Está a ser um ano péssimo para as orquídeas aqui de casa. À exuberância de outros tempos sucedeu um desalento inexplicável. Uma parte não floresceu ainda – algumas prometem mesmo não dar flor – e as que floresceram fazem-no de um modo triste, melancólico, deixando as folhas murcharem rapidamente. O friso das orquídeas já teve melhores dias. Em Lisboa, é dia de feriado municipal, dia de Santo António. Ainda não compreendi a falta de previsão política dos sucessivos regimes que nos têm pastoreado. Perante a tensa disputa sobre se o santo é de Lisboa ou de Pádua, coisa que chega a envolver académicos, tê-lo como patrono de um feriado nacional seria um argumento convincente a favor da tese lisboeta. Promovê-lo a santo nacional para dar uma dura machadada nas pretensões dos paduanos e favorecer as dos lisboetas. Depois, todos os portugueses poderiam ir à praia ou a banhos noutros locais e não apenas os lisboninos. Onde me encontro, aa pequena cidade que me vê arrojar o peso da existência, estão previstos 40 graus lá para as três da tarde. Uma realidade excessiva para a minha capacidade de a suportar. Encerro-me dentro de casa, corro persianas e espero não ter de pôr um pé fora de casa, mas não sei se tenho sorte. Umas crianças em transição para o momentoso período da adolescência esganiçam-se na praceta. O sol não lhes afecta o corpo nem os neurónios. Talvez eu já tivesse sido assim, mas não juro. Movido a insónias progrido na leitura de A Consciência de Zeno, de Italo Svevo. Alguns aspectos mais risíveis da personagem Zeno lembraram-me uma outra personagem, Giovaninno, do romance À Descoberta de Milão, de Giovanni Guareschi, o autor dos épicos romances cujas personagens principais são o padre D. Camilo e o líder comunista Peppone. Fui verificar as datas de edição e o livro de Svevo – aliás, Aron Hector Schmitz – antecedeu o de Guareschi em 18 anos. Talvez este tenha sido influenciado, de algum modo, por aquele. Agora tenho mesmo de sair e encarar o dragão do calor. Uma aventura que enfrento, mesmo sem lanças nem flechas.
segunda-feira, 13 de junho de 2022
domingo, 12 de junho de 2022
Num limbo
Não tarda e terei de regressar a casa. Segundo sou informado, as temperaturas na pequena cidade onde levo a existência quotidiana terá chegado perto, demasiado perto, dos 40 graus. Nem sei bem o que dizer, pois só de pensar no caso sinto uma vertigem. Por aqui o tempo está espantoso, 21 graus, apesar de haver sol. O meu neto veio passar parte do dia comigo. Nos seus três anos e meio conseguiu arrastar-me à praia, um sítio que evito. Há qualquer coisa que os netos possuem que contamina os avós e os leva a fazerem coisas que, noutras circunstâncias, se recusariam a fazer. Depois, os netos vão-se embora e os avós ficam sozinhos, entregues a si num mundo que começa a não ser o deles. Nunca foi, claro, mas havia a ilusão de se pertencer a uma certa realidade, onde se reconheciam sem questionamento regras e hábitos. Agora, tudo começa a estranhar-se. Nessa estranheza emerge uma inquietação, e esta sublinha a distância, cada vez maior, entre o mundo a que se pertence e o mundo que existe. O mundo a que se pertence já não existe. O mundo que existe não tem lugar para nós. A partir de certa altura da vida entramos num limbo. Nem estamos no paraíso nem no inferno. Estamos em nenhures e quem vive em nenhures por certo não será coisa alguma. Há domingos que deveriam ser substituídos por outra coisa, talvez por um sábado. Seriam mais tranquilos, imagino.
sábado, 11 de junho de 2022
Do cultivo das aparências
Este sábado está a decorrer de modo anómalo. Comecei por fazer uma caminhada, a meio da manhã. Onde estou, a temperatura é muito moderada e o céu matinal estava coberto de nuvens. Os seis quilómetros de exercício renderam-me 72 pontos cardio. A OMS recomenda um mínimo de 150 por semana. Aceito a recomendação, embora não saiba muito bem para que serve. Quero parecer obediente. É um facto que apenas quero parecer e não ser, mas se todos cultivássemos as aparências o mundo seria um lugar muito melhor. Imagine-se um exemplo. Os dirigentes de um país estão cheios de vontade de invadir outro e destruí-lo. Contudo, prezam muito as aparências e evitam fazê-lo para não passar por belicistas e selvagens que, na verdade, são. Como se pode inferir, o cultivo das aparências é a salvação do mundo. Não há coisa pior do que essa ideia atoleimada de alguém querer mostrar o que é. Que guarde para si o que é e mostre aos outros um comportamento benévolo e afável. Estou a desviar-me do assunto. Estava a falar da anomalia do dia. Ora, para além dessa epopeia de caminhar seis quilómetros, tenho estado a descarregar uma série de romances, caídos no domínio público, de autores portugueses nascidos no século XIX e que escreveram nesse século ou no início do seguinte. Descobri uma coisa espantosa e anómala (daí a anomalia, que nada tem a ver com o conceito daquele autor que trouxe o conceito de paradigma para a ribalta, de tal modo que não há cão nem gato que não fale de paradigma). As universidades americanas e canadianas compravam a literatura portuguesa – e de muitos outros países, imagino – desse tempo para enriquecerem as suas bibliotecas. Não se pense que eram apenas os grandes nomes como Garrett, Herculano, Camilo, Júlio Dinis, Eça ou Antero. Por exemplo, Guilherme Centazzi, Manuel Pinheiro Chagas, Faustino da Fonseca, Arnaldo Gama, Joaquim Leitão e muitos outros. Fiz uma recolha interessante, num certo site americano, coisa de gente boa, interessada em partilhar o que está esquecido. Mesmo que quem o faça seja para manter as aparências, o benefício geral é imenso. Eu estou grato, a eles e às aparências.
sexta-feira, 10 de junho de 2022
A questão do dia de Portugal
Talvez seja um mau patriota. Enquanto, os portugueses celebravam o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades – que raio de nome – eu dediquei-me, em parte, ao trabalho. Aqui que ninguém nos ouve, sempre achei este dia uma estopada, não por ser o dia nacional, mas por comparação com o 4 de Julho, dia da Independência nos EUA, e o 14 de Julho, a comemoração francesa da tomada da Bastilha. Grandes festas nacionais. O nosso pobre 10 de Junho não mobiliza ninguém. Minto. Provoca uma enorme mobilização em direcção às praias. Ninguém quer saber, neste dia, nem de Portugal, nem de Camões, nem das Comunidades. Não há festividades populares, nenhuma relação de afecto entre os portugueses e o dia. Em resumo, falhámos em ter o nosso 4 de Julho ou o nosso 14 de Julho. Com o espírito construtivo que é o meu, proponho que este feriado passe para 24 de Julho, não por ser nome de avenida, mas porque nesse dia as tropas fiéis a D. Pedro e aos liberais entraram em Lisboa e puseram os miguelistas em fuga. Foi a nossa tomada da Bastilha, o reforço da nossa independência. E como seria em Julho não destoaria desses marcos liberais do mundo moderno. Contudo, para ser exacto, o dia de Portugal deveria mesmo ser o 5 de Outubro. Nesse dia, Afonso Henrique e Afonso VII assinaram o Tratado de Zamora, que reconhece o primeiro como Rei de Portugal. A Monarquia e a República portuguesas partilham a mesma data para se comemorarem. Seria o dia ideal. Podiam manter o 10 de Junho como feriado, declarando-o como Dia Nacional da Ida à Praia. Tenho sempre óptimas soluções para os magnos problemas que nos afectam, o pior é que ninguém quer saber delas. Depois, queixam-se que o país está como está.
quinta-feira, 9 de junho de 2022
Olhar de esguelha
Gostaria de falar sobre o mundo, mas ainda não saí de casa e tenho as persianas corridas para que as ondas de calor batam nelas e recuem, perdendo-se sabe lá Deus onde. O mundo que me coube até ao momento, neste dia, chegou em forma de videoconferência e o que se acerca desse modo não é um mundo, mas um simulacro, o exercício de potências inferiores que conspiram, em plataformas virtuais, para nos enganar. Um leitor ocasional deste escrito pode perguntar-se pelo estatuto de verdade das afirmações feitas mais acima. Serão verdadeiras ou serão falsas? A questão, todavia, será irrelevante. Que diferença fará o facto de eu ter, no dia de hoje, saído e as persianas estarem levantadas? Aceitamos sem questionar que a verdade será a adequação do que é dito com a realidade. Contudo, não me parece possível estabelecer qualquer adequação entre um conjunto de palavras e factos físicos. A distância entre representante e representado é desmedida. Há um verso de Herberto Helder que talvez diga o essencial: A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação. As palavras seriam essa fantasia minuciosa, uma inovação oblíqua. Por isso, não devemos crer que elas tenham o poder de dizer a verdade, pois estão constantemente perdidas em fantasias, com olhares oblíquos. As palavras olham de esguelha. Como se pode comprovar pelo que se escreveu acima, as videoconferências não contribuem para a sanidade mental de ninguém. Vá lá, contudo, as coisas poderiam ser piores. Em vez de ter citado um poeta reconhecido e um verso existente, bem poderia ter mobilizado como autoridade um poeta inexistente e um verso apócrifo, tão apócrifo quanto este narrador perdido na narrativa.
quarta-feira, 8 de junho de 2022
Contra o silêncio
No início de um ensaio, Carlo Ginzburg cita o dito do arquitecto Mies van der Rohe: menos é mais. Transporta-o para a sua área de estudo – a micro-história – e conclui que ao conhecer menos, ao estreitar o horizonte da investigação, acaba-se por ter a esperança de entender mais. Em tudo isto, a palavra mais sensata será esperança. A especialização contínua da ciência – seja em que área for – traz essa esperança de saber mais. Contudo, talvez se aplique a inversão da máxima de Rohe: mais é menos. Sabemos cada vez mais, mas compreendemos cada vez menos. O dramático disto reside no facto do homo sapiens sapiens necessitar, para se orientar na existência, de compreender. Não pequenas migalhas do mundo, mas do mundo como totalidade. O ‘entender mais’ fundado na redução do horizonte não mata a sede de compreender tudo, pois só dentro dessa compreensão globalizante a vida encontra um sentido. A religião e, depois, as ideologias foram estratégias encontradas para fornecer uma compreensão dessa totalidade. Ambas têm, nos dias que correm, má fama e pior imprensa. Em certas épocas, pensou-se na Filosofia como um dispositivo para fornecer uma compreensão da totalidade, mas também ela se especializou e adoptou como ideia orientadora o lema de Rohe: menos é mais. Os seres humanos encontram-se, assim, nessa singular circunstância de saberem cada vez mais coisas e de compreenderem cada vez menos para que serve esse saber e a sua própria existência. Imagino, por momentos, que deveria inventar uma máquina para fabricar cosmovisões, mas falta-me o talento não tanto para inventar máquinas, mas para tornar as cosmovisões convincentes. Talvez a única coisa que nos reste seja esperar – isto é, ter esperança – que nesse menos se manifeste um mais e, neste, se revele o todo. Tudo isto foi pensado por Francis Mute, numa das suas obras mais conhecidas, The Word of Muteness. O facto de o ter trazido para aqui não significa um acordo com a posição de Mute, mas a compulsão de não ficar calado.
