quarta-feira, 12 de março de 2025

Falar consigo mesmo

Fui apanhado. Estás a falar com o espelho, escutei. Desmenti. Não que eu vi bem, estavas a falar com o espelho. Silêncio. Ao desmentir não estava a mentir. Não estava a falar com espelho. Estava envolvido num diálogo comigo. O facto de estar em frente ao espelho foi um acaso. De há uns tempos para cá, dei por mim em diálogos comigo mesmo. Toda a gente dialoga consigo mesma mas essa conversa fica retida dentro de si, sem transparecer para o exterior. Fui apanhado. Não por estar a falar com o espelho, mas por falar sozinho comigo mesmo. Vais enlouquecer, ouvi. Talvez, repliquei. Ou talvez já tenha enlouquecido, atrevi-me a informar. Para Platão, pensar é um diálogo interior e silencioso consigo mesmo. O meu problema é que o diálogo interior e silencioso comigo mesmo está a perder algumas características que me permitiam parecer saudável. Está a exteriorizar-se e a tornar-se menos silencioso. Acabarei a falar sozinho pelas ruas? Quem me garante que não o faço já? Estes diálogos interiores e silenciosos que se exteriorizam e se tornam quase vocálicos são interessantes, pois sucedem à volta de coisas que me preocupam ou que me irritam, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Nessas conversas comigo, o meu pobre ego é um herói, impante, destemido, glorioso. O interlocutor – o si mesmo – é pouco vocálico, parece perdido no discurso do ego, incapaz de o mandar calar. Por vezes, consegue uma aberta e sublinha que o melhor é prestar atenção ao que se está a fazer e, quando se está atento ao que se faz, não se fazem figuras tristes ao falar consigo mesmo, pelo menos de modo a ser apanhado desprevenido. A verdade é que gosto cada vez mais de falar comigo mesmo, e as conversas que entretenho comigo são as mais exaltantes. Estou a exagerar, mas tenho uma certa propensão para a hipérbole. Ora, falar consigo mesmo e ser hiperbólico não é cartão de visita que se apresente. Talvez já não existam cartões de visita, uma coisa extraordinária que houve em tempos, mas que nunca tive. Para me visitar, basto-me eu. A conversa será animada e, se descambar em disputa, a minha vitória está certa — também a derrota, mas o mundo está longe de ser uma coisa perfeita. Talvez devesse experimentar falar com o espelho; a ideia nem é má. Entre mim e a minha imagem especular há uma diferença tal que raramente reconheço naquele simulacro um reflexo meu.

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