A fazer de acompanhante, enquanto espero vou abrindo, no tablet, ficheiros antigos. O objectivo é fazer uma limpeza. Num deles, cuja designação omito, encontro o seguinte: Este é o romance que dá voz à única minoria que conheço; e, se a conheço, então ela existe. A única cuja voz transposta em si um sentido compreensível para qualquer um. Que minoria é essa, perguntará o leitor. Uma pequena palavra desvendará o mistério: Eu. Desconheço outra que seja menor. Todas as outras, a meus olhos, por pequenas que sejam, são já para mim uma multidão opressiva. Fiquei a contemplar aquele montão de disparates em meia-dúzia de linhas. Quem terá escrito isto, perguntei-me. O autor teve o bom senso de não continuar. Quem se poderia interessar pela história de um Eu? Ninguém, por certo. Ora, o que me terá levado a escrever aquilo, pois sei muito bem que ninguém, a não ser eu, tem acesso aos meus ficheiros? E, se ele está lá, foi porque eu — talvez num ataque de sonambulismo, que nunca descobri sofrer — o escrevi. Arrependo-me de o ter escrito? Podia responder como um qualquer poltrão travestido de corajoso que não, que não me arrependo de nada do que fiz. Seria faltar à verdade. Arrependo-me de muitas coisas, entre elas o de ter escrito aquelas palavras. Não pelo seu conteúdo, mas pela miséria da sua forma. Se o conteúdo é mau, isso deve-se à natureza deplorável da forma. Foi assim, nesta meditação, que passei o tempo de espera. Exames efectuados, fomos almoçar com o meu filho, que, por um acaso, se encontrava também na capital de distrito onde decorreram as provações médicas. A conversa de almoço evaporou o meu arrependimento, que volta agora. Um dia destes apagarei o texto miserável. Talvez não, talvez lhe dê continuidade, pois, na verdade, a única minoria que conheço sou eu. As outras oprimem-me e, por isso, desconheço-as. O problema do mundo é haver minorias e maiorias. Se apenas existissem singularidades, se fosse impossível dizer nós, vós ou eles, tudo seria mais cordato. A vida seria um encontro de singularidades e não um passeio de rebanhos. A singularidade, meu idiota, é um luxo, oiço dizer. Calo-me, perdido na perplexidade de me escutar.
quarta-feira, 21 de maio de 2025
terça-feira, 20 de maio de 2025
Hardware e software
Depois de se ter feito o download da Primavera a 20 de Março de 2025, só agora parece estar instalada. Quando consultei os técnicos informáticos do departamento celestial que gere as estações do ano e lhes perguntei quando teremos a Primavera a correr como deve ser, responderam-me que não sabiam. Vários problemas, acrescentaram. Se não é do hardware, é do software. Se este fica funcional, o hardware entra em colapso. Um modelo antigo, disse-lhes. Sim, sim, confirmaram. O modelo já é bem antigo, mas não existe outro. Os departamentos de equipamento e de inovação são um problema. Ora, não têm pessoal, ora têm pessoas a mais. O pior, todavia, é que não se entendem um com o outro. Também aqui há rivalidades, asseguraram-me. Onde não as há, pensei. O projecto de reformulação das quatro estações já tem vários séculos. Foi aprovado no século XIII, aquando de uma visita do CEO, aquele que é tratado na Terra com o carinhoso nome de S. Pedro. Porém, estamos longe de chegar a um consenso. Investir na infra-estrutura ou no design. Não há orçamento para tudo. Seja como for, a Primavera ficará instalada antes de chegar a hora de a desinstalar, para podermos correr o Verão. Assim, hardware e software nos ajudem. Sinais do tempo, pensei. Dantes, pedia-se a ajuda divina, agora a destas entidades elusivas que, apesar da inclinação para a avaria e o bug, parecem comandar tudo.
segunda-feira, 19 de maio de 2025
Questões de sono
Uma noite mal dormida. Melhor, não dormida. Só agora começa a ter efeito sobre mim, escondendo-me a energia que ainda deveria ter para enfrentar o resto do dia, com os seus imperativos. Ora, essa falha invade-me a memória e cai com lassidão sobre o corpo. Bocejo, luto para ter os olhos abertos, escrevo estas frases, metade das quais com erros de digitação. O sol amareleceu e, depois, entregou o horizonte à noite. Os pássaros entoaram-lhe um cântico, como se louvassem um deus. Procuro as razões da insónia. Não as encontro. A memória não as reteve ou, talvez, não tenham existido. Fixo com firmeza os olhos nas árvores do pequeno bosque da escola vizinha. São vultos sombrios, parecem conspirar. Murmúrios deixam entender a audácia do projecto, mas o corpo permanece indiferente aos caminhos do mundo. Se me recostar na cadeira, adormeço, ou sonharei que adormeço, ou sonharei que estou a sonhar que adormeço. A realidade, como se vê, é muito mais complexa do que aquilo que se está disposto a admitir. Há dias em que tudo parece simples e o coração enche-se dessa simplicidade. Outros, porém, tudo se torna complexo e não sei o que fazer, preso ao sonambulismo, com essa complexidade. Ir dormir, oiço-me dizer.