terça-feira, 7 de junho de 2022
Ítaca
Há um poema de Konstantinus Kavafis denominado Ítaca. Jorge de Sena traduziu-o. Trata não tanto de Ítaca, mas da viagem que se faz para sair dela e a ela retornar. O poeta grego, na tradução do poeta português, recomenda: Mas não te apresses nunca na viagem. É um belo conselho ao arrepio do tempo, que exige que se tenha cada vez mais pressa. A recomendação de Kavafis prolonga-se: É melhor que ela dure muitos anos, / que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho. A viagem é uma metáfora da própria vida. E Ítaca? O poema acaba assim: Sábio como és agora, / senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca. Há um tom pessimista no belíssimo poema. Se a viagem é a vida, então Ítaca é a morte, esse lugar de onde se parte e a onde se chega. Dir-se-á que é absurdo o desejo de uma longa viagem, se o fim é a morte. Contudo, o que sabemos nós da morte de onde partimos e daquela a onde chegaremos? Esse pessimismo disfarça um optimismo que será, a meus olhos, inexplicável. O da esperança de que a experiência nos torne sábios e nos dê a compreensão dessa morte. Dar-nos-á, quando dá, a indulgência para com o destino, mas isso não nos traz qualquer compreensão, mas apenas a resignação.
segunda-feira, 6 de junho de 2022
Actos falhados
Deveria escrever sobre o sono que me atormenta depois de almoço. Não se tratou de um lauto almoço. Pelo contrário, foi um almoço frugal, mas mesmo assim sou visitado por essa inclinação para fechar os olhos e entrar nesse lugar onde a realidade é trocada pelos sonhos. Para mim, contudo, essa viagem é um desperdício de tempo, pois raramente me lembro dos sonhos ou mesmo que sonhei. Tudo o que é viagem é um desperdício. Lembras-te de estarmos aqui e ali, de termos ido a…? A resposta nem sempre é a mesma. Umas vezes respondo que não, outras que sim, mas na verdade raramente me lembro. Tenho para certas coisas uma memória difusa, uma espécie de nuvem composta por gotas de águas indistinguíveis. Para outras coisas continuo com memória viva. Para sonhos, não tenho memória. Caso me desse à psicanálise, não sei como é que poderia ser levado à interpretação dos sonhos. Se o psicanalista quisesse avançar, teria de recorrer à associação livre e aos actos falhados. Estes não me faltam. Aliás, desconfio que tudo o que faço é um acto falhado. Quero eu dizer que aquilo que faço – esta narrativa, por exemplo – deve o seu insucesso não ao acaso ou à falta de atenção, mas à realização de um desejo inconsciente. O meu inconsciente determina-me a falhar. O sono é um acto falhado. Que bela desculpa o dr. Freud inventou.
domingo, 5 de junho de 2022
Questões de interpretação
Há semanas que não falava com o padre Lodovico. Ligou-me esta manhã para me dizer que iria uns dias para o Baleal, para a casa de férias que a Companhia lá tem. Se eu quiser dar uma saltada até lá, poderíamos conversar e, porque não, ir jantar a um dos lugares interessantes que existem por essa zona. Combinámos para o próximo fim-de-semana. Depois, contou-me a sua ida a Itália. Ainda lá tenho família, acrescentou. Até tenho sobrinhos bisnetos. Eu sabia, mas tomei a informação como uma novidade. O que me apoquenta não é a morte, disse, mas a incerteza sobre se haverá um futuro para essa geração. Tudo parece tão incerto, como se o sentido com que as coisas foram investidas se estivesse a retirar delas. Olho para as coisas – comentou – e começo a não conseguir compreendê-las. É como se elas fossem apenas simples coisas e nada as envolvesse de uma aura que lhes desse, para o coração e a razão dos homens, significância. Respondi-lhe, rindo, que não era boa ideia ler tantas vezes o Apocalipse. Não brinque com coisas sérias. Às vezes, chego a pensar que aquilo que nos pode acontecer é bem pior do que uma distopia baseada numa interpretação literal do Apocalipse de S. João. O que nos vale – atrevi-me – é que não se devem ler os textos bíblicos de modo literal. Não é verdade, respondeu. Não basta interpretar esses textos de modo figurado ou de modo simbólico. O modo literal é essencial. A literalidade é uma dimensão que nunca deve ser esquecida, acrescentou. Não discuto, respondi, a teologia não é assunto que, como sabe, me interesse, e a hermenêutica é coisa para a qual não tenho inclinação. Ele riu-se e disse que tinha de se preparar para dizer Missa. A cada um as suas ocupações, pensei ao despedir-me. Pareceu-me mais animado do que da última vez que tínhamos falado, ainda abalado com a guerra, depois deste tempo de pandemia.
sábado, 4 de junho de 2022
Contra o papel
Vejo a informação de que ler um livro em formato digital é três vezes menos danoso para o ambiente do que fazê-lo em papel. Há muito que sou um entusiasta dos eReaders. Para vergonha minha, tenho três. As razões para isso – para além do meu desvario – são defensáveis, mas não vou argui-las por aqui. Há pessoas que dizem que livros são em papel, um livro digital não é um livro. É como se no início da imprensa alguém dissesse: livros são em pergaminho. Em papel não são livros. Como tenho prazer em andar com um rolo debaixo do braço e sentir nos dedos a rugosidade e no nariz o odor do pergaminho, só leio livros nesse suporte. Ora, como o pergaminho desapareceu e os livros continuaram, também é expectável que o papel desapareça e os livros continuem. As árvores – e por consequência as florestas – agradecerão comovidas. Há, contudo, razões económicas, para além das ecológicas. Imagine que tem disponíveis todos os clássicos – e não clássicos – que caíram no domínio público. Mesmo os livros que têm direitos de autor são mais baratos em formato digital do que em papel. Depois, há uma outra vantagem. Os livros digitais não necessitam de estantes, nem se empilham no espaço, em caso de falta de estantes. Por fim, uma vantagem não despicienda, quando o proprietário dos livros morrer, os descendentes não têm de se perguntar: o que vamos fazer com estes montes de papel? Toda esta história apologética – se não mesmo catequética – veio na sequência de ter estado a descarregar de um site francês uma série de romances caídos no domínio público. Entre eles estão dois romances italianos de Italo Svevo, La Conscience de Zeno e Senilità, ambos em francês. Por acaso, possuo-os em papel, na tradução portuguesa, mas estou a desaprender a ler em papel. Por aqui onde estou, está sol, mas a temperatura não ultrapassará os 22 graus. Seria uma óptima tarde de leitura, caso não houvesse uma festa de aniversário. O aniversariante – entrado agora na denominação de septuagenário – merece a festa. Além disso, as minhas netas estão a chegar e quero estar com elas e não com a consciência de Zeno, na sua rocambolesca psicanálise.
sexta-feira, 3 de junho de 2022
Prelúdios e interlúdios
Depois de um dia com alguma agitação, tentei ler alguns artigos de opinião dos jornais de hoje. Começava e, passada meia dúzia de linhas, dava o salto para outro. Talvez a razão estivesse em mim, na minha pouca disponibilidade para ler os outros. Pode acontecer, porém, que a questão estivesse mesmo na opinião. Emitir opinião é um exercício fútil – eu sei do que falo, pois também emito opinião, embora a minha seja emitida paroquialmente – e que, sob a capa de alimentar a esfera pública, não passa de uma diversão com pouco sentido. Em tempo li cronistas com grande entusiasmo, como o Eduardo Prado Coelho ou o Vasco Pulido Valente, mas ambos já morreram. Parece – mas talvez esteja a inventar – que tinham um pelo o outro um ódio de estimação, mas escreviam muito bem. Creio que os artigos de opinião não passam daquilo que os franceses chamam bavardage. Pura tagarelice, mesmo quando – ou principalmente aí – o opinante se esmera na tentativa de convencimento do público sobre a sua douta visão do mundo. Está fresco no sítio onde me encontro neste momento e isso é um bom prelúdio para o fim-de-semana, mas um prelúdio não é uma previsão ou uma profecia. A palavra prelúdio recordou-me uma outra: interlúdio. A televisão da minha infância era um acontecimento notável. Os programas eram interrompidos vezes sem conta por falhas técnicas. Assim que isso acontecia, era exibido um texto que dizia: pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos. Se os momentos se acumulavam para além do aceitável, tinha-se direito a um interlúdio musical. Naquele tempo, eu adorava futebol. Raramente a televisão transmitia um jogo, a não ser a final da Taça de Portugal e os jogos no estrangeiro das equipas portugueses. Era uma festa, embora muitas vezes em vez do futebol se tivesse direito a longos interlúdios musicais. Imagino, agora, que seriam os prelúdios de Chopin. Vou caminhar. Talvez isso me disponha para ler a opinião dos outros.
quinta-feira, 2 de junho de 2022
Compras
Talvez precise de trocar de carro, pensei. Pus-me a fazer consultas na internet, fui acumulando páginas abertas. Resultado? Fechei-as e acabei por fazer a assinatura da revista Electra. Saiu-me bastante mais barato e dar-me-á muito mais prazer. Tirando o desvario da adolescência e do culto das corridas de automóveis, estes nunca me interessaram. Não gosto, inclusive, de conduzir. Por outro lado, o carro que pensei trocar não faz mais de 2 mil quilómetros por ano. A revista Electra, de que acabei de comprar o número 16, é pertença da Fundação EDP. Apresenta-se do seguinte modo: “Electra é uma revista internacional de crítica e reflexão cultural, social e política, dedicada às diversas áreas da cultura, promovendo diálogos e oscilações de fronteiras entre disciplinas artísticas, saberes humanísticos e ciência, entre teorias e práticas culturais.” Independentemente destas intenções – na verdade, não me comovem – a revista é um belíssimo objecto. Textos e imagens são, por norma, excelentes. O papel é de grande qualidade. Vale bem os 27 euros por quatro números anuais. O número da Primavera deste ano trata da questão da identidade. Tem um diário de Almeida Faria e um portfolio de trabalhos de Jorge Queiroz, além de muitas outras coisas, nas suas mais de 250 páginas. Um dos meus escritores de culto é o austríaco Thomas Bernhard, não tanto pelo seu teatro, que desconheço, mas pela narrativa. Pensava que tinha tudo o que estava publicado em Portugal. Há dias, numa das minhas vagabundagens pelos alfarrabistas online, deparei-me com um título que desconhecia, Betão. Certifiquei-me de que não era uma peça de teatro e comprei-o. Fora publicado em 1990, na excelente colecção Caligrafias, das Edições 70, anos antes de eu ter descoberto o autor e de me ter tornado um seu leitor fiel. Bernhard chegou a viver em Portugal devido à doença pulmonar de que sofria. A Áustria não teria ares amenos para a sua situação. Acabou por morrer cedo, tinha acabado de completar 58 anos. Uma vez recomendei-o a uma amiga brasileira. Odiou. Ela precisava de visões optimistas para certificarem a sua visão optimista do mundo e do futuro. Em Bernhard não há, felizmente, nada disso. Dos autores descobertos já na fase da vida madura, apenas dois me tocaram. Ambos de língua alemão. Bernhard e W. G. Sebald, que também morreu cedo, com 57 anos, num desastre de automóvel. Agora vou ler diário do Almeida Faria, antes que me venham buscar para ir comprar – imagine-se – vinho para uma festa de alguém que se tornou septuagenário. Fiquei responsável por essa incumbência. Ainda gostava de saber a razão.
