Por aqui o calor não morde como no resto do país. Sim, o calor é um cão raivoso, agastado com a vida amena, sedento de uma água que não pode beber. Que começo dramático!, grita de dentro de mim um homúnculo que habita na minha consciência. Enquanto o homem não tem consciência, não há homúnculos que habitem nela. Porém, como no processo evolutivo da espécie, há um momento em que os homens adquirem — lentamente, pois não têm pressa para certas coisas — consciência, esta torna-se um propriedade imobiliária, um imóvel para habitação. E, como tal, os preços são exorbitantes. Os homúnculos instalam-se em sótãos e caves. Não têm dinheiro, dizem, nem para um Tê Zero. É daí que investem contra mim. Este é um homúnculo da cave, cavernícola e impiedoso, mais próximo do orangotango do que dos homens. Contudo, arvora-se a esteta opinioso e, caso se lhe preste atenção, começará a dissertar sobre filosofia da arte, a discutir o problema da morte da beleza – um tema que lhe é adequado – ou o da possibilidade de definir arte, enquanto olha para uma reprodução dos quadros com latas de sopa Campbell e vocifera contra a Pop-Art. Ora, como se vê, o homúnculo é eficaz, pois desviou-me do começo, da vexata quaestio do calor e das metáforas que usei ou que estaria disposto a usar, caso não fosse interrompido. Aqui retomo: o calor não é um cão raivoso, mas um cachorro simpático, que se deixa enrolar pela nortada e poisa sobre os corpos com a leveza de uma bela mão feminina. Ah…, grita o homúnculo, agora falas em beleza, mas na arte és capaz de preferir latas de sopa a belas paisagens que repousam o olhar e tranquilizam a alma. Olhei para ele, ergui a mão e fiz um gesto pouco digno de um narrador respeitável. Ele sumiu-se na cave, cujo aluguer está por pagar há anos. Devia pôr-lhe um processo de despejo.
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