Fechei as janelas e a noite ficou a dormir lá fora. Aqui é como se dia fosse, mas de luz temperada, nada de excessos, sóis de brilho cauteloso, não vão os olhos ficar ofuscados e nem capaz seja de ver aquilo que escrevo. E se há coisa conveniente neste mundo – e talvez noutros – é ver bem aquilo que se escreve, não vão as palavras arrastar uma sombra ou mesmo um véu negro, talvez uma mantilha escura como breu. Há uma diferença fundamental entre as palavras ditas e as escritas. As que saem da boca, o vento leva-as. Mesmo se alguém as ouve, elas perdem a solidez, tornam-se vestígios agarrados na memória, e não há coisa menos digna de confiança do que a memória. As palavras escritas, porém, enquanto permanecerem escritas, ficam ali, firmes, sólidas, prontas a ser reactivadas por quem as lê, e até a má literatura encontra quem a leia. A minha descrição da liquidez da oralidade só numa primeira aproximação faz sentido. Se eu estivesse em disputa comigo mesmo, diria: e se as palavras ditas forem gravadas? Não ganham elas a solidez da escrita? E teria de concordar que as palavras podem tornar-se sólidas, mesmo no estado gasoso. Os dispositivos de gravação de sons são, deste modo, formas de solidificação das emissões sonoras e, entre estas, de cada flatus vocis a que se dá o nome de palavra. Moral da história: quando se trata de palavras, todo o cuidado é pouco, mesmo se elas são ditas e não escritas. Não vá alguém estar a gravá-las. Temos de pensar nas múltiplas possibilidades e nas ameaças que se escondem nelas.
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