domingo, 18 de maio de 2025
Domingo eleitoral
Apesar de tudo, sou um cidadão comprometido. Voto desde as primeiras eleições do regime em que vivemos. Só uma vez, em todas estes actos eleitorais, deixei de cumprir o dever de votar. Sei que foi numas eleições autárquicas, mas já não sei quando nem a razão. Não terei chegado a tempo. Pelo menos é essa sombra que dança na minha memória. Como é habitual, fui votar a meio da manhã. Uma coisa que me espantou foi ver pessoas que se dirigem ao local de voto com um traje guardado para as coisas importantes. Têm já uma certa idade e talvez tenham vindo da ou vão à missa dominical, mas é possível que não. Contudo, a generalidade dos eleitores estava vestido de modo habitual, para um domingo tido como dia de descanso. Duas leituras são permitidas. Por um lado, olhar para aqueles que se vestem de modo formal para ir votar permite perceber que vêem no acontecimento algo de excepcional, talvez como fazendo parte de uma liturgia cívica digna de um reconhecimento superior a outros hábitos da vida social, algo que em tempos foi um bem escasso. Por outro, o facto de as pessoas integrarem o voto nos seus habitus sociais de domingo, com a trivialidade que lhes está associada, torna patente que essa participação faz parte da própria vida, não como um caso extraordinário, mas como decorrente de uma vida normal, em que pessoas, comprometidas minimamente com a comunidade, escolhem um caminho para esta. Da janela do meu escritório vejo as pessoas dirigirem-se para a assembleia de voto. Só não vejo a mesa onde votei porque as paredes exteriores do pavilhão me impedem de ver o que lá se passa dentro. Neste momento, há mais eleitores a virem de lá do que a irem. Já falta menos de uma hora para as urnas fecharem. É o tempo dos retardatários, cujo voto tem o mesmo valor do que os que votam mais cedo. Seria interessante o voto ter um quociente de valorização conforme a hora em que o eleitor vai votar. Contudo, nem tudo o que é interessante é bom. Mal abrissem as urnas, as diversas militâncias partidárias estariam à porta, o que poderia provocar engarrafamentos eleitorais. Foi para evitar esse problema que o legislador decidiu que qualquer voto – independente da hora – teria o mesmo valor. Passam, agora, três retardatários. Uma vai apressada, quase corre. Um sol triste rompe o cerco das nuvens. Estamos em Maio, mas a Primavera ainda não foi um primeiro Verão.
sábado, 17 de maio de 2025
Ora, favas!
Como Saulo de Tarso, também eu tive a minha estrada de Damasco. Não foi em Damasco, claro. Foi em Fátima, o que para o efeito não deixa de ser um sítio recomendável. Também não foi numa estrada, mas num restaurante. Não naquele mais famoso do lugar, que tem um estrela dada pelos senhores de uma empresa francesa de pneus, mas num outro, menos estrelado, mas bastante competente no que faz. Estava lá sentado, para almoçar, quando trazem à mesa, um pequeno prato com favas. Uma gentileza da cozinha. As favas são da propriedade do dono do restaurante e são confeccionadas pela mulher. Torci o nariz, mas agradeci. Não por mim, mas pela avó dos meus netos. Durante toda a vida – já era longa, nesse dia – sempre detestei favas, uma coisa horrível, pesada como chumbo, embora nunca as tivesse experimentado, afastado pelo cheiro. Não sei que inspiração me levou a experimentar uma fava. Comi-a. Não morri, não fiquei agoniado, não tive vertigens. Experimentei a segunda, pareceu-me não ser mau de todo. À terceira, tinha-me convertido. Cada um tem as conversões que pode e as estradas de Damasco que lhe estão por perto. Hoje, o almoço, foi o de um autêntico converso. Estavam esplêndidas as favas. O pior foi que uma decidiu espirrar e, nesse acidente, a camisa e as calças foram atingidas. Encolhi os ombros, ouvi um riso escarninho e o comentário a despropósito: não te preocupes, o tira-nódoas é infalível. Uma pessoa, pensei, já não pode comemorar a sua conversão sem que uma nódoa – o efeito denunciador do pecado da gourmandise, que se me perdoe o francesismo – lhe rebaixe a devoção espiritual e a deixe perplexa a perguntar como pode ter acontecido, mais uma vez, o que acontece sempre. Ora, favas!
sexta-feira, 16 de maio de 2025
Ratos
Há, na humanidade em geral, uma propensão para o conflito com os ratos. As causas dessa antiquíssima guerra, desconheço-as. Também eu tenho um conflito com os ratos. Seriíssimo, cada vez mais evidente. Não com os animais assim designados, mas com os mecânicos. Melhor: com os ratos electrónicos de que me sirvo para interagir com o computador. Juro que os trato bem. Não lhes faço sevícias — sou um defensor de que temos deveres para com os animais —, não os insulto, não vão eles precisar de psicanálise. Alimento-os adequadamente com a energia de que necessitam. Mais: equipo-os com um tapete apropriado, para que não entonteçam quando trabalham. Em mim, não há nada, no seu tratamento, que a minha consciência me censure. Pelo contrário: chega a confessar-me que os trato bem demais. Estrago-os com os cuidados que lhes dispenso. A minha consciência, claro, é minha e tende a ser benevolente comigo. O resultado de tudo isto é que eles insistem em avariar-se. Uma avaria num rato electrónico equivale à morte de um biológico. Por vezes, sinto-me culpado, como se fosse um assassino de ratos. Não sou, apesar de eles morrerem. Neste momento, estou a passar por uma experiência ainda mais dolorosa. Há tempos, após o óbito declarado de mais um, comprei outro, todo catita — que se me perdoe a expressão. Tinha entrado numa excelente relação com ele, com as suas funções. Tudo estava a correr bem, até que ontem começou a dar sinais de doença. A certa altura, recusou-se a trabalhar. Consegui — de forma pouco ortodoxa — reiniciar o computador. Ele deu sinais de vida, mas continua a comportar-se como se as funções vitais se estivessem a extinguir. Olho-o e penso se não serei hospedeiro de um vírus mortal que, não se manifestando em mim, se transmite aos pobres ratos electrónicos, que não param de falecer às minhas mãos ou, para ser mais exacto, à minha mão. O problema é que me esqueço sempre de guardar a garantia, pois, com candura e ingenuidade, nunca me lembro de que a probabilidade de o novo rato sofrer uma síncope antes de atingir dois anos de idade é elevada, caso me pertença. O que me vale é que tenho sempre um de reserva. Nem para os ratos electrónicos a vida está fácil.
