quarta-feira, 5 de março de 2025

As cinzas de quarta-feira

Quarta-Feira de Cinzas. Para lá do significado religioso, o dia simboliza o destino da humanidade – Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar. – e de tudo o que é construção humana. É um dia em que se deveria enfrentar o oblívio da nossa condição. Ora, faz parte dessa mesma condição esquecer-se daquilo que é. Quem se vê como o pó ou as cinzas que, em potência, já é? O dia traz em si tal radicalidade que nem a própria Igreja o seleccionou como fazendo parte daqueles dias que serão feriado. Também eu não quis enfrentar o dia e entreguei-me ao cultivo da realidade. Ora, não há melhor estratégia para nos alienarmos desse espinho cravado na carne do que submeter-se aos ditames do real, às tarefas que o mundo – ou nós, por ele – nos destinou. Não tive de enfrentar a recordação de que sou pó e, se o faço agora, talvez seja porque o grau de alienação em que mergulhei durante todo o dia me tenha anestesiado. Olho os meus livros – que continuo a acumular, sem esperança de ler muitos deles – e vejo-os a arder. Não importa que nunca venham a ser devorados pelo fogo. Mais tarde ou mais cedo, sendo eu pó, poderão ainda resistir juntos por uma geração, mas não mais do que isso. Talvez esteja enganado, mas um dia serão as cinzas de uma quarta-feira.

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