quarta-feira, 1 de junho de 2022
Das coisas facultativas
Apesar de estar em contínua mudança, o mundo muda menos do que se pensa. Oiço gritos na praceta. Um bando de adolescentes dá pontapés numa bola. Estão entusiasmadíssimos a jogar na rua. Fiquei a olhar para eles e vi-me a mim a fazer exactamente o mesmo, há muitas décadas. Espantam-me apenas os decibéis. Também eu e os meus companheiros de então gritávamos assim? Brincar na rua era, naqueles dias e numa vila provinciana, um exercício democraticamente distribuído. Todos brincavam na rua, a não ser um ou outro infeliz subjugado por uma tirania maternal. Estes que jogam à bola aqui em baixo, porém, são uma elite de felizardos. O que não muda é o entusiasmo dos rapazes atrás de uma bola. Ao reler o texto de ontem lembrei-me que tinha quebrado uma promessa feita a 27 de Maio. Não tornar a olhar para uma página de Eça de Queirós enquanto me lembrasse de que ele preferia, para acompanhar o célebre Bife à Marrare, capilé. Daqui podem-se extrair duas conclusões diferentes. A primeira afirma que este narrador é muito volúvel e muda rapidamente de opinião. A segundo sublinha que o mesmo narrador tem fraca memória. Cada um que escolha a conclusão que mais lhe agradar, havendo a possibilidade, ainda, das duas serem verdadeiras ou das duas serem falsas. Outra coisa em que sou obrigado a mudar de opinião é o cumprimento do horário da consulta pelos médicos. Hoje, fui consultado na hora marcada. O problema é que isto poderá ser apenas uma idiossincrasia daquele médico, um electrofisiologista cardíaco (tradução: electricista do coração), que, descobri, fez o curso enquanto aluno da Academia Militar. Ninguém pode chegar tarde à guerra e isso entranha-se na vida civil. Obrigar a todos os futuros médicos a fazer o curso ao mesmo tempo que frequentam uma academia militar seria um contributo decisivo para a pandemia do atraso com que os facultativos (estive quase a chamar-lhes esculápios) chegam às consultas. Ocorre-me, agora, que talvez por serem facultativos a presença a horas também seja facultativa.
terça-feira, 31 de maio de 2022
Demolições
Sem glória nem proveito, Maio fina-se hoje. Várias pessoas da minha família escolherem este mês para nascer. Não se queixam nem protestam por ele, em certos anos, não ostentar a aura que o nome anuncia. Talvez todos nós sejamos seres resignados com o mês em que nascemos. Habituamo-nos a ele e até chegamos a pensar que seria impossível nascer num outro. Por desfastio, triste pelo destino de Maio, pus-me a ler A Tragédia da Rua das Flores. No primeiro capítulo, Eça de Queirós, linha a linha, demole a boa sociedade da época. Não fica pedra sobre pedra. Usou não o florete da ironia, mas o camartelo. O segundo acto terminava. O regente, aos pulinhos, brandia a batuta; os arcos das rabecas subiam, desciam, com o movimento de serras apressadas; agudezas de flautins sibilavam; e o bombo, de pé, de óculos, com o lenço tabaqueiro deitado sobre o ombro, atirava baquetadas à pele do tambor, com uma mansidão sonolenta. Sobre o palco, Carlota, muito escangalhada, arrastando aos sacões através da corte a sua cauda enxovalhada, gania. Temo, contudo, que um dia destes seja posto no índex, por escrever coisas como esta: E o episódio aristocrático da sua carreira sentimental fora em Sintra, quando o social Padilhão o surpreendeu nos Capuchos com a Condessa de Aguiar. A Condessa era, é ainda, como um prato de mesa redonda: o que a recebe do seu vizinho da direita, serve-se e passa-a ao seu vizinho da esquerda. Desde então Dâmaso fitava as mulheres de frente, torcendo o buço. Sempre me pareceu que os sociólogos desperdiçam um vasto campo para o seu trabalho. Uma sociologia da literatura não com o fim de compreender as condições sociais onde foram produzidas as obras literárias, mas a investigação da sociedade que essas obras constroem. Isto não teria por finalidade perceber a sociedade do tempo de Eça de Queirós, por exemplo, mas a sociedade que Eça cria para nos levar a pensar que está a demolir a sociedade do seu tempo. E eu, ingénuo, suspendo a descrença e acredito mesmo que ele estava a demoli-la. Não estava, claro. O mundo social onde os homens habitam e o mundo social das obras literárias são como duas rectas paralelas, mas que nem no infinito se encontram.
segunda-feira, 30 de maio de 2022
Da regulação
Há que ser reconhecido ao santo regulador dos desvarios do clima. Por hoje, S. Pedro merece a nossa gratidão. Uma máxima de 24 graus é caso para romaria. Se nós olharmos para os reguladores existentes na terra, percebemos as suas dificuldades. Por exemplo, os reguladores financeiros são especialistas a não regular coisa nenhuma. Mal se olha para o lado e estamos todos metidos numa alhada dos diabos, pois os reguladores desregularam ou foram fazer outra coisa qualquer. Se regular as finanças é o que é, imagine-se o trabalho de regular o clima, os humores deste, as altas e as baixas pressões, os ciclones e os anticiclones. Chegaram-me hoje uns livros comprado online num alfarrabista. Quatro livros, para ser exacto. Abro-os para ver se neles me chega alguma comunicação de outro tempo, uma dedicatória a um amigo, um papel esquecido com uma lista de compras, alguma carta de amor por ali deixada. Nada. O passado está mudo e resiste em alimentar-me estes textos. Um desses livros é um romance de um antigo crítico literário, uma autoridade na matéria há umas boas dezenas de anos. Consta que, enquanto escritor, a sua sorte e o seu talento nunca impressionaram ninguém. Não o posso dizer, pois nunca o li. Tenho agora oportunidade. Um dos outros livros foi publicado por uma editora já desaparecida, a Sociedade de Expansão Cultural. Esta era o resultado de um trabalho quase de militância editorial de um escritor hoje completamente desconhecido, Domingos Monteiro. Naqueles tempos, era visto como um dos grandes novelistas nacionais. As cevadilhas da escola aqui ao lado estão exuberantes, cobertas por uma floração rósea. A tarde está cor de cinza e isso refresca-me a alma.
domingo, 29 de maio de 2022
Pequeno-burgueses
Diante de mim jaz o romance de Carlos de Oliveira, Pequenos Burgueses. Aguarda que a realidade se desanuvie para que eu prossiga na sua releitura. Ler é reler, alguém terá dito, mas não me ocorre quem. Voltando ao romance de Oliveira, o título levou-me a uma associação com um poema de Mário Cesariny. Aquela que começa e acaba com a seguinte quadra: Burgueses somos nós todos / ou ainda menos. / Burgueses somos nós todos / desde pequenos. Quando tinha escassa idade, mas já a suficiente para me interessar por coisas que talvez não me devessem interessar, a vexata quaestio da pequena-burguesia, com hífen, estava muito na moda. Havia debates e vitupérios em torno dessa inconsolável e inconsolada classe social, bem como da definição e extensão do conceito que a deveria definir. O poema do Cesariny mostrou-me a solução do enigma dos pequeno-burgueses. São aqueles que são burgueses desde pequenos. Por pequeno pode-se pensar aqueles que são crianças, aqueles que são pequenos de altura, aqueles que o são de carácter, aqueles que o são de rendimentos. A poesia abre as palavras à polissemia e essa salva a alma de quem a lê, ou a relê, mesmo que a finalidade seja tresler. Hoje é domingo, já cumpri um conjunto diversificado de tarefas, mas ainda tenho mais algumas para realizar. Hoje, por hoje, sigo aquele sábio conselho – de claro teor pequeno-burguês – não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Nada de procrastinar.
sábado, 28 de maio de 2022
Imprevistos
São grandes os dias e as tardes prolongam-se numa doce rêverie como se tivesse retornado, por instantes, aos Verões da longínqua infância. Uma quase desadequação à realidade. Ainda não se está no Verão, falta quase um mês para a sua chegada oficial, embora a infância esteja cada vez mais longínqua. O almoço não me predispôs a qualquer actividade nas horas que se lhe seguiram. Há coisas simples que parecem tocadas pela eternidade, como carapaus fritos – pequenos, mas não mínimos – e arroz de tomate. A culpada foi a minha neta que fez um pedido formal para este almoço. O resultado não foi venturoso. Sentei-me em frente da televisão, para ver o que se passava no Giro de Itália e adormeci, embora acordasse a tempo de ver o fim da história, isto é, da etapa. Eu não sou um adepto contumaz do ciclismo, mas acho-lhe alguma graça, se visto na televisão. Por norma, as paisagens são magníficas, vêem-se coisas que nem indo lá se conseguem ver. Quem ganha ou perde, quem dá à perna com mais ou menos vigor, isso pouco interessa. Havia um português nos primeiros lugares, mas parece que foi apanhado pela COVID e foi obrigado a desistir. São estes imprevistos que nos impedem de ser uma grande nação. Há sempre um vírus ao virar da esquina à nossa espera. E esquinas são coisas que não faltam neste país. Somos um pobre país rico em esquinas. Um país esquinado. Quando fui ver a minha mãe, neste 28 de Maio em que faz 89 anos, estava, na cidade, um calor insuportável. Ela reconheceu os filhos, mas dos netos e bisnetos não se lembrava, como de quase nada. A vida parece apagar-se do fim para o princípio. Tem vislumbres, conseguiu acertar na idade, mas não fazia ideia que era dia do seu aniversário. Por vezes, parecia fazer recapitulações perguntando a cada se era aquele que ela pensava ser. Depois, entrava numa outra dimensão que só ela saberá qual é. Uma fuga para uma realidade paralela ou perpendicular, mas por certo melhor que esta.
sexta-feira, 27 de maio de 2022
Uma nódoa de capilé
Trinta e sete. Não, este número não representa a idade de ninguém, nem é uma chave para qualquer arcano da numerologia. Não faço ideia se arcano e numerologia combinam. Ele representa a temperatura máxima sentida por aqui. Na rua, mesmo à sombra, a pele parece estalar. Recolho-me em casa e bebo água. Devia ter comprado umas cápsulas de descafeinado para fazer mazagran. A ausência da cafeína deve-se à presença da minha neta mais velha que chegou há pouco para ser massacrada com umas lições de Matemática a cargo da avó. Telefonou anteontem esbaforida. Irá ter um teste com toda a matéria do oitavo ano. Acho que lhe chamou teste global. É o que faz a globalização, dá cabo da sensatez dos professores e põe as crianças de rastos. O Word, sempre solícito, decidiu, ali em cima, marcar como erro mazagran, propondo para substituição mazagrã. Não aceito. Perde-se a referência a um local na Argélia denominado Mazagran. Esta palavra, segundo a rápida investigação que fiz, deriva de uma expressão berbere ma (água) e zagran (abundância). Talvez fosse um oásis. A bebida faz jus ao nome, pois tem água em abundância. Recordei-me também das groselhas, o refresco, e do capilé. Por causa deste, tive uma decepção com um dos maiores génios da nossa literatura. Li que Eça de Queirós preferia capilé a qualquer outra bebida (leia-se vinho) para acompanhar o Bife à Marrare. Enquanto me lembrar desta revelação não lerei uma página dele. Pode ter composto Os Maias, O Primo Basílio, A Ilustre Casa de Ramires e até As Cidades e as Serras, esse romance proto-ecologista, que não apaga a nódoa do capilé. E o Arroz de Favas, aquele prato que o Jacinto cantava, era acompanhado com quê? Limonada? Por amor de Deus.
quinta-feira, 26 de maio de 2022
Espiga
Uma espiga. Até 1952, a Quinta-Feira de Ascensão, em versão católica, ou o Dia da Espiga, em versão pagã, era feriado nacional. O governo de então não resistiu aos cantos de sereia da produção, da necessidade de trabalhar, e acabou com essa interrupção da realidade que permitia às pessoas da cidade irem ao campo lavar a alma, encherem-se de poeira e colherem espigas e flores silvestres, com as quais compunham um belo ramo, para pendurar à entrada de casa ou colocarem atrás da porta da despensa. Não seria um belo ramalhete rubro de papoulas, coisas do Cesário Verde, mas este também não se punha à porta de casa. Se eu tivesse uma alma de político e entretivesse a vida em luta pelo poder, faria de imediato a promessa de restauração nacional do feriado da Quinta-Feira de Ascensão. Seria um acto restaurador, quase tão importante como aquele que correu com os Filipes e nos trouxe os Braganças. Isto apenas por solidariedade com parte dos portugueses, pois vivo num dos concelhos – e são em número interessante – que elegeu o dia de hoje como feriado municipal. Como não tenho propensão política, lá fica a maioria dos portugueses sem possibilidade de ir apanhar a espiga. Para dizer a verdade, acho que apenas uma vez fui apanhar a espiga, mas tanto quanto me lembro não era a espiga que me interessava, embora já não saiba o que era. Talvez um ramalhete rubro de papoulas. Dá sempre jeito, desde que não venha acompanhado de imposturas tolas.
