segunda-feira, 10 de março de 2025

Um verbo de outros tempos

O que é envelhecer? Talvez seja contar, uma e outra vez, as mesmas histórias, entregar-se à repetição de peripécias, navegar num oceano de iterações. Tudo isto a propósito da história que contei ontem sobre livros e mercearias. Quantas vezes a terei contado nestes textos? Não sei, mas a possibilidade de serem várias funda-se no simples facto de este ser o segundo milésimo ducentésimo décimo nono post. Não vou agora discutir a vexata quaestio da denominação do ordinal 2219.º. Há várias possibilidades, suportadas por especialistas. Como não sou especialista de nada, e muito menos de denominações de números ordinais, uso aquela que mais me agrada: uma questão de gosto e não de rigor na nomenclatura. Com isto, desviei-me do assunto que abriu o escrito: envelhecer. Jacques Brel – enfim, falar de Brel é uma prova de que sou de um outro tempo, que poucos já conhecem – tem uma canção, de 1963, com o título Les Vieux. A canção é belíssima e terrível. Traduzo a primeira metade da primeira estrofe do poema: "Os velhos não falam ou, então, por vezes, fazem-no com o olhar. / Mesmo ricos, são pobres, já não têm ilusões e têm apenas um coração para os dois. / Nas suas casas cheira a tomilho, a limpeza, a alfazema e ao verbo de outros tempos./ Que se viva em Paris, vive-se sempre na província quando se vive demasiado tempo. Os versos são longuíssimos, tão longos como a vida dos velhos de que fala Brel. Em 1977, o cantor belga, pouco antes de morrer (Outubro de 1978), edita um último álbum. Uma das canções, de uma ironia amarga, denomina-se Vieillir. O refrão diz, traduzido para português: "Morrer, isso não é nada. / Morrer, que grande coisa! / Mas envelhecer, oh, oh envelhecer..." Ora, Brel tinha 49 anos quando morreu. A sua casa nunca chegou a ter o cheiro do tomilho e da alfazema, nunca terá contado histórias repetidas ao mesmo auditório. Envelhecer é o processo onde nos repetimos, onde ainda falamos, usamos as palavras e repetimos aquelas que mais amamos. Talvez tudo isto seja apenas uma luta contra o silêncio, quando já ninguém tem paciência para ouvir as nossas histórias ou nós perdemos o interesse de as contar. Quem as perceberá, se o nosso verbo é de outros tempos?

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