Encurtei a caminhada matinal, uma ânsia de chegar a casa, um cansaço de sol sobre o corpo. Os ultravioletas dardejavam com inclemência — entravam já numa escala anunciada como muito elevada — e eu pensava nas possibilidades de combinar infra e ultra com as cores: o ultra-amarelo e o infra-azul; mas a realidade é muito mais prosaica, entrega-se aos infravermelhos e aos ultravioletas, como se fora um pedinte, incapaz de investir no grande empreendimento cromático do mundo, comprar acções do supra-verde ou do sub-rosa. A verdade, porém, é que os ultravioletas me fizeram regressar um pouco mais depressa: apenas seis quilómetros de caminhada, partir de casa para chegar a casa. Que estúpido — pensei —, se era para chegar ao ponto de partida, mais valia não ter saído, não me tinha encontrado com os UV que andam por aí, desencabrestados, prontos para apunhalar caminhantes desavisados, enlouquecidos pelo desejo de caminhar, com o sangue a latejar nas têmporas e o sol a chamar o suor, a transpiração, um asco. O melhor é ir para casa e tomar banho, deixar os UV para as ervas, as dunas, os passadiços de madeira, para aqueles que sonham com calor e navegam sonâmbulos pelas chamas do Inferno. Em casa, sento-me e olho para a existência, e tudo se passa entre o excesso dos ultravioletas e o defeito dos infravermelhos, como se todas as outras cores não possuíssem nem acima nem abaixo — o que faz delas cores sem espaço, pois, se há espaço, há, necessariamente, um acima e um abaixo, que podemos dizer ultra e infra, se tivermos desejo de o fazer, mesmo que os outros digam que não é a mesma coisa, que cores e espaço têm outra relação, as cores pegam-se às superfícies, mas elas não têm superfície. É nestas coisas que penso, enquanto espero que me dê vontade de ir tomar banho: um compromisso social, um almoço com amigos, um silêncio no coração, com o punhal do tempo encostado à jugular, os ultravioletas a mudarem de cor e o choro contido dos infravermelhos a murmurejar nos meus ouvidos, como se fosse água a correr de uma torneira ou um bico do fogão a libertar gás, para envenenar o ambiente e liquidar de vez todos os ultravioletas e os infravermelhos. São dias difíceis, a pátria está a partir para férias, e o ribombar dos canhões solares, disparando projécteis ultravioletas, não se cala. Partir de um sítio e chegar a ele. A vida — a minha, pois não conheço outra — é uma circularidade, um círculo vicioso, uma petição de princípio. Nasci predisposto à falácia.
Vejo que você não tem sido campeão em tudo. Um prazer passar aqui.
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