O ano já vai no seu terceiro dia e parece que nada mudou neste pequeno mundo a que por convenção chamamos Terra. Esta imutabilidade é, porém, apenas aparente, uma forma insidiosa de enganar o incauto que por ela se deixa encantar. Tente-se recuperar aquilo que se era às vinte e três horas do dia 31 de Dezembro passado, e ver-se-á que, afinal, esse ser já não existe. A cada instante deixamos de ser, mas iludidos pela memória não descobrimos nisso qualquer desconcerto. Prefiro desconcerto a desconserto. O primeiro tem um maior número de portais semânticos. O desconserto fica preso à ideia de desarranjo, enquanto o desconcerto se derrama por imensas possibilidades para além desse mesmo desarranjo. Desconcerto é desordem, dissonância, discórdia, entre outras significações que não vêm ao caso. O tempo desconcerta-nos, pois traz com ele a desordem que mina a nossa ordenação, oferece-nos a dissonância que nos obriga a partir em busca da consonância, impõe-nos a discórdia que fere os corações que sonham com a concórdia. A memória é, deste modo, uma tecedeira que tece um manto que esconde o desconcerto em que cada um vive. A própria Terra vive de desconcerto em desconcerto. A tudo falta a harmonia concertante. De resto, ninguém quer saber, pois a sabedoria é mercadoria perigosa para materiais tão frágeis. Eu também não quero saber. Basta-me a dor lombar ou, talvez de modo mais erudito, a lombalgia. Decidiu atacar-me nos últimos dias do ano e ainda não se retirou. Olho para ela e não sei se ela faz parte do meu desconserto ou do meu desconcerto. Terá por causa um desarranjo ou trata-se de uma dissonância no corpo ou uma discórdia entre partes do mesmo corpo que deixaram de cooperar e eliminaram das suas relações a consonância? À falta de melhor, vou meditar na causa da coisa.
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