quarta-feira, 25 de maio de 2022
As quatro estações
Quando volto para casa, depois de uma manhã de múltiplos afazeres, fico especado em frente à porta. Revolvo os bolsos em busca da chave. Nada. Devo ter feito uma cara de estúpido, mas ninguém teve o prazer de a ver. Talvez a porta, mas essa é muda. Toquei à campainha. A porta abriu-se e fui olhado com ironia. Com que então a chave abandonada na porta durante quase cinco horas. Anuí e não disse mais nada para não engrandecer a heróica aventura de que tinha sido sujeito ou a que fora sujeito. Certamente, não foi uma aventura galante, como aquelas que preencheram a vida do Marquês de Bradomín, o mais admirável Don Juan, pois segunda uma tia, era feio, sentimental e católico. Contudo, pode haver não pouca galanteria num esquecimento, mas não foi o caso. O Marquês de Bradomín é uma personagem de Ramón del Valle Inclán, de uma série de romances dedicada às quatros estações. Estas, as quatro estações, têm um enorme sucesso no mundo da arte. Os concertos de Vivaldi, os romances de Inclán, os filmes de Éric Rohmer. É a estes que estou a dedicar os meus tempos livres. Já vi os filmes referentes à Primavera, ao Inverno e ao Verão (esta é a ordem). Falta-me o Outono, a minha estação preferida. Sou uma pessoa outonal e outonada, talvez mais do que o necessário. Estes filmes giram, como é hábito no realizador francês, à volta da equivocidade do amor ou, melhor, dos amantes. A minha homenagem de hoje, porém, não é para o amor, mesmo o galante, mas para as quatro estações, até porque vivo num lugar que ainda não as aboliu de jure, mas extinguiu-as de facto. Aqui só há duas. Ora é Inverno, ora é Verão. Isto é péssimo para a arte. Uma coisa são As Quatro Estações, de Vivaldi, que, aliás, fazem parte de doze concertos para violino, cordas e baixo contínuo, com o nome de Il cimento dell'armonia e dell'inventione. Outra, bem mais rasteira, seria As Duas Estações, sem os galanteios da Primavera, sem a prudente sabedoria do Outono. Ninguém me perguntou, mas eu informo. Prefiro o Marquês de Bradomín ao Marquês de Sade.
terça-feira, 24 de maio de 2022
Indícios
Acontecem coisas estranhas na vida das pessoas. Anda-se embrulhado numa incerteza sem fim sobre determinado assunto. Deve-se fazer isto ou aquilo? De um momento para o outro, um acontecimento inopinado fornece um indício e este torna-se a chave que conduz à decisão. Talvez isto contrarie a ideia aristotélica de raciocínio prático, desse processo de deliberação que conduzirá à melhor das opções. Ou, será uma hipótese mais interessante, existam duas formas de tomar decisão, não incompatíveis, apenas diferentes. Numa a razão delibera para escolher aquela que é a melhor das opções possíveis. Noutra, aguarda-se que um sinal fortuito forneça a indicação do caminho a seguir. Este último método não parece lá muito razoável, mas a vida tem muitas coisas irrazoáveis, havendo mesmo a possibilidade de ela ser também irrazoável. Seja como for, o assunto que me trazia na incerteza recebeu a solução graças a um indício fortuito. Curiosamente, sinto-me mais tranquilo e certo de ter feito a melhor escolha. Releio Pequenos Burgueses, um dos romances de Carlos de Oliveira. Este é um dos autores que mereceria mais atenção do público. Tanto na poesia como na prosa. Há nele uma contenção extrema e um desejo infinito de perfeição. O que mais impressiona nos seus romances é o modo como, limitando-se a um universo paroquial, fechado e sombrio, consegue uma escrita luminosa que está muito para além da paroquialidade. Por exemplo, este excerto de uma carta nunca enviada, como todas as outras que a antecederam, pela sua autora: Responda e deixe a carta dez metros para a esquerda do portão, entre as duas pedras do muro marcadas com uma cruz, mas ao responder ponha óculos escuros para o seu olhar não vir no papel e não tente escrever uma carta bonita, só em português, use a misturangada com que costuma falar, português e espanhol. Dá-lhe um ar de aventureiro viajado, que veio de longe. Se puder, ponha também o tom da voz, áspero mas agradável. É ele que não me deixa parar o coração quando esses olhos horríveis me gelam… Não faço ideia se hoje em dia, nas escolas, se lê Carlos de Oliveira, mas a leitura desta carta deveria ser obrigatória, não para ser esquartejada num exame, mas para os alunos aprenderem o prazer do texto, e ao aprender o prazer do texto descobrissem as forças subtis, cheias de indícios, que sustentam o jogo do amor. Acho que já escrevi demais. É preciso não abusar da paciência de quem, por acaso, lê estes textos.
segunda-feira, 23 de maio de 2022
Encanar a perna à rã
Queixamo-nos muito dos atrasos, mas talvez isso faça parte de uma longa tradição que remonta ao início da nacionalidade. Por certo que todos sabemos que a 5 de Outubro de 1143, pelo Tratado de Zamora, Afonso VII, rei da Galiza, Castela e Leão, reconheceu o primo, Afonso Henriques, como Rei de Portugal. Ora, o reconhecimento papal, contudo, só chegou a 23 de Maio (faz hoje 843 anos) de 1179. Tivemos de esperar quase 36 anos. Isto é mais demorado do que um processo num tribunal português. Esta longa espera, este atraso entre os factos e o direito, tornou-se em nós, portugueses, um hábito e um hábito é uma segunda natureza, na opinião de Aristóteles. Nascemos atrasados e não é claro que queiramos recuperar esse atraso. Andamos há seculos com 36 anos de atraso. A culpa, porém, não foi nossa, mas do Vaticano, que andou a encanar a perna à rã. Isto prova que encanar a perna de uma rã é um exercício demoradíssimo, que pode levar dezenas de anos. Por falar em rãs, os pássaros meus vizinhos decidiram fazer um concerto. Mais harmonioso do que se fosse um composto pelo coaxar das rãs. Os sapos também coaxam, mas imagino que o coaxar destes seja mais grave, enquanto o daquelas mais agudo, uma variação entre barítono e soprano. As segundas-feiras são sempre dias difíceis. A realidade atira-se a nós e gruda-se na pele. Para a descolar é necessário um esforço hercúleo. A energia fica toda aí, não sobrando nada para ajudar a criatividade deste texto. Paciência. O concerto acabou.
domingo, 22 de maio de 2022
Das coisas efémeras
Um dos jacarandás de uma das pracetas está já em adiantado estado de floração. Julgo que a norma, por aqui, era a floração estar exuberante em Junho. Agora, as coisas adiantam-se. O espanto que provocam os jacarandás em flor provém não apenas da beleza da árvore, mas de estarem em conjunto. Um exemplar florido perde muito do impacto, como se a espécie tivesse por divisa a união faz a beleza. O domingo passou-se sem que uma nova aventura se possa adicionar à gesta gloriosa que vou narrando por aqui. Ao comprar uns croissants recordei-me da moda que assolou este país há umas décadas. Não havia lugar que não tivesse uma croissanterie. Não me recordo se era assim que grafavam o nome do estabelecimento ou se aportuguesavam para croissanteria. Talvez existissem as duas modalidades. Foi um fenómeno galopante, tanto a espalhar-se como a desaparecer. Tudo o que deve permanecer necessita de uma longa incubação, caso contrário não passará de uma curiosa efemeridade. Também é verdade que vivemos numa era em que não há tempo para demoras. As coisas precisam de emergir rapidamente e rapidamente devem tornar-se obsoletas. A ideia de moda espalhou-se, como um vírus contagioso, por todos os aspectos da vida. Também o belo jacarandá terá uma glória efémera, embora para o ano ela possa voltar. Uma vantagem das árvores sobre os homens.
sábado, 21 de maio de 2022
Traduções
Hoje o dia não começou mal. A balança decidiu, ao fim de vários meses de recusa, devolver-me um peso um pouco mais baixo, dando-me a esperança – ou a ilusão – de que a trajectória descendente se torne efectiva. Também não precisará de descer muito. A situação não é catastrófica, nunca o foi. Há uns anos ou há uns quilos atrás, em Madrid, deparo-me, já não me lembro se no Museu do Prado ou no Rainha Sofia, com uma exposição, amplamente anunciada pela cidade, do pintor Alberto Durero. Não fazia a ideia quem era esse Alberto, embora houvesse qualquer coisa no nome que não me era completamente desconhecida, tinha um ar familiar. Vamos ao museu e aproveitamos para descobrir esse Durero, disse. Quando chego, descubro de imediato que não existia nenhum Alberto Durero e que a exposição era do pintor alemão renascentista Albrecht Dürer. Na minha ingenuidade (e ingenuidade depois dos quarenta não é ingenuidade, mas burrice, como dizia uma amiga), nunca pensei que mesmo os espanhóis se atrevessem a traduzir-lhe o nome. Pergunto-me como traduzirão eles Liev Tolstói. Por León Tostado? Lembrei-me dessa história porque vi, num blogue dado a efemérides, que Dürer nasceu a 21 de Maio, um dia que parece não ser mau para virem ao mundo pintores. Também a 21 de Maio nasceu Henri Rousseau, o pintor precursor da pintura ingénua. Talvez devesse usar a designação pintura naïf. As areias do Sahara retornaram. Já sabia. Esse saber evitou que ontem fosse pôr o carro a lavar. Tinha entrado nele e, olhando-o com alguma condescendência, pensei que era dia de o levar à lavandaria dos carros. Ia já a caminho, quando me lembrei que estava anunciada a visita arenosa do Sahara. Adiei. O dia tem uma tonalidade irreal, uma luz esbranquiçada, como se sofresse de anemia. A temperatura, porém, está acima dos 30 graus. Parece que tenho de ir às compras. A realidade é sempre pior do que a imaginamos.
sexta-feira, 20 de maio de 2022
Automóveis e adolescência
Um carro da Mercedes, do ano de 1955, foi leiloado por 135 milhões de euros. Consta que existem apenas dois carros dessa série. Nesse ano, nas 24 horas de Le Mans, o piloto francês Pierre Levegh despistou-se, tando morrido de imediato, num desses carros. A desintegração do automóvel atingiu o público tendo morrido 82 espectadores. Isto aconteceu ainda não tinha nascido, mas naqueles anos de adolescência em que era um apaixonado pelas corridas de automóveis, muitos pilotos morreram em competição ou mesmo nos treinos como aconteceu com Jochen Rindt, em Monza. Rindt, um austríaco, é até hoje o único piloto de Fórmula 1 que foi campeão mundial a título póstumo. A pontuação que tinha antes do Grande Prémio de Itália não foi alcançada por nenhum dos pilotos que lhe sobreviveram. Quando me interessava pelo automobilismo havia quatro corridas emblemáticas. As 24 Horas de Le Mans, o Grande Prémio do Mónaco, as 500 Milhas de Indianápolis e o Rally de Monte Carlo. Depois, a adolescência passou e com ela passou o interesse pelas corridas de automóveis. Nunca fui ver um Grande Prémio ao vivo e não retornei a ver passar um rally. Cheguei a ver passar o Rally TAP, que, naqueles anos, era uma das grandes competições de automobilismo de estrada. Depois, de um momento para o outro, o interesse passou, não tornei a ver um Grande Prémio na televisão e hoje em dia não faço a mínima ideia sobre o que se passa na Fórmula 1, em Le Mans ou se ainda existe um rally de Portugal, como o TAP. A adolescência é uma doença terrível, mas não é incurável. Penso eu, embora possa admitir que, nos homens, se torne uma doença crónica.