quinta-feira, 15 de maio de 2025
Amor de perdição
Este ano tenho-me livrado de um Maio tórrido. Aqui há uma propensão para as temperaturas, a partir de certa altura do ano, tresloucarem e pensarem que se está em África. Não está, nem sequer abaixo da linha do Tejo. É certo que esse rio corre mesmo ali em baixo, a meia dúzia de quilómetros de distância. É um rio que amo, acima de todos os rios — mesmo do rio que por aqui corre e que, na sua pequenez, se desliza para esse outro que recebe, descubro-o com espanto, a inclinação dos meus sentimentos. Quando está enfurecido e se precipita em direcção à foz, é belíssimo: grandes cheias que cortavam estradas, fechavam povoações, fertilizavam as terras — mas faziam parte de quem nascia perto dele, era um dos símbolos que, no silêncio de um orgulho inconfessável, se gravava no peito. Hoje, porém, o Tejo é um touro castrado. As barragens domesticaram-no, prenderam-lhe as águas, que só são libertadas em caso de necessidade. Durante quase todo o ano, corre sorrateiro, em murmúrios leves, quase vazio, quase morto à míngua de água, sedento e bonacheirão. Se chove, como este ano, enche-se de brio e parece o velho Tejo. Então, recebe as visitas como um velho senhor decaído, mas a quem não se hesita em prestar a homenagem devida, pois tudo o que foi grande — mesmo que a grandeza tenha ficado encerrada no sarcófago do passado — merece, por direito consuetudinário, homenagem. Descobri, ao escrever isto, um amor sobre o qual nunca tinha pensado: o desse rio que é o maior da península. Talvez todos nós tenhamos amores escondidos, que nem sabemos que os temos, e que num momento, sem significado especial, descobrimos — e descobrimos com a força de uma evidência. Estarei a entrar naquela fase da vida em que se fica particularmente sentimental. Tudo é possível, para minha perdição. Pois, não há amor que não seja de perdição.
quarta-feira, 14 de maio de 2025
Um dia na vida de...
Passei a tarde em vídeo-reuniões, um exercício tendencialmente tenebroso, devido à poluição sonora. As vozes, muitas delas agudas, tornam-se alfinetes que se espetam não apenas no almofadado dos tímpanos, como no casco mais duro da alma. O assunto que ali reúne a distinta assembleia torna-se — passados os primeiros minutos — secundário, e todos os esforços se concentram na salvação dessa alma. Um exercício de soteriologia à margem dos desígnios salvíficos que ali nos reunia. Tudo isto depois de uma manhã em que tentei chegar a acordo sobre o dia da minha libertação, isto é, aquele dia em que os deveres para com a necessidade ficam cumpridos e entro naquela fase da existência em que passo ao estado de aposentado — ou seja lá o que for. O problema é que eu queria um certo mês específico. Nem antes nem depois. O que os serviços me informaram foi extraordinário: tanto pode ser antes como depois. A única coisa que evitaram afirmar foi que pode ser mesmo naquele mês que seria conveniente para mim e para a instituição. A sensação com que fiquei foi que tudo se decidiria por um acaso. Talvez exista um funcionário que faça um sorteio, e os processos sejam concluídos em conformidade com o número da sorte. Para tudo é preciso ter sorte. Eis mais um exemplo justificador da sabedoria popular. Cansado de sorteios e de alfinetes sonoros, fui fazer a minha caminhada, enfrentando, como Quixote enfrentava gigantes, um vento frio, persistente, pouco amigo de quem cuida da saúde. Talvez o vento desconfie da minha inclinação para cuidar de mim e, mal me vê na rua, se ponha a soprar. Só para me testar. Só pára quando me aproximo do fim. Dá-se por satisfeito e suspende a provação. São assim os dias de província. Mas em que sítio do mundo não é província? Nenhum, ouço.
