira das relações sociais. Essa descoberta deixou-me sempre desconfortável. Eu não sou um colaborador, falta-me a alma de colaboracionista. A minha revolta contra o verbo colaborar era estética. A colaboração é uma coisa feia. O Bernardo Soares, porém, veio ajudar-me a compreender o fenómeno. Há na colaboração uma morbidez metafísica. Uma decomposição metafísica não cheira menos mal do que uma decomposição física. Pelo contrário. Imagine-se o mau cheiro que deita a putrefacção de uma alma. Começa com um cheiro a enxofre e a partir daí a gama dos odores é cada vez mais repelente. Em vez de desperdiçar a nossa personalidade em orgias de coexistência, a expressão é do Soares, entreguemo-nos à ascese da existência, digo-o eu para evitar que o acto de citar cubra todo este texto. Chegou a sexta-feira, o que me poupa a algumas orgias da coexistência. Entro nela como se entrasse para um eremitério.
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