quinta-feira, 19 de maio de 2022
Da adequação dos nomes
É tarde e estou cansado. Descobri-o porque dei uma ordem de impressão a um documento e este recusou-se a ser impresso. Dei uma segunda ordem, a recusa manteve-se inalterada. Desisti de imprimir. Amanhã, trato do caso. Um exemplo de procrastinação. Lembro-me, perfeitamente, da injunção que, num livro da escola primária, um advogado dava a um camponês que o consultou em busca de conselhos: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Desconfio que nunca levei a sério aquele imperativo. Depois, descobri que me tinha esquecido de dar um novo comando à impressora e desprocrastinei. Como estou cansado, interessei-me por uma certa afirmação de Ludwig Wittgenstein: Sabemos muito bem que o nome “Schubert” não se encontra em nenhuma relação de adequação com o seu portador. Parece sensata a afirmação. O autor pretende mesmo justificá-la dizendo: O nome “Schubert” adequa-se completamente a Schubert – não significa nada. Não passaria de uma informação patológica sobre aquele que a dissesse. De facto, não é sintoma de boa saúde mental andar a dizer coisas que não significam realmente nada. Como posso, porém, saber que não há nenhuma relação de adequação entre o nome “Schubert” e a pessoa “Schubert”? A afirmação de Wittgenstein pretende dizer apenas que o nome da pessoa é uma mera etiqueta dada socialmente e não tem relação com aquilo que a pessoa é. Como poderei saber, porém, se aquela pessoa em vez de se chamar Franz Peter Schubert se chamasse Friedrich Wilhelm Nietzsche teria composto o que compôs ou mesmo se teria sido músico? Que sabemos nós do impacto que um nome pode ter no destino de uma pessoa? Imaginemos o seguinte: à pessoa x foi atribuído o nome Franz Peter Schubert, essa pessoa tornou-se o músico que conhecemos; por outro lado, à pessoa y, no mesmo dia, foi atribuído o mesmo nome e ela tornou-se um sem-abrigo. Não bastará isto para confirmar a justeza da teoria de Wittgenstein? Não, pelo contrário. Isto permite pensar que há atribuições adequadas e outras desadequadas. No primeiro caso, o nome conduz à realização de si; no segundo, o nome foi excessivamente pesado e a pessoa sucumbiu à carga que transportava. Talvez Wittgenstein tenha razão, e a minha mente esteja em avançado estado patológico. Amanhã, talvez tenha pensamentos menos idiotas. Há que não perder a esperança.
quarta-feira, 18 de maio de 2022
Do absurdo
Estive a ler, numa obra de Alexander Kluge, um diálogo completamente absurdo entre dois agentes diplomáticos britânicos em Moscovo. Não, não... não era um diálogo actual sobre a vexata quaestio da guerra na Ucrânia, mas da época em que ainda existia a URSS. É possível que, nesses tempos, todos os diálogos entre agentes diplomáticos em Moscovo fossem absurdos. Também não é inverosímil que qualquer diálogo entre quaisquer agentes diplomáticos em qualquer época seja absurdo. A única coisa que há que decidir é se a inclinação para o absurdo se deve aos assuntos a que os agentes diplomáticos se dedicam ou ao facto de possuir uma natureza absurda ser uma condição necessária para se tornar agente diplomático. Este dilema – porventura, falso – poderá não ter em consideração uma outra perspectiva mais global, ou, para usar uma palavra que começa a dar-me náuseas, mais holística. Quero dizer o seguinte: qualquer diálogo entre dois representantes da espécie humana é tendencialmente absurdo. O absurdo nascerá, caso exista, de qualquer diálogo não passar de um duplo monólogo, uma conversa onde os participantes deslizam paralelamente cavalgando cada um o seu discurso. Quanto maior fidelidade ao paralelismo, mais compensador é o diálogo. Esta é uma lei, e, como tal, tem uma aplicação universal. Isto tem, por outro lado, uma consequência interessante. Qualquer um de nós poderia ou poderá tornar-se um agente diplomático. Pelo menos, preenche uma das condições necessárias. Escrevia que a palavra holístico e a ideia de holismo começam a nausear-me. A causa, presumo, é que pressinto sempre que alguém usa holismo, holístico, etc. que aquilo a que se refere não é o velho hólos dos gregos, mas o hole dos ingleses. Não está a falar de um todo, mas de um buraco. Aliás, o diálogo mencionado referia-se a buracos ou, melhor, a perfurações. Uma conversa esburacada, além de absurda, esta.
terça-feira, 17 de maio de 2022
Em contramão
Hoje seria mais um dia sem uma grande aventura, não fosse o caso de ter entrado em contramão numa rua em Lisboa, mesmo no bairro de Campo de Ourique. Vi alguém a fazer gestos, mas não percebi que era comigo. Outra pessoa repetiu esses gestos e pensei que alguma coisa estava errada. Quando vi um carro a vir em direcção ao meu tive a certeza de que havia um problema. Lá comecei a fazer marcha atrás e, aproveitando a entrada de uma garagem, fiz inversão de marcha e fui à minha vida, isto é, cortei à esquerda, na rua a seguir, que era o que deveria ter feito. O pior de tudo é que eu sei muito bem que não se pode cortar ali. Como é que o cérebro dá um comando que não devia? Estava distraído? Não. Estava cansado, mas isso não é razão suficiente. A viagem tinha sido muito cansativa, com muitos engarrafamentos a chegar Lisboa e dentro da cidade. Depois destas aventuras e feito o que tinha a fazer, retornei à minha pequena província sem infringir a lei. Bem, na auto-estrada talvez a não tivesse cumprido com excessivo rigor, como não deixaram de referir em comentário à velocidade a que circulava. Estou com fome, desculpei-me. Curioso, porém, foi a sensação de demora na viagem de retorno. Sem impedimentos, uma velocidade que não se compatibiliza com a existência de radares, e a viagem nunca mais acabava. Aventuras de um condutor que não gosta de conduzir. Com tantas coisas interessantes para ocupar o cérebro e este tem de estar atento aos sentidos proibidos, aos limites de velocidade, aos semáforos, ao pára e arranca, ao vê lá se não bates. Depois, entra-se em contramão e põe-se toda a gente a fazer sinais estranhos, como se quisessem comunicar com um extraterrestre.
segunda-feira, 16 de maio de 2022
Tempo perdido
Maio já atingiu o meio. A volubilidade humana é terrível. Ao mesmo tempo, quero que o tempo passe depressa e que quase não se mexa. Ele, porém, é uma personagem cruel e impávida. Segue a um ritmo de que só ele sabe a cifra. Uma longa conversa ao telemóvel interrompeu-me os afazeres. Terei a noite para recuperar o tempo perdido. Tempo perdido, esta expressão recordou-me uma promessa feita a mim mesmo de reler o romance de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Hesito se o leio em Francês ou se na tradução de Pedro Tamen. Talvez seja essa hesitação que me tem levado a adiar o projecto, pois ler os sete romances é mesmo um projecto existencial. Foi assim que o encarei ao lê-los, há muito, numa tradução dos Livros do Brasil, que acabei por oferecer, quando comprei as traduções de Tamen. A leitura de Proust é um daqueles casos que exige que o tempo passe muito devagar. Aquilo que tenho para fazer, todavia, seria bom que fosse feito tão rapidamente que nem desse por isso. Hoje é uma daquelas segundas-feiras em que não me ocorre nada de assinalável. Nem tortos para endireitar, nem gigantes para combater. Nada.
domingo, 15 de maio de 2022
O fim do mundo
Há muita gente que não crê no fim do mundo nem que estamos na idade negra, a alguns milímetros de cairmos no mais insondável dos abismos, o nada. Até hoje, eu fazia parte desse grupo numeroso de cépticos relativamente ao destino apocalíptico da humanidade. Até hoje, digo bem. Contudo, depois de um almoço num restaurante italiano em Campo de Ourique, alguém diz que o melhor seria dar um passeio a pé até ao Jardim da Estrela, ao que outro dos convivas responde: isso era o lugar onde os magalas iam namorar as sopeiras. Foi o momento da minha conversão. Como S. Paulo, também eu tive a minha estrada de Damasco. Passei acreditar no fim do mundo. Não porque os magalas namorassem sopeiras na Estrela, coisa sabida por muita gente, mas porque alguém, com menos de quarenta anos, não fazia ideia do que era um magala. Uma revelação de que o mundo está por um fio. Argumentou ainda que sopeira, sim senhora, sabia o que era, mas magala nunca tinha ouvido. O espanto quase me impediu de fechar a boca. O pior, o que só radicalizou a minha conversão, foi quando se explorou o conceito de sopeira. Nada nele correspondia ao conceito histórico de sopeira. O que anda esta gente a fazer nas universidades? Mestrados, doutoramentos, e não sabem o que é um magala e uma sopeira? Quando se ignoram os factos básicos da existência, isso só pode ser o prenúncio do fim do mundo. Eu creio – isto é, passei a crer – que estamos na mais negra das idades, na idade de ferro, no Kali Yuga dos hindus. Estamos na última e mais escura era do ciclo cósmico.
sábado, 14 de maio de 2022
Está de ananases
No mundo da saúde, há uma hierarquia explícita, talvez um regime de castas como aquele que vigora na Índia. Na base, estão os pacientes. Melhor, os pacientes estão abaixo da base, são a poeira sob os pés de Brahma. Não interessa se são ricos, pobres ou nem uma coisa nem outra. São os intocáveis que suportam o edifício que sobre eles se ergue. Utilizo o termo paciente no lugar de doente, não por paciente significar aquele que sofre, o que é a definição correcta do termo, mas por ser necessária muita paciência. A paciência deriva não da doença, mas dos tempos de espera que um qualquer paciente é sujeito numa instituição de saúde, e não me refiro às públicas. Um médico especialista – um verdadeiro brâmane – que se preze nunca fará esperar um paciente menos de uma hora. É uma questão de estatuto e, como se sabe, os médicos nasceram da cabeça de Brahma. Hoje descobri que um técnico – neste caso de cardiologia – tem direito a fazer esperar o paciente – no caso, eu – meia-hora, apesar de me terem contactado para estar lá a uma certa hora. Fiquei grato por não ser um médico a colocar-me um aparelho que dá pelo nome, ele ou o exame, de Holter. Agora, estou ligado a um dispositivo que me vigia o ritmo cardíaco durante 24 horas. É sempre constrangedor o momento em que a menina, pois é sempre uma menina, me diz que posso fazer a minha vida normal, menos tomar banho. Imagino que ela está a sugerir que, apesar de parecer um bombista suicida, se o desejo me assaltar a vida sexual não está impedida. Não faço ideia se haverá nisto algum voyeurismo. Pressinto o técnico e o médico especialista que assina o relatório a fazerem considerações sobre a performance amorosa, talvez a aplicar alguma escala desconhecida para avaliar não as irregularidades do meu coração, mas as da sexualidade. Remeto-me, sempre, à mais rígida continência, senão mesmo à pura castidade. Por aqui está um calor de ananases. Derrete os untos. Está de escachar. E assim acabo com uma homenagem ao autor da Correspondência de Fradique Mendes.