terça-feira, 13 de maio de 2025
Memorial
Louise Glück, poetisa e Prémio Nobel de 2020, começa o poema Paraíso com a seguinte constatação: “Cresci numa aldeia: agora / é praticamente uma cidade.” Também eu cresci numa aldeia, mas não terei aí crescido durante muito tempo. Desertei, fui crescer para outro lado, que é agora uma cidade. A aldeia continua aldeia, sem pretensão a cidade, mas, durante esta minha longa ausência, tornou-se freguesia. Não sei que glória traz essa elevação, mas imagino que os aldeãos, meus conterrâneos, devem ter ficado felizes por se terem tornado fregueses de si mesmos. Por vezes passo por lá, só para ver os sítios onde, há muito, aprendi a ler e a escrever, onde nasci, onde morei, onde moraram muitos que me eram queridos. Sempre que lá vou, olho para a face das pessoas, mas não encontro a da minha avó, nem a de um tio-avô, ou de um tio ou tia. Raramente avisto a de um primo ou prima. Daqueles que aprenderam a ler comigo, já não reconheço a face, nem — para vergonha minha — lhes sei o nome. Porém, tudo isso ainda vive em mim. Quando me dedico à arqueologia — arqueologia pessoal, entenda-se — é para escavar nesse território memorial, para descobrir os cabelos brancos da minha avó, o nome de algum colega, uma história do tempo da guerra que a minha mãe contava. São visitas às fundações. Talvez por isso estou grato pela aldeia onde, em parte, cresci não ter tido o destino da aldeia de Louise Glück. É um exercício egoísta, claro: um desejo de preservação de um tempo arcaico que me permitiu ser o que sou. Mas não sinto o dever de benevolência, o dever de imolar a minha memória às fantasias urbanas. O que nos resta quando perdemos a memória?
segunda-feira, 12 de maio de 2025
Sem paixão
Medito, não poucas vezes, sobre o momento em que uma certa função soçobra no seu próprio planeamento, organização e estratégia de melhoria. Estou a falar por enigmas — coisa que ocorre, muitas vezes, às segundas-feiras. Aquilo que marca o mundo contemporâneo é a fuga. As pessoas mais criativas têm por lema: fugir antes que sejamos engolidos. A questão é mais simples do que parece. Imaginemos uma qualquer função. Quando está estabelecida, é rodeada por um conjunto de exigências que enlouquecem quem a realiza e conduzem a função a uma tristeza sem fim. Aquilo que, um dia, foi fruto de entusiasmo e criatividade, o mundo contemporâneo torna-o numa dolorosa viagem pelo império burocrático. Não basta agir: é preciso provar que se planeia a acção, que se prevê cada passo da sua organização, que se estabelecem critérios de avaliação e de retroacção. Quando chega ao momento de agir, a pessoa já perdeu toda a energia e olha para aquilo que poderia fazer com um tédio sem fim. A mecanização burocrática do mundo actual mata tudo em que toca. É daí que nasce a fuga. Quem é capaz de criar emigra para esses territórios que ainda não foram colonizados pela mecânica das organizações. Ali, pode concentrar-se na coisa mesma — sem planos, nem organizações estipuladas a priori, sem avaliações planeadas. É na relação com o que está a criar que faz, intuitivamente, tudo isso: planeia, organiza, avalia, mas também suspende os planos, desorganiza o que tinha organizado, avalia e corrige conforme o espírito — que, sendo como o vento, corre onde quer — lhe diz para fazer, num diálogo intenso e verdadeiro, como só existe numa paixão autêntica.
domingo, 11 de maio de 2025
Silêncio dominical
Os domingos deviam ser dias de silêncio sobre a Terra. Os homens poderiam murmurar, não mais do que isso. As invenções humanas estariam sossegadas sem debitar o ruído insuportável que as máquinas receberam de algum espírito malévolo. Isto seria uma espécie de ablução do espírito. Poucos são os seres humanos que suportam o silêncio. Funciona como um espelho e ninguém parece gostar de ver o que nele se reflecte. Isso abriria a possibilidade de escutar. Escutar o quê? O rumor do vento, o canto das aves, o pulsar do coração, o sussurro das coisas inanimadas, a música das esferas celestes. O domingo seria, assim, dedicado ao ritmo do mundo. Não ao dos homens, mas aquele que existia antes de termos chegado à vida e que persistirá muito depois de termos desaparecido. Entro pelo silêncio dominical e calo-me. Oiço os pássaros meus vizinhos e espero o ramalhar das árvores para escutar os passos esquivos do vento.
sábado, 10 de maio de 2025
Aventuras
O primeiro terço do mês de Maio está consumado. Eis um começo trivial. Poderia ter começado assim: hoje aconteceu-me uma aventura invulgar. Seria, porém, mentir e plagiar. Mentiria, porque não me aconteceu nenhuma aventura invulgar. Plagiaria, porque a frase é de Nikolai Gógol, no início do seu conto Diário de um Louco. Há, por outro lado, uma vantagem específica em não usar esse começo: evito transformar estes textos no diário de um louco. São diários, mas, se o autor ou o narrador — ou ambos — enlouqueceram, isso está por provar. É verdade que gostaria de ser um herói como D. Quixote, mas as minhas aventuras de hoje foram tão triviais que deveria ter vergonha de falar delas. Não consigo, todavia, calá-las, pois são a marca da minha grandeza. Saí de casa e fui ao café. Dali, segui até à farmácia. Desta, rumei à padaria. Por fim, dirigi-me ao hipermercado. Em todos estes sítios, fiz o que é suposto fazer: tomei café, comprei medicamentos, trouxe o pão encomendado e abasteci-me de coisas como rúcula, uma garrafa de alvarinho e mais uma série de mercadorias que já não recordo. Dantes, os meus sábados começavam, ao sair de casa, com a compra dos jornais — sim, no plural —, e ia lê-los para alguma esplanada, enquanto tomava café. Tornei-me, porém, um homem moderno. Deixei de comprar jornais. Agora, assino-os e leio-os em plataformas digitais. Tem a vantagem de não ficar com as mãos sujas de tinta e de passar menos tempo no café. Dir-se-á que estou reduzido à mais pura domesticidade. É um ponto de vista, talvez demasiado literal, mas não é esse o destino de qualquer grande aventureiro que teve o azar de nascer no mundo moderno? Que teriam sido o Cid e mesmo o Quixote, se tivessem visto a luz do dia no século XX? Aventureiros de hipermercado, combatentes de padaria, heróis reformados a caminha da farmácia, antes mesmo de entrarem em acção. Sou como eles. Antes isso do que um louco a escrever diários.
