Se viajarmos no mundo das ideias até Platão, temos a possibilidade de descobrir um entrelaçamento sólido entre o bem, a beleza e a justiça. A solidez era forte e resistiu durante muito tempo, até que, a certa altura, a estrutura começou a ruir, com as partes a separarem-se, como se fossem estranhas umas às outras, esquecendo-se da sua antiga unidade. A certa altura desta viagem, o escritor russo León Tolstói ainda tenta salvar, na sua meditação sobre a arte, essa unidade, mas era, há muito, uma causa perdida. No século XX, encontramos artistas cuja grandeza estética não é acompanhada por uma devoção ao bem moral. Por exemplo, Knut Hamsun, o grande romancista norueguês, foi um devoto, durante a Segunda Guerra Mundial, do governo colaboracionista pró-alemão de Vidkun Quisling. São conhecidas as suas loas a Hitler. A beleza estética dos seus romances parece conflituar com a sua dimensão moral. Um outro caso é o do autor do seguinte trecho: "A cabeça é uma espécie de fábrica que não funciona exactamente como nós queremos… Veja só… Milhões e milhões de neurónios… Um mistério absoluto… Você está bem arranjado! Neurónios entregues a si próprios! Ao mínimo ataque, a sua cabeça dispara em todas as direcções, você já não agarra uma ideia!... Sente-se envergonhado… Eu, aqui deitado na cama, gostaria de lhe contar mais coisas… Quadros, brasões, passagens secretas, tapeçarias… Mas perdi-me… Não encontro nada! A minha cabeça anda à roda…" O texto faz parte do primeiro romance, Castelos Perigosos, da Trilogia Alemã. O autor, também um colaboracionista, apoiante do governo de Pétain e um empedernido anti-semita, é Louis-Ferdinand Céline. O século XX foi um campo fértil onde grandes artistas se comprometeram com ideias e práticas pouco conformes ao bem e à justiça. É possível que, já no tempo de Platão, a grande muralha que unia o bem, o belo e o justo estivesse fracturada, e que o seu pensamento fosse um acto de reconstrução de algo que estava sob ameaça. Hoje, porém, nem um Platão renascido teria poder para cerzir essas ideias e devolvê-las à sua unidade originária. Elas são como galáxias num universo em expansão: afastam-se cada vez mais rapidamente umas das outras. Os sofistas, esses inimigos de estimação do platonismo, acabaram por triunfar.
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