sexta-feira, 13 de maio de 2022
Assédios
Estava eu numa grave crise de falta de assunto, quando leio uma notícia extraordinária. Os meritíssimos juízes de um tribunal britânico consideraram que chamar a um homem careca é uma forma de assédio sexual. Estabelecem os preclaros magistrados uma analogia na qual revelam uma imaginação não exígua. Comentar, no local de trabalho, a calvície de um homem é equivalente a comentar, no mesmo local, os seios grandes de uma mulher. Imagino que na base da analogia, a fonte que permite o transporte de uma situação para outra, será que cada uma das características é pertença de um só sexo. Assim, como só as mulheres podem ter seios grandes, também só os homens podem ser calvos. É evidente que os juízes não parecem ter grande formação em lógica informal. Há contra-exemplos gritantes que não foram tidos em conta no raciocínio analógico que subjaz à douta sentença. Há homens com seios grandes e mulheres carecas. Para lá deste pormenor, pode-se imaginar, segundo a jurisprudência agora inaugurada, que qualquer referência a uma característica especificamente masculina ou feminina – e sem contar com o próprio sexo – pode representar um acto de assédio sexual. O que vale é que hoje é sexta-feira e, ainda por cima, dia treze. Acabou de começar – esta é uma esplêndida expressão – o ensaio do conjunto da escola aqui ao lado. Não vou perder tempo com o assunto. Reparei que talvez existam adjectivos a mais neste texto. Isso não é uma boa notícia para o estilo, mas é um sinal emancipador para a classe dos adjectivos. Há que libertá-los da má fama e da sua evidente exclusão. Se os substantivos e os verbos podem ser usados sem limite, o que terão feito os adjectivos para ficar mal na fotografia? Preconceitos. Pior do que isso. Uma tentativa de cancelamento da realidade ontológica que essas palavras designam. Os inimigos dos adjectivos e da adjectivação hiperbólica são adeptos de um mundo sem qualidades. Não bastava o homem sem qualidades, temos também um mundo sem qualidades, sem determinações, sem relações.
quinta-feira, 12 de maio de 2022
Colapsos
Acabei de dar uma vista de olhos pela imprensa. O mundo parece ter entrado numa espiral de turbulência da qual não se vislumbra saída airosa. Não foi isso, contudo, que me prendeu a atenção. Com a minha relutância relativamente à realidade, a qual é sempre pior do que aquilo que se imagina, deixei-me levar pela notícia do dia. Trata-se da primeira imagem do buraco negro que está no centro da nossa galáxia. Tem uma massa 4 milhões de vezes superiores ao Sol, mas não faço ideia o que isso significa. Há coisas que a imaginação humana – pelo menos, a minha – não tem capacidade de processar. A fotografia é desoladora, não me parece ser um sítio onde a realidade seja melhor do que aqui. Apesar de estar no centro, tem um ar de subúrbio. Uma grande cidade, daquelas que se prezam em ser cidade, tem um centro tão atraente que só alguns podem lá viver. Já nas galáxias parece dar-se o contrário. O melhor sítio para viver é nos subúrbios, bem afastados do centro. Um buraco negro forma-se, segundo li, quando a matéria entra em colapso sobre si própria. Isto talvez queira dizer que todos nós somos buracos negros em potência. Todos podemos colapsar sobre nós próprios, embora não faça ideia do que significa a expressão matéria colapsar sobre si mesma. Quando o dia dá lugar à noite, isso significa que o dia colapsou sobre si mesmo e se tornou um buraco negro? Agora, que o crepúsculo se aproxima, vou dar atenção ao colapso do dia.
quarta-feira, 11 de maio de 2022
Perversões
Acabei mais uma incursão no admirável mundo novo das videoconferências. Nesta afirmação não existe qualquer censura ao facto de se substituírem encontros presenciais por virtuais. Aliás, permitiria, caso tivesse talento para isso, fazer profundas meditações sobre a virtualização do corpo, a sua redução a uma pequena imagem, quando não a sua ocultação. Influenciado pelos teóricos franceses dos anos sessenta e setenta do século passado, que, em Portugal, estiverem em moda nos anos oitenta e noventa, haveria de discorrer sobre o carácter censório desta ocultação dos corpos. A virtualização, diria, é uma estratégia para apagar os traços de erotismo que a presença corpo a corpo sempre pode desencadear. Debitaria tudo isto caso fosse dotado para o fazer. Confesso, por outro lado, que esta ocultação dos corpos atrás de um micro monitor, ao lado de outros micro monitores pedidos num monitor mais amplo, começa a ser-me bastante simpática. Talvez o virtual seja o caminho para a virtude. Por virtude não me refiro à perspectiva grega de excelência ou virtuosismo, mas à virtude que se expressa na resistência às tentações. O corpo do outro tornou-se um corpo fantasmático, e de fantasmas deve-se ter medo e não atracção erótica, o que entraria na categoria das perversões. Aqui, contra a minha tese, convém citar o senhor Jacques Lacan, um dos teóricos franceses que estiveram na moda naqueles tempos: toda a sexualidade humana é perversa, se seguirmos correctamente o que diz Freud. Ele nunca concebeu a sexualidade sem ser perversa. Isto é, para o pai da Psicanálise toda a sexualidade – incluindo a normal, esse súbito encontro entre pénis e vagina, fruto possível da posição do missionário – seria perversa. Talvez, o que cada um dos amantes deseje no outro não seja o corpo, mas o fantasma que nele se esconde. Apesar de ter alarmado as boas consciências do seu tempo com uma doutrina que falava da sexualidade, o dr. Sigmund Freud seria um conservador nos costumes, que, no íntimo, acharia que só a mais pura assexualidade não seria uma perversão. O melhor é ficar por aqui, pois não tarda e ponho-me a falar de política e de Wilhelm Reich, o autor de A Função do Orgasmo, que fez a ponte entre a psicanálise e o marxismo, coisas que a minha geração devorou, com o atraso devido a estarmos todos em Portugal, e com a inutilidade que resulta de tudo aquilo que se devora.
terça-feira, 10 de maio de 2022
S. Pedro, S. Pedro
Em tempos, Maio era um mês primaveril. Neste momento, estão 35 graus. S. Pedro enlouqueceu ou, então, foi de férias para o céu de um outro universo que não este. Podemos acordar-lhe que nós, os seres humanos, não somos particularmente virtuosos, sempre inclinados para actividades pecaminosas. É um facto. Contudo, também os santos têm um dever indeclinável com os pobres mortais. Serem misericordiosos. Sem misericórdia não há santidade, presumo. Ora, deixar que se chegue por aqui a estas temperaturas revela pouca misericórdia. Parece mais uma ameaça com as penas do inferno. Não sei se a punição será a melhor estratégia para levar os homens ao bom caminho. Desconfio que o santo proprietário das chaves precisa de fazer formação em pedagogia e psicologia motivacional. É uma impressão. A certa altura de um dos seus livros, Peter Sloterdijk escreve: Nas gravuras do século XVIII aparecem corsários do sexo feminino – de espada desembainhada, blusa aberta e peitos salientes – como que para provar que, no mar, a nova mulher age com toda a autonomia no seu papel de saqueadora. Será por isto que o S. Pedro se recusa a regular o tempo como deve ser? Estará ofendido ver mulheres dedicadas ao corso? Preocupa-o a autonomia feminina? Ficou chocado com a mulher de espada desembainhada? Ou a saliência dos peitos tê-lo-á perturbado? Seja qual for a razão, era bom que houvesse uma rápida reconsideração do estado do tempo. Sobre mim, estas temperaturas têm dois efeitos. Baixam-me a tensão arterial e elanguescem-me os neurónios, no duplo sentido de que ficam mais fracos e mais lânguidos. Neste caso, não é que eles passem a pensar em corsárias de peitos salientes, mas entregam-se a sinapses lentas e langorosas, como se houvesse um problema eléctrico qualquer. As junções sinápticas tornam-se uma coisa indecorosa e de eficiência tendencialmente nula, que se traduz em textos lamentáveis como este. Agora, tenho de me levantar e enfrentar o tórrido calor da rua.
segunda-feira, 9 de maio de 2022
Sapiens
Uns adolescentes tentam engrossar a voz na praceta. O peso das hormonas desequilibra-os e desfigura-lhes a frágil humanidade que ostentam. Com o tempo, tudo encontrará o lugar, e eles hão-de esquecer-se das figuras que agora fazem. Talvez cada um de nós tenha de recapitular o processo de evolução da espécie, onde se incluirá por certo aqueles estádios pré-humanos que antecederam a gloriosa alvorada do homo sapiens sapiens. O que acontece, e talvez não sejam poucas as vezes, é que alguns não chegam ao segundo sapiens, ficam pelo primeiro. Outros, nem ao primeiro sapiens chegam, ficam pelo homo. Haverá ainda aqueles que, apesar da figura, não chegam sequer a homo. São hominídeos na aparência, mas não na essência. Nem vou discutir se existem ou não essências. Neste texto existem, e é isso que importa. A cidade está arqueada ao peso do calor. O sol entranha-se na pele e esta parece estilhaçar-se. Ainda vamos em Maio. Sobre a mesa tenho uma carta da Autoridade Tributária e Aduaneira. Abro-a desconfiado e vejo haver razões para desconfiança. Um imposto para pagar. Tenho tempo, penso e deixo a mensagem deslizar pelos dedos. Elenco as coisas que tenho para fazer. Respiro fundo e insulto, entre dentes, a realidade, não vá ela escutar-me. As acácias começam a cobrir-se de folhas. Ainda são árvores com um aspecto esgalgado. Daqui a umas semanas estarão todas cobertas de uma folhagem verde. Serão exuberantes. O galgo que há nelas ter-se-á ocultado. Começo a fazer associações linguísticas que, apesar de correctas, não indiciam grande sanidade mental.
domingo, 8 de maio de 2022
Um perplexo sem guia
Continuo a ler coisas que não deixam de aumentar a minha perplexidade. A quantidade de pessoas que deseja pôr a mão na vida das outras, de lhes dizer como devem viver e o que devem fazer, é alucinante. Esse desejo não é sequer da ordem da enunciação, mas da própria acção. Interferir na vida dos outros, dizer-lhes no que devem acreditar, tudo isso tornou-se objecto de uma militância espalhada um pouco por todo o mundo. O direito de cada um a dispor da sua própria vida como bem entender tornou-se, no delírio crescente que assola este pobre planeta, um sintoma de uma sociedade decadente e corrupta. Dito de outra maneira, ser livre é um sinal de decadência. Como tal, a liberdade dos indivíduos deve ser suprimida. Estas meditações são completamente descabidas num domingo, antes de almoço. Ocorrem, por certo, porque o almoço é mais tardio e haverá uma conexão entre a espera e as considerações mais ou menos mórbidas. O dia, porém, está luminoso, e nada indica que viva numa sociedade particularmente decadente, embora possa estar errado. Talvez devesse dedicar a tarde a ler uns textos do romântico alemão Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, a que deram, em espanhol, o título de Alba del Nihilismo. O almoço interrompeu-me a especulação em torno do livro de Jean Paul. Esqueci-me do que ia dizer, prova suprema da sua irrelevância, como a de tudo o que narro. É domingo, a tarde está a tomar aquela coloração inquietante que antecede a vinda da inutilidade dos dia úteis. Não passo de um perplexo sem guia.
