segunda-feira, 24 de março de 2025

Animal ritual

Somos animais ritualistas. Talvez eu esteja a fazer uma generalização precipitada. Deveria antes afirmar: eu sou um animal ritualista. Dei por mim a cumprir um ritual que alimento há muito. Retiro com todo o cuidado, da contracapa de um livro, a etiqueta com o preço e colo-a no interior da badana da capa dianteira. Caso não exista esse prolongamento da capa e da contracapa, colo-a no verso da capa. Por que razão faço isto? Não faço a mínima ideia. Talvez o tenha feito uma vez por acaso e, sem motivo aparente, repeti o feito até que se tornou um hábito. Irrito-me, se a etiqueta se rasga e fica sem préstimo para a transferência. Poderia dizer que é para memória futura, para um dia poder comparar o preço dos livros, mas isso não faz sentido, pois cada vez será mais curto esse futuro e a comparação exigiria um cálculo da inflação entretanto ocorrida, o que me parece uma tarefa inútil. Se a minha generalização não for precipitada, se, de facto, formos animais dispostos para o ritual, talvez pudéssemos trocar a tradicional definição de homem como animal racional por homem como animal ritual. Somos mais propensos a rituais do que ao uso da razão. Se eu fosse um verdadeiro animal racional, evitaria escrever estes textos, cuja razoabilidade deixa muito a desejar. Mas não, eu sou um animal ritual. Habituei-me a escrevê-los. E todos os dias – ou quase – entrego-me ao rito. Escrevo textos como transfiro etiquetas da contracapa para o interior da badana da capa de um livro. Sem razão. Claro que o dr. Sigmund Freud não estaria de acordo comigo. Diria que sou movido por causas inconscientes. Um trauma de infância que me leva ora a escrever, ora a transferir etiquetas. Talvez ele tenha razão, mas não me ocorre qualquer trauma infantil. Claro, que não, diria o ilustre médico vienense, o trauma reside no fundo do inconsciente, está guardado no mais inacessível que há em si. A prova que o trauma existe, continuaria, são os seus rituais aparentemente sem sentido. Eu, então, olharia para o dr. Freud e no meu olhar haveria piedade e um clarão zombeteiro. E calava-me.

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