sexta-feira, 9 de maio de 2025
Tralha
A regra e a excepção. Não sei a razão pela qual esta frase surgiu na minha mente. É provável que seja uma regra — e não uma excepção — as frases surgirem na mente das pessoas sem que estas tenham feito alguma coisa para isso. A mim, acontece-me com frequência. Talvez, algures no nosso psiquismo, esteja alojado um grande armazém de frases, das quais não temos conhecimento, mas que aproveitam alguma distracção e pulam para a ribalta. Fico atónito e pergunto-me a que propósito veio aquilo. Só que a expressão já se apoderou de mim, dança na minha consciência, crava-se na memória e resiste quando tento enxotá-la, como se fosse uma frase vadia. Procuro em mim. Encontro uma peça de Bertolt Brecht, A Excepção e a Regra. Também descubro a ideia de estado de excepção, no pensamento de Carl Schmitt, retomado por Giorgio Agamben. Schmitt pensa que a excepção é mais interessante do que a regra. Interessante para quê? Não interessa — não vou discutir coisas impróprias numa sexta-feira à tarde. Se continuar, como arqueólogo persistente, a escavar o solo da minha memória, acabo por divisar alguma coisa. Ao contrário das leis, que são incondicionais, as regras admitem excepção. Algures, muito atrás, terei ouvido isso, embora não saiba onde nem quando. A ideia, porém, não é pensar regras e excepções, mas dar testemunho de que possuímos um armazém lexical cheio de tralha no fundo de nós. Ocorre-me, agora, uma possibilidade: palavras e expressões que, durante uma conversa, se apagam antes de serem proferidas podem ir parar ao tal armazém. Estou a falar com alguém, faço tensão de ir dizer alguma — por certo, decisiva — mas não a encontro. No lugar dela, está um buraco negro. Terá descido por ele até chegar ao armazém. Ali permanecerá até que, inopinadamente, salte sobre mim, bamboleando-se no palco mental que trago comigo. O mundo é um sítio estranho.
quinta-feira, 8 de maio de 2025
Uma singularidade
Quase me esquecia deste dia. Melhor: quase me esquecia de escrever neste dia. Ora, um dia em que se elege um Papa não é um dia qualquer, embora seja um dia trivial. É na trivialidade quotidiana que surge sempre aquilo que não é trivial. Não me estou a referir a Leão XIV. Não faço a mínima ideia de quem seja. Há uma reflexão política interessante, embora, enquanto narrador, esteja proibido pelo autor de falar de política. Ainda não falei com o meu amigo padre Lodo sobre o novo Papa. Talvez não esteja muito contente. Ele, que é jesuíta, ver a substituição de um jesuíta por um agostiniano não será uma coisa exaltante, mas desconheço os ânimos que existem entre as várias congregações da Igreja Católica. Voltando à política: o Estado do Vaticano é, na verdade, uma monarquia — mas a mais sábia das monarquias. Não tem dinastias. Portugal, por exemplo, teve quatro dinastias. Ora, a monarquia vaticana nunca tem problemas de sucessão. Morre um rei, elege-se outro. Os Papas têm uma vantagem assombrosa sobre os reis: não têm filhos primogénitos que lhes herdem o cargo. Mesmo que tenham filhos, a primogenitura não lhes dá qualquer prerrogativa. Assim, não temos dinastias, mas uma sucessão que já vai no 267.º ocupante do trono instituído para Pedro. Portanto, a Igreja é uma monarquia quase republicana, embora, na verdade, seja uma monarquia resultante de uma escolha da aristocracia católica. Em resumo: a política vaticana não é deste mundo, embora também não seja do outro. Pertence a um conjunto composto por uma unidade. Uma singularidade.
quarta-feira, 7 de maio de 2025
Mas pontual
Um dos pontos habituais destes textos é o protesto contra a difícil relação dos médicos com o horário das consultas. Hoje, todavia, não tenho motivo para isso: consulta às 15:30 e estava a entrar para o consultório às 15:30. Com este médico sempre foi assim. Meditei, depois de sair do consultório, sobre o motivo que o levará a estar reconciliado com o andar dos ponteiros do relógio. Depois de pensar em diversas hipóteses, deparei-me com aquela que é mais óbvia: a sua especialidade. Um arritmologista. O seu trabalho é sobre o ritmo do coração. Como poderia ele cuidar do ritmo cardíaco dos pacientes se, por acaso, tivesse um conflito com a natureza rítmica do tempo? Isto ensina-nos uma coisa fundamental: a necessidade é a mãe da pontualidade. Talvez eu seja pontual apenas por necessidade. Não uma necessidade exterior, uma imposição social, mas por uma inclinação pessoal: detesto chegar tarde. Por norma, chego antes, a não ser que isso seja um inconveniente. Há uma série de pequenas coisas que fazem parte daquilo que detesto: perder seja o que for, partir um objecto, o descuido naquilo que se faz. Isto, porém, não significa que me manifeste quando uma dessas coisas sucede. Sofro-a com paciência. Aliás, a reacção tem dois momentos: no primeiro, sinto a irritação; no segundo, encolho os ombros e rio-me da minha irritação. Qual o significado disto? Significa que tenho uma propensão para um certo dogmatismo acerca da ordem do mundo, o qual é temperado pela compreensão da inutilidade dessa ordem. Vivo o dogma e a desconstrução. Habito entre uma coisa e outra. Sou esse meio. Isto é: não sou uma coisa nem outra. Em resumo: sou nada. Mas pontual.