sábado, 7 de maio de 2022
Sábados à tarde
Quando era estudante, havia aulas ao sábado de manhã. Nesses tempos, o sábado não era dia de descanso. Havia aquilo a que se chamava, salvo erro, a semana inglesa. Cinco dias e meio de trabalho e um dia e meio de descanso. Acontecia que, nos sábados à tarde, na pequena província a que pertenço, não havia grande coisa para fazer e lembro-me de ficar diante da televisão a ver os jogos de Rugby do Torneio das Cinco Nações. Uma competição entre a Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda, na qual se imiscuíra a França. Não que fosse, na altura, um especial adepto da modalidade, mas era o que havia para ver, no segundo canal de uma televisão a preto e branco, tal como o país. Lembrei-me disto porque há pouco apeteceu-me ver um jogo de Rugby e procurei um no Youtube, precisamente um França – Inglaterra. Os tempos mudaram, a modalidade foi capturada por um canal de desporto pago, deixei de ver os jogos e o Torneio das Cinco Nações deu lugar ao Torneio das Seis Nações, com a entrada da Itália, a qual, coitada, parece ter sido designada para bombo da festa. Nunca ganhou uma edição e não é previsível que venha a ganhar nos tempos mais próximos. Para além do jogo, tenho estado a ler o livro do historiador Mark Sedgwick, com o título extraordinário – pela sua dimensão – Against the Modern World – Traditionalism and the Secrete Intellectual History of the Twentieth Century. Não se trata de uma obra sobre teorias da conspiração, mas sobre a história dos movimentos espirituais, intelectuais e políticos tradicionalistas e perenialistas que recusam o mundo moderno e os valores do Iluminismo. É espantosa a quantidade de alucinados que existem e, pior do que isso, a influência que têm em muitos acontecimentos dos dias de hoje. Essa influência traduz-se em guerras, como aquela que decorre na Europa, atentados, violência sem fim. Sonham com o retorno do mundo a uma ordem que, muito provavelmente, nunca existiu. Caso essa gente gastasse as energias a jogar Rugby, o mundo seria um local melhor, mas não. Preferem entregar-se ao delírio da especulação e, depois, a tentar que os outros se submetam aos seus pesadelos. A minha neta mais velha veio há pouco. Está a ser sujeita a um conjunto de torturas pedagógicas, que vão do Português à Física, com passagem pelo Francês. Eu tinha a idade dela quando me entregava, nos sábados à tarde, aos jogos de Rugby. Não sei se devemos falar de progresso no mundo. Para a compensar, já marquei mesa para o jantar no restaurante de que ela mais gosta.
sexta-feira, 6 de maio de 2022
Em ritmo slow
Cheguei a casa mais tarde do que é hábito, mas ainda a tempo de, sentado no escritório a olhar para o vazio, ouvir o ensaio do conjunto da escola secundária aqui ao lado. Continua apostado em músicas do tempo em que os avós dos alunos eram jovens e sonhavam com bailes de finalistas ou outro tipo de entretenimento, onde um laivo de erotismo pudesse dar alguma cor aos dias. Havia, tanto quanto me lembro, uma expressão exacta que definia aquilo que era tocado, música para constituir família. Uma prova de que o sexo, naqueles tempos, ainda era visto na antecâmara do casamento, embora tudo isso estivesse submetido ao estatuto social onde se habitava. Esse tipo de música era composto por uns slows, nos quais os pares dançavam quase sem se mexerem, não fossem tropeçar uns nos outros. A coisa teve uma tal dimensão que a palavra slow foi dicionarizada em Portugal para referir tanto o tipo de dança como a música que a acompanhava. Naqueles dias, não se sabia que aquilo que parecia ser uma decisão do livre-arbítrio, uma prova da liberdade, não passava de uma estratégia da vida para se reproduzir, o engodo químico de um aparato hormonal ao serviço dessa vida. As pessoas casaram-se, tiveram filhos. Entretanto, descobriram que se podiam divorciar e tentar reencontrar esse magnífico engodo auroral. Não podem. Cada dia só tem uma aurora, o mesmo se passa com cada vida. Isto, porém, não significa que não possam existir meios-dias muito mais intensos do que a melhor das auroras, mas também bem mais próximos do crepúsculo. Há magníficos crepúsculos junto ao mar, como nos anúncios turísticos, onde a palavra slow volta a ter um peso fundamental. Não como música ou dança, mas como ritmo de um corpo crepuscular. Tudo se torna mais lento, menos o tempo que passa cada vez mais depressa, pouco interessado em slows. Ele não precisa de se reproduzir.
quinta-feira, 5 de maio de 2022
Quase um saudosista
Um equívoco, foi o que pensei, ao passar pela rua e ouvir alguém dizer que vamos ter um Verão péssimo. Não vamos ter um Verão péssimo, já o temos com as garras afiadas e a cair sobre os corpos que ainda ontem se cobriam com medo do frio. Imaginemos que Vivaldi vivia nos dias de hoje. Jamais comporia As Quatro Estações, quatro concertos pertencentes a uma série de doze com o título Il cimento dell'armonia e dell'inventione. Hoje teria de suprimir os concertos referentes à Primavera e ao Outono. Isto é uma prova de que Antonio Lucio Vivaldi era um homem afortunado, pois viveu numa era na qual os homens ainda não tinham começado a interferir no reino de S. Pedro e a manipular o clima. Vivemos numa época de grandes paixões climáticas, com uma inclinação para a bipolaridade. Ora calores intensos, ora frios absurdos. Na rua, por estes sítios, o flagelo do calor já está em velocidade de cruzeiro, sem que se tenha notado a existência de uma fase inicial preparatória ou incoativa. Digamos que desapareceu a harmonia e a invenção que resta é absolutamente dispensável. Que saudades desse tempo em que existiam quatro estações. Não tarda, torno-me um saudosista e começo a falar sobre o Quinto Império e o Reino do Paracleto, eu que nasci numa terra que cultua o Divino Espírito Santo. Nunca sabemos para o que estamos guardados.
quarta-feira, 4 de maio de 2022
Recomposição do rosto
Recomposição do rosto. Não se pense que é o título de um poema ou de um livro de poesia. Não é. Recomposição do rosto é a fase pela qual estamos todos a passar. Com a queda das máscaras, deparamo-nos com rostos que não se coadunam com aquilo que deles víamos quando se escondiam sob o disfarce imposto pelas contingências da pandemia. A emergência dos rostos à plena luz traz com ela uma sensação de inquietante estranheza. Com o passar dos dias, esses rostos inquietantes e desadequados à nossa expectativa começam a fazer sentido, a perder o ar inquietante que revestiram nos primeiros dias de libertação. Além dos rostos, também o tempo se está a recompor, e isso, no que me toca, não são boas notícias. Deve haver em mim uns genes que não são propriamente do Sul, mas de terras sombrias, onde a luz solar é exígua e o calor diminuto. Num livro de poemas encontrei uma factura de um restaurante. Procurei a data. Era de 2017, de cinco de Junho. Nela, encontrava-se o nome do funcionário, aliás excelente. Já não é funcionário nesse restaurante. Isto é uma prova de que a realidade não é imutável e que o tempo teima em não se fixar. O que acho, porém, mais indecoroso é marcar um livro com um papel como aquele, eu que possuo uma colecção de marcadores de livros, cartões de restaurante, bilhetes de cinema, quando estes eram de cartolina ou coisa no género, uma colecção, dizia, que parece não acabar. Também eu estou a precisar de me recompor. E não é pouco, murmura-me a consciência. Ora, se há alguém a quem não devemos dar crédito é à própria consciência. Agora, vou dedicar-me à videoconferência, uma modalidade existencial que nos ajuda a mantermo-nos à distância uns dos outros, o que poderá ser um contributo real para um mundo melhor.
terça-feira, 3 de maio de 2022
As vantagens da literatura
Dmitry Pissarev tinha, numa fotografia acessível por aí, um rosto curioso. Poderia ser o de um santo, poderia ser o de um sábio daqueles que só existiam antigamente. Não era uma coisa nem outra. Era um niilista russo e um revolucionário. Um anarquista. Afogou-se, em 1868, com 28 anos. Não consegui apurar a categoria do afogamento. Suicídio? Crime? Acidente? Tinha uma singular maneira de ver a realidade. Singular, não porque fosse única ou extravagante, mas porque, apesar do seu niilismo, era bastante comum, senão trivial. Ele achava que para o homem comum um par de botas conta muito mais do que as obras completas de Shakespeare ou de Puchkine. E nisto ele é acompanhado pelos milhões e milhões de homens comuns, mas não só. Também Van Gogh, que estava longe de ser um homem comum, se interessou por velhos pares de botas mais do que pelas obras completas de Shakespeare ou de Puchkine. O círculo de niilistas russos tinha ideias que não deixaram de se propagar pelo mundo. Ações directas e violentos, terrorismo. Para quê? Para pôr fim ao czarismo e depois reconstruir cientificamente a sociedade para o rebanho dos homens comuns e respectivas mulheres comuns, com os respectivos filhos comuns, isto é, a massa, terem a felicidade assegurada. Todos os séculos são cruzados por inúmeras ideias radicalmente idiotas, mas o XIX deve ter tido um fornecimento suplementar. Uns queriam chegar à pura liberdade através de uma férrea ditadura. Outras queriam assegurar a felicidade pela promoção da infelicidade. Ora, se em vez de tudo isso se entretivessem a ler Shakespeare e Puchkine, o mundo não seria pior nem os homens comuns mais infelizes. A literatura tem muitas e insuspeitas vantagens.
segunda-feira, 2 de maio de 2022
Problemas de afectividade
Deveriam existir dias feriados de compensação. Compensar o quê? Os feriados que calham ao fim-de-semana, como aconteceu ontem, coisa de qua ainda não estou recuperado. Dever-se-ia também incluir o domingo de Páscoa. E então a produtividade nacional, perguntar-se-á. A minha hipótese é de que ela aumentaria. Os corpos e as mentes precisam de um certo tempo de recomposição e aquele que é dado parece-me exíguo para quem quer obter grandes performances. Acabei de dar uma vista de olhos pelos jornais. As novidades são muito cansativas. Estão sempre a repetir-se. A grande novidade seria a da anunciação de que a partir de agora os homens deixariam de ser homens e tornar-se-iam outra coisa. Por exemplo, seres civilizados. Contudo, a palavra civilização – de onde nos chegariam os seres civilizados – não me parece muito promissora, pois tornou-se moda fazer guerra e matar em nome da civilização. De tudo o que vi, a única esperança num mundo levemente mais decente foi a proposta, no parlamento português, de se fazer uma experiência de semanas de quatro dias de trabalho. Parece-me decente, mas inviável. Não porque o seja economicamente, não o é, mas por um motivo sentimental. As entidades empregadoras têm imensas saudades dos seus empregados. Gostam de os ver, de os ouvir, de trocar dois dedos de conversa com eles. Durante o fim-de-semana, quase morrem – e falo literalmente – de saudades deles. Não fosse a tirania do Estado, e elas, as entidades, haveriam de conviver com os empregados sete dias por semana. Como é que iriam suportar estar três dias por semana sem aquela doce companhia? Adoeceriam e entupiriam o serviço nacional de saúde ou os hospitais privados, talvez mais adequados. Como se vê, uma tão boa ideia choca de imediato com a realidade, o bem-estar das entidades empregadores e a saúde pública. O autor está furibundo com este pobre narrador. Que este texto cheira a política. Eu esclareci-o que era falso. Trata apenas da saúde e dos afectos. É um texto cheio de afecções. Se não a semana de quatro dias, ao menos os feriados de compensação.
domingo, 1 de maio de 2022
Animais humanos
Chegou o mês que, por tradição, traz os calores despropositados. Ainda não serão dias de quarenta graus, mas a anunciação do inferno já se fará sentir. Sem se dar por isso, um terço do ano está cumprido. Nestes quatro meses, vimos começar uma guerra aqui ao lado, perigar a segurança a que nos tínhamos habituado e ainda pôr de lado, por cansaço e habituação, a pandemia que nos tolhe a vida há dois anos. São tempos para especulações escatológicas. Estas têm sempre um mercado razoável e nunca falta uns tresloucados prontos para alimentar os temores e as meditações negras. Em tempos, esteve na moda caracterizar o homem como um animal racional. Pertenceria ao género animal, era um ser com anima (alma, princípio de vida), e a racionalidade era a diferença específica que o separava dos animais não humanos, como se tornou uso dizer. A questão, porém, é que o casamento entre a animalidade e a racionalidade não parece ser coisa particularmente benéfica. A razão deu aos animais humanos um poder destrutivo que não teriam, caso fossem dela privados. Não apenas seriam incomensuravelmente menos destrutivos, mas também muito mais felizes. Regulados pelo instinto, agiriam de acordo com os ditames da natureza ou de Deus – conforme a crença do leitor – e não teriam qualquer meta a alcançar, qualquer ideia que os tornasse desavindos consigo mesmos. Pensou-se que a razão seria uma estratégia para aplacar a nossa animalidade. O que se vê, porém, desmente essa pretensão. A razão é o modo como um animal frágil se torna um terrível predador. Agora que já me conferi o direito de tratar da bílis em público, volto para a música de Orlando di Lassus, os Salmos Penitenciais de David, na interpretação do The Hilliard Ensemble. Tendo esta música sido escrita e interpretada por seres humanos, desconfio que, apesar de tudo, o animal racional que há em nós ainda não estragou tudo. É uma suspeita. O pior será o calor que nos espera, caso não nos espere coisa pior.
