Alguém, um desocupado, por certo, está a perfurar uma parede. Ao mesmo tempo perfura-me o sossego, a paciência e a atenção. Todas as máquinas deveriam ter um processo de absorção das ondas sonoras que, ao trabalhar, produzem em abundância. Acumulavam as ondas sonoras e transformavam-nas, posteriormente, em água, o que ajudaria a combater, não com pouca eficácia, a seca. Como se vê, bem tento contribuir para melhorar o mundo, mas ninguém parece interessado nas magníficas ideias que me ocorrem. Só nesta jornada a verrumar paredes, se poderia produzir uma meia dúzia de metros cúbicos de água. Levantei-me relativamente tarde, pois, ao acordar, tive uma súbita iluminação. O melhor é pegar no telemóvel e ir validar as facturas na aplicação. Não tarda é tempo de IRS. Falta menos de um mês para acabar o prazo e, antes que me esqueça, resolvo já o assunto, enfrentando o dragão do fisco com a lança acerada da prontidão. É verdade que segui aquele conselho lido num dos livros da escola primária. Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Não guardei. Tinha mais de quatrocentas facturas para classificar e validar, coisa que fiz no conforto da cama. Esta foi a minha aventura do dia, uma peça fundamental na gesta que me conduzirá à glória e espalhará a minha fama num horizonte tão amplo quanto aquele que o meu irmão de aventuras, o fidalgo D. Quixote, alcançou na sua vida heróica. O dia está ganho, uma ideia genial capaz de salvar o planeta e um combate com o dragão fiscal são aventuras mais que suficientes para um dia só. Contudo, há dias assim, tenho ainda de enfrentar a víbora da burocracia. Chegaram-me uns papéis para ler e dar o meu assentimento. Se utilizei uma lança para derrotar o dragão do fisco, terei agora de usar uma espada para cortar a cabeça da víbora da burocracia. Um dia glorioso.
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