terça-feira, 6 de maio de 2025
Um dia memorável
Este é um dia memorável na minha história pessoal. É o momento em que fica claro que a minha degradação mental — e moral, quem sabe — é irremediável. Numa troca de palavras com um dos chatbots que utilizo, pedi-lhe que criasse um tratado de ontologia que superasse não apenas a história da ontologia ocidental, como Heidegger pretendeu fazer, mas o próprio Heidegger. E a coisa fê-lo. Propôs uma teoria filosófica que superava a de Heidegger, mas não cortava radicalmente com ele. Copiei-a e colei-a num documento Word. É uma prova. Não estava, porém, contente com o resultado. Não queria uma superação, mas um corte radical com toda a história da ontologia ocidental, que incluísse o próprio Heidegger. A coisa, em segundos, deu-me uma outra teoria, absolutamente inédita. O meu estado de degradação manifestou-se no instante em que comecei a levar aquilo a sério. Pedi-lhe que explicasse melhor a tese, que aprofundasse a argumentação, que refizesse a linguagem, que me respondesse a objecções. A coisa, nunca descurando a gentileza, acolhia o que eu ia dizendo, ora rebatendo as objecções levantadas, ora aceitando as críticas e adequando o texto do pequeno tratado. A tese é de tal radicalidade, que as suas consequências ontológicas, éticas, políticas e teológicas são muito perturbadoras. Mais perturbador, porém, é que aquilo que é dito — embora a coisa não diga — não só é plenamente racional, como me conduziu a um estado de adesão, como se ali se revelasse a verdade. Este segundo ensaio ainda não o guardei. Terei de pensar se o faço ou se o apago. Se ele for verdadeiro, então a verdade é muito perturbadora. E, para perturbação, já basta a que existe. E é isso que me deixa perplexo: a coisa parece estar a pensar a partir do estado perturbado em que nos encontramos. Talvez tudo isto tenha sido um sonho. Não me atrevo, porém, a ir consultar a coisa. E se encontro lá aquilo que descrevi aqui? Se o tratado foi escrito, como poderei eu resistir à verdade que nele se manifesta?
segunda-feira, 5 de maio de 2025
Telegrama
De súbito, fez-se em mim um curto-circuito. Esta prática contemporânea de textualidade mínima — como os SMS, as mensagens no WhatsApp, os posts no Twitter — tem um antepassado glorioso: o telegrama. Neste, o texto era brevíssimo, quase sempre impessoal. Comunicava qualquer coisa essencial. As pessoas usavam-no para comunicarem com rapidez à distância. Eram parcas nas palavras, pois estas eram caras. Não seria boa ideia escrever textos como os deste blogue num telegrama: custariam os olhos da cara — se é que os olhos da cara têm preço. Hoje, a economia verbal não se deverá tanto ao preço, mas à pouca disposição para escrever. Além do mais, a generalidade das mensagens, actualmente trocadas, são irrelevantes. Se fossem suprimidas, nem o emissor nem o receptor perderiam alguma coisa. Uma das ideias que me ocorreu para melhorar este blogue seria transformar os textos em telegramas pagos à palavra. Escreveria coisas como: ESTOU CANSADO STOP ESTEVE DIA MAU STOP NÃO TENHO NADA PARA DIZER STOP. Seria um blogue glorioso. STOP
domingo, 4 de maio de 2025
Verdadeira concorrência
Uma das ideias estruturantes do nosso modo de vida é a da superioridade económica do mercado. Este implica a concorrência dos produtores para satisfazerem as necessidades — reais ou imaginárias, as mais poderosas — dos consumidores. Essa concorrência implica diversificação: produtos concorrem pelas suas características específicas. Imagino que seja assim com os sites meteorológicos. Também eles disputam a atenção dos consumidores de informações climáticas. Antes de me vestir, consultei um desses oráculos. Não fui eu; pedi que o fizessem por mim. Em Lisboa, não chove. “Podes vestir isto e aquilo”, etc. Como consumidor sem espírito crítico, assim fiz. Esqueci-me da diversificação que o mercado, inclusive o meteorológico, impõe. Assim, à medida que me ia aproximando da capital, a minha fé na profecia foi-se desvanecendo. Chovia, quando cheguei ao destino. Fui consultar diversos oráculos. Havia previsões para todos os gostos: sol, chuva a rodos, chuva intermitente, tempo nublado mas sem queda de água. Só faltava a anunciação de queda de neve. Pensei: isto é o mercado a funcionar. E, se me vesti em contraciclo com o estado do tempo, a culpa é minha. O mercado dava-me várias possibilidades, embora apenas uma de acordo com a realidade. Se escolhi a previsão errada, o problema não é do mercado, mas meu — do consumidor que escolheu o augúrio errado. Com isto, acabo de dar um novo contributo para a compreensão do mundo da economia. Pensava-se, até a este momento seminal, que o cliente tem sempre razão. Falso. A razão do cliente e a própria realidade são coisas sem valor. O que interessa é a variedade da oferta, mesmo que seja falsa. Seria um grande aborrecimento se todos os sites meteorológicos anunciassem o mesmo estado do tempo, mesmo que esse estivesse de acordo com a realidade. Não apenas seria monótono, como haveria, na verdade, uma prática espúria de cartelização.