sábado, 30 de abril de 2022
Cifras e decifrações
O teólogo metodista argentino Pablo Rubén Andiñach começa a introdução à sua obra El Libro del Éxodo com a seguinte proposição: Todo o texto é um enigma a decifrar. O espantoso é a inexistência de um adjectivo que restrinja a amplitude da afirmação. Poderia ser por exemplo todo o texto sagrado, ou todo o texto bíblico, ou todo o texto literário. Não é isso, porém, que Andiñach diz. Qualquer texto é enigmático. Imaginemos um texto trivial: passa pelo supermercado e traz limões. É um texto, logo, segundo a proposição exposta acima, é enigmático e precisa de ser decifrado. Coisa que qualquer um de nós achará ridícula. No entanto, só podemos imaginar que um texto como passa pelo supermercado e traz limões não é enigmático porque estamos na posse da cifra que permite decifrá-lo. Uma pessoa, mesmo sem sair da trivialidade e apesar de entender o texto, pode perguntar: qual supermercado e quantos limões? Ou então, quando deverá passar pelo supermercado? O carácter enigmático de qualquer texto reside na sua autonomia relativamente ao momento da sua produção. Ficam ali aquelas palavras que, por mais que as interroguemos, dirão apenas o que lá está. O que lá está é, pelo menos, duplamente cifrado. Representa a cifragem da intenção de quem o escreveu e a cifragem do texto abandonado a si mesmo, limitado por aqueles elementos que o constituem. Em vez de escrever estas palermices poderia estar a ver a corrida da Fórmula E, que está a passar num canal desportivo, uma competição em que os carros são eléctricos. Isso tem um tremendo impacto na musicalidade do automobilismo. Enquanto na Fórmula 1, os carros roncam poderosamente, na Fórmula E, zumbem como insectos gigantes ou balas à procura do seu alvo. O que se pode perguntar é se o roncar de uns e o zumbido de outros será transformável em texto que mereça ser decifrado. Há uma grande preocupação musical com a linguagem dos pássaros, mas deveríamos também dar atenção à linguagem dos objectos. Comporão, por certo, textos enigmáticos à espera do decifrador certo. Hoje acaba Abril e a minha imaginação continua sem dar sinais de melhoras.
sexta-feira, 29 de abril de 2022
Ignorância e presunção
Confirmei agora que os meus vizinhos pássaros voltaram das férias que foram passar mais ao Sul. Já tinha escutado umas conversas, mas isso não era uma prova definitiva do retorno. Poderiam ser alguns batedores que vieram mais cedo para inspeccionar as casas e o território, assim como o estado climatérico, pois não sou só eu que se interessa pelas metamorfoses do tempo. Os pássaros também necessitam de boletim meteorológico e é provável que possuam uma app orgânica para o consultarem. Depois, devem enviar informação, talvez em código morse, para os bandos que esperam para retornar aos lugares do passado. Há neste nomadismo das aves uma coloração conservadora, um desejo de retorno aos mesmo lugares. Tudo isto, porém, é imaginado por mim, pois a ornitologia é uma das incontáveis coisas de que nada sei. Sempre poderia usar aqui o velho aforismo socrático, só sei que nada sei. Isso, porém, seria de uma presunção desmedida. Não por me equiparar ao velho Sócrates, o marido de Xantipa, o mestre de Platão, mas porque a frase é absolutamente presumida e se Sócrates realmente a pronunciou, então ela era o maior dos presunçosos. Pior do que presumir que se sabe tudo é presumir que não se sabe nada. O que me preocupa, todavia, é o que se passa no friso das orquídeas. Só cinco estão floridas. Já foram seis, mas uma deve ter tido uma moléstia qualquer que as flores, belíssimas, mirraram rapidamente e caíram. Flores mortas. Chego sempre às sextas-feiras com défice de assunto, pareço-me, nesses dias, com um orçamento do Estado, sempre deficitário. Se por acaso orçamento do Estado for assunto político, então retiro a analogia. Acho que vou dormir um pouco para compensar as noites mal dormidas. Aliás, são todas mal dormidas. Recebo uma mensagem no telemóvel para aderir a um certo Challenge. O prémio, um telemóvel. A vida tornou-se uma viagem dentro do telemóvel. Não estou para desafios.
quinta-feira, 28 de abril de 2022
Traduções do diabo
Um dia votado a tentar resolver coisas quase irresolúveis. Como se costuma dizer, o que não tem solução solucionado está. A verdade, porém, é que quase irresolúvel não é a mesma coisa do que sem solução. O quase irresolúvel pede tempo para se tornar solúvel e ser dissolvido. Num livro que tenho entre mãos descubro uma palavra extraordinária: inegalidade. O termo, claro, não existe no nosso léxico, mas no do tradutor de uma obra escrita em francês. O autor escreveu inegalité, o que se traduz por desigualdade. Com boa vontade poder-se-ia verter por inigualdade, o que seria uma negação de igualdade. Seria vocábulo possível dentro das regras de formação de neologismos, penso. Espantado com a tradução, procurei pelo nome do tradutor. Novo espanto. Não tinha. A tradução era atribuída de forma genérica à editora nacional. Que eu saiba nenhuma sociedade comercial, industrial ou de serviços, mesmo que seja uma editora de livros, consegue fazer traduções. Estas são feitas por seres humanos ou, hoje em dia, pelos tradutores automáticos baseados na Inteligência Artificial, que depois é corrigida pelos seres humanos. Perante isto, a minha vontade é deitar o livro fora e comprar a edição original. Ainda por cima, para poupar no papel, a nossa editora encolheu o tamanho das letras a níveis impensáveis. Devo estar com mau feitio. Deve ser fruto das coisas quase irresolúveis que tenho pela frente. E essas nada têm a ver com traduções assombrosas e a invenção lexical como solução da ignorância. Quanto ao tamanho das letras, talvez tenha de mudar de lentes.
terça-feira, 26 de abril de 2022
Sarabanda
Um concerto de moto-serras e corta-relvas. Os transeuntes passam indiferentes ao agrupamento musical que opera com zelo na praceta aqui em baixo. Também é verdade que eles não puseram um boné no chão ou estenderam um lenço para recolha de moedas. Estes concertos têm lugar, muitas vezes, ao sábado de manhã. Por volta das oito horas lá começa a sarabanda, não sem antes haver afinação de instrumentos. Uma forma de terrorismo psicológico. Já era tempo dos inventores dados à criatividade conceberem instrumentos destes que não fizessem ruído. Eu sei que os admiradores de música poderiam acusá-los de destruir sonoridades tão peculiares. Contudo, posso argumentar, também o silêncio faz parte da música. Se o ciclo sonoro fosse mais curto diria que estávamos perante um concerto de música minimal repetitiva. Contudo, o fraseado é sempre o mesmo, mas não tem efeito hipnótico. Agora, tenho de sair. Esperam-me e não devo chegar tarde. Esse é o meu hábito, mesmo que a minha vontade seja de chegar muito tarde ou, mesmo, de não aparecer. Mas lá estarei à hora. Nisto não há qualquer grandeza moral. Haveria, se isso se devesse ao meu livre-arbítrio, mas deve-se apenas a um hábito, e os hábitos, como se sabe desde Aristóteles, são uma segunda natureza. Logo, regidos pela estrita necessidade.
segunda-feira, 25 de abril de 2022
Mudança de paradigma
O feriado desliza lentamente para o seu fim. A ordem do mundo seria menos cruel se todos os dias fossem feriados. As pessoas não precisariam de trabalhar, nem de fazer guerra, apenas colher aquilo que a natureza enviasse como dádiva. Contudo, um problema intrometeu-se nesse estado paradisíaco. O problema não é muito claro. Não se consegue perceber se a natureza não é assim tão dadivosa ou se os homens querem muito mais do que lhes seria permitido. Nos dois casos temos um problema de egoísmo. Ou a natureza é egoísta ou são os homens. Independente da resolução deste quebra-cabeças, o facto é que os dias feriados são excepções e não a regra. A regra é fazer alguma coisa pela vida. Para além destes lugares comuns não me ocorre mais nada para escrever. Poderia falar sobre a natureza do feriado, mas como ele é de índole política, estou proibido de falar desse assunto. Poderia falar do estado do tempo, mas isso começa a ser uma trivialidade excessiva. Não posso escrever todos os dias sobre se há ou não nuvens no horizonte, embora todos saibamos que existem sempre nuvens no horizonte, mesmo que não as vejamos, pois, o horizonte é uma metáfora de largo espectro. Tão largo que sempre se hão-de encontrar nuvens em algum sítio. Esse será o horizonte ou a linha do horizonte. Podia também falar sobre paradigmas, pois é coisa de que toda a gente fala. Não há cão nem gato que não esteja disposto a mudar de paradigma. Também a mim me faria muito bem mudar de paradigma, mesmo quando falo de feriados e da ordem do mundo. Falece-me, porém, o instinto revolucionário para provocar uma mudança paradigmática. Neste momento do feriado só conheço dois paradigmas. O estar a dormir e o de estar com sono. Uma revolução sempre me haveria de conduzir da sonolência ao sono profundo. Seria a minha mudança de paradigma. Quanto à mudança de paradigma ocorrida há 48 anos, não posso falar sobre ela, proibido que estou pelo autor, mas confesso que me soube muito bem e essa não foi a transição entre a sonolência e o sono, mas o fim de um estado de sonambulismo atávico. Quero que o autor se…
domingo, 24 de abril de 2022
Desavença consigo
Tem estado um Abril frio, oiço dizer, mas como continuei a andar não sei a sequência da conversa. Talvez a frase escutada fizesse parte de uma belíssima narrativa que perdi devido à minha pressa de chegar a algum lugar. É assim que se esbanjam as oportunidades da vida. Passamos por elas, mas como estamos apressados não damos por aquilo que dissipamos. Isso também acontecerá para as más, digo-me, mas estou longe de concordar comigo. É uma coisa que sucede a muito boa gente, o estar desavinda consigo. Isto recordou-me um belíssimo poema de Sá de Miranda. Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. Existem pessoas que ostentam como um grande troféu a coerência. Tiro-lhes o chapéu, mas desconfio que a sua coerência nasce de uma amputação. Foi-lhes retirada uma parte e assim não apresentam desavença consigo, o que lhes permite apresentarem-se no teatro do mundo como sendo fiéis a si mesmas, de dizerem hoje o que disseram ontem. Os não amputados, porém, têm de viver constantemente em perigo, pois habita-os uma discórdia que traz para dentro de si uma guerra civil. Assim, como estratégia de sobrevivência, dizem hoje uma coisa e amanhã, uma outra. Se o início do poema de Sá de Miranda é magnífico, não o é menos o fim de um soneto do mesmo autor: Então não tem lugar certo onde aguarde / Amor; trata de traições, que não confia / nem nos seus. Que farei quando tudo arde? Este soneto que acaba com uma das mais belas frases interrogativas da língua portuguesa tem também por motivo a dissensão dentro de si, a luta entre o amor e a razão. Em resumo, há boas razões para qualquer um estar desavindo consigo, um mal que vem por bem, pois as pessoas que, movidas por um inultrapassável acordo consigo, são aquelas que não hesitam em incendiar o mundo, aquelas que nos fazem perguntar: Que farei quando tudo arde? Hoje é domingo de Pascoela e já me imaginei a caminhar pelas ruas, onde estão pessoas que contam história interessantes, das quais capto pequenos excertos para vir aqui narrar.