sábado, 20 de janeiro de 2024

Interesses

Retornei a O Leopardo, o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Li-o há muito e vi algumas vezes o filme que Visconti fez a partir dessa obra. Estou naquele momento em que Angelica, a bela filha de Dom Calogero, chega ao jantar dado, no regresso a Donnafugata, pelo príncipe de Salina. É extraordinária a forma como Lampedusa mostra a mudança de poder, a queda lenta e inexorável da velha aristocracia e a subida de uma nova casta, ainda rude, mas que fará do interesse próprio a espada com que, sem contemplações, triunfará. Os privilégios da velha aristocracia fundavam-se num ethos do serviço, o qual dissimulava ou sublimava o interesse próprio. Os que triunfaram com Garibaldi puseram de lado esse ethos do serviço e legitimaram o interesse próprio como única razão para agir neste mundo. Poder-se-á pensar que o triunfo dos novos senhores teve o condão de tornar manifesto aquilo que era oculto. É verdade, mas também é verdade que condenou à irrelevância a ideia de servir os outros ou mesmo a necessidade de sublimar, no sentido de tornar sublime, aquilo que era apenas um impulso egoísta. Olhando para essa mudança de poder social que se iniciou no século XVII, em Inglaterra com a Gloriosa Revolução, passou pelas Revoluções Americana e Francesa e se prolongou até à primeira guerra mundial, constata-se que os novos poderes, ao perseguirem os seus interesses próprios, muitas vezes com uma rudeza extrema, acabaram por proporcionar um mundo mais benevolente para a maioria das pessoas. É aquilo a que Hegel chamou de astúcia da razão. Do ponto de vista de uma contabilidade utilitarista, a mudança de poder foi moralmente boa, ao proporcionar a felicidade de um maior número. Contudo, o espírito sente, perante o ethos triunfante uma certa repulsa, pois a conduta dos indivíduos é movida por aquilo que uma longa tradição, que junta o legado grego e, principalmente, o cristão, sempre considerou adverso à virtude moral, o agir segundo o interesse próprio. Cristo, o modelo do homem na cultura ocidental, morreu na cruz movido pelo interesse dos homens e não pelo seu interesse pessoal.

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