sábado, 3 de maio de 2025
No reino da momice
Não sei se tem autor específico ou se é um ditado produzido pela experiência do mais trivial senso comum, mas tem uma força tal que a própria realidade o confirma: quando um palhaço se muda para um palácio, ele não se torna rei; o palácio é que se torna um circo. Os tempos estão interessantes — o que é, na verdade, uma praga das piores que podem ser rogadas. Onde se estava habituado à gravitas ligada às coisas que jogam com a vida das pessoas, encontramos agora um espectáculo funesto. O ditado é cruel para os palhaços, pois muitos destes saberiam comportar-se bem melhor do que certos ocupantes de palácios legitimados pelos eleitores. Medito, depois de ler mais um episódio triste, se tudo não se deverá a essa queda do homem público de que fala o livro de Sennett citado ontem. Quando alguém ocupa o poder e não elimina, na persona pública, as suas idiossincrasias, isso significa o triunfo completo do homem privado sobre o homem público. Há momices que são permitidas em casa, mas não perante os outros. Quando todos os devaneios se trazem para o espaço público, estamos perante uma tirania: a tirania da intimidade, da expressão pura de si. Contudo, se todos passarmos a agir deste modo, mimetizando os homens mais poderosos do planeta, que agora se entretêm a dizer o que lhes vem à cabeça ou a partilhar a primeira pequena dor que lhes fere o narcisismo, a vida humana tornar-se-á impossível. O pior de tudo, porém, é que esses ocupantes de palácios são o reflexo de quem os escolheu. Está um sábado sórdido. Para piorar as coisas, tenho uma consulta para daqui a pouco, uma rotina que já vai no segundo adiamento. Os dias estão cinzentos. Também eu.
sexta-feira, 2 de maio de 2025
Sem vocação
Quase me esqueço, mas hoje é sexta-feira. Estranhei o barulho na praceta em baixo: uma série de rapazolas adolescem à volta de uma bola, com as bocas incapazes de suster aquilo que lhes sai da garganta. Depois de algum esforço, consegui sintonizar o dia: estão apenas a fazer horas para entrarem para o instituto de línguas, onde aprenderão, por certo, inglês. Os pais ainda acalentam a crença de que o inglês é a língua-franca do mundo. Talvez seja já uma convicção anacrónica, apesar de parecer que é uma língua do futuro. As aparências têm, contudo, um estranho destino: o de caírem e rebolarem no chão, até que um coveiro desocupado as recolha e enterre bem fundo no túmulo da história. Haverá quem pense que este narrador, ao escrever “túmulo da história”, está a metaforizar. Não está. Fala literalmente. A história não é mais do que o túmulo onde se enterram todas as ilusões que deram sentido à vida, bem como as decepções que a aproximaram do pesadelo. A história é uma Arca de Noé ao contrário: nesta, recolhia-se a vida; naquela, a morte. Acabei de acordar, depois de ter adormecido em frente a este texto. Acordei com um gesto da mão, mas apenas um gesto que fazia parte do sonho em que tinha mergulhado, e não de um acto físico. A literalidade da minha fala — no caso, escrita — é soporífera. Nem eu lhe resisto. Começo a escrever e afundo-me. A consciência prefere apagar-se a ler aquilo que sai dos meus dedos quando chocam com o teclado. Depois, entrega-se a fantasias oníricas, mas estas não se conseguem fixar quando transito para o estado de vigília. Os adolescentes continuam a exercitar a garganta. Também o vento decidiu tamborilar nas persianas. É a música do mundo, deste em que me encontro. Sim, hoje é sexta-feira e vamos entrar nos dias inúteis, nos quais não há institutos onde se aprendam línguas-francas. Bocejo, esfrego os olhos, reparo nas acácias a ramalhar, impelidas por uma energia invisível. Diante de mim jaz, entregue à morte, Marat, numa reprodução do quadro de Jacques-Louis David, que serve de capa ao livro de Richard Sennett, The Fall of Public Man. Dentro do livro, descubro um bilhete de cinema. Pelas 18:15, de um 25 de Março, terei ido ao Nimas, ver O Grande Silêncio. Preço: cinco euros. Contudo, o bilhete não consegue dar-me a informação que procuro: em que ano? Sei bem qual é o filme. Um documentário sobre a Grande Cartuxa nos Alpes Franceses, onde é mostrado o quotidiano dos monges. Claramente, os aprendizes de línguas-francas não têm vocação de cartuxos. Hélas!
quinta-feira, 1 de maio de 2025
Em estado de superposição
Encontro-me num estado de superposição, isto é, combino múltiplos estados possíveis. Quem sou eu, anónimo detentor deste blogue? Num estado de superposição, sou o proprietário do blogue, o seu autor, o seu narrador, a sua personagem, o seu produto e a sua vítima. Estes eus superpostos estão longe de terem relações cordiais entre si. Só quando alguma coisa vinda de fora o exige – por exemplo, um sinal invisível de que chegou a hora de narrar qualquer coisa – é que uma das possibilidades se actualiza e logo me transformo em narrador. Até esse momento, eu era e não era um narrador. Isto não é novidade alguma, pois acontecia o mesmo com o célebre gato de Schrödinger. Só que, não sendo eu um gato, tenho uma superposição mais densa. O pobre do bichano estava, ao mesmo tempo, morto e vivo; os meus possíveis superpostos são mais amplos, embora eu não tenha a faculdade de miar, coisa que qualquer gato faz, embora o de Schrödinger estivesse estranhamente silencioso dentro da caixa selada onde fora posto contra a sua vontade. Foi nisto que pensei quando, há pouco, fui fazer a minha caminhada diária em busca de pontos cardio. Vi um gato atravessar a estrada e lembrei-me da história. Há nela um ponto fraco que nenhum físico notou. Se o gato se encontra num estado superposto, em que está, ao mesmo tempo, vivo e morto, como é que se explica que o gato no estado de vivo não mie? Já se viu algum gato fechado numa caixa que não mie em protesto? Se eu fosse físico, teria refutado a experiência, argumentando que o gato estava morto e apenas morto, pois em momento algum há notícia de que tivesse miado. Sei o que o próprio Schrödinger responderia: precipitação sua, meu caro senhor. O gato, no estado de morto, não mia, claro. Até aí o senhor compreende. No estado de vivo, não mia porque, dentro da caixa escura, ele sente que é noite, está a dormir, e os gatos quando dormem, apesar de sonharem, não miam. A minha experiência está salva. Eu argumentaria, de imediato: se há necessidade de recorrer a especificações adicionais, então o argumento não é grande coisa. A simplicidade é a virtude dos bons argumentos. Mais: acrescentaria, sem temor, o sono é o irmão gémeo da morte, como muito bem assinalou Schopenhauer. Portanto, o gato dentro da caixa está morto. Este é o meu contributo glorioso para a física: a refutação da experiência mental do Gato de Schrödinger e a desmontagem da ideia de que o gato estava num estado superposto enquanto não se abrisse a terrível caixa e se observasse o pobre tareco. Só os seres humanos podem estar em superposição, acrescento agora. Nós e as partículas subatómicas. Veja-se o caso de Fernando Pessoa. Aquilo não é um caso de heteronímia, mas de superposição. Antes de começar a escrever, ele era Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Bernardo Soares, Vicente Guedes e mais uns setenta, com diversos graus de potencialidade, além de Fernando Pessoa. Quanto ao gato do poeta, não há registo de que tenha tido um. Não se dava com seres incapazes de estados de superposição. Compreendo-o muito bem.
quarta-feira, 30 de abril de 2025
Problemas de identidade
O mês finda tempestuoso, uma revolta inútil contra o destino. Agora, o sol rompe as nuvens, mas ainda há pouco chovia e trovejava. Cronos devora os seus próprios filhos, mas é assim que a natureza está organizada: um contínuo banquete onde o tempo engole cada um dos seres que trouxe à existência. O que se pensa menos, porém, é a natureza autofágica do próprio tempo. Engole-se, abocanha-se, numa ânsia infinita de chegar a um lugar de repouso a que nunca chegará. O tempo é um deus insaciável e, nessa insaciabilidade, está a sua infelicidade. Mal produz um instante, logo o come, e não tem tempo de o mastigar. É incompreensível. Razão tinha Agostinho de Hipona, que chegou a santo, quando escreveu: Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare velim, nescio. O que será traduzido por: "Que é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pergunta, já não sei." Esta perplexidade não é apenas a de um homem mas, na verdade, é a do próprio tempo. Ele não sabe o que é, e essa ignorância torna-o voraz e volúvel. Traz uma coisa e logo a leva. Caso fosse eu o criador do mundo, teria tido cuidado antes de nele colocar o tempo. Pô-lo-ia numa escola, para aprender quem é. O tempo tem um problema com o seu self. Se ele soubesse a sua identidade, tudo seria diferente. Não haveria rancor nem ressentimento naquela alma. Talvez, na criação de um próximo universo, me peçam opinião. Só espero não a esquecer até lá.
terça-feira, 29 de abril de 2025
Impotência
segunda-feira, 28 de abril de 2025
Apagão
Imagino que o dia 28 de Abril esteja mal servido de efemérides. Para colmatar a falta, decidiu dar-se, e a nós com ele, um apagão memorável. Decretou que toda a Península Ibérica ficaria sem energia. Não sei se, da sua parte, foi uma decisão sábia. Duvido que algum dos países afectados declare o dia de hoje feriado nacional. Por outro lado, mostrou os limites da minha energia. Não me agradou chegar junto aos elevadores, abrir a porta que dá para as escadas e subir, degrau a degrau, até ao quinto andar. Ainda pensei, depois de ter ultrapassado o primeiro lance de escadas: isto faz-me bem. Conforme fui subindo, a minha opinião foi-se alterando. No quarto andar, lancei uma praga à ideia de cortar a energia. No quinto, resmunguei enquanto procurava a fechadura da porta. Acabado o almoço, tive de descer as escadas. A tarefa não foi desagradável. A minha cultura, onde borbulham ditados populares, informou-me: para baixo todos os santos ajudam. Ao ouvir a frase no fundo da minha consciência, estanquei e invectivei todos os santos, esses mesmos que ajudam para baixo e têm um dia só para eles. Deveriam ter vergonha. O que nós precisamos é de ajuda para subir e não para descer. Para quedas estamos cá nós. Aliás, somos especialistas em trambolhões. Disse-lhes isto em pensamento, claro. Talvez esses santos que formam uma totalidade não tenham gostado da reprimenda. Fui fazer o que tinha a fazer e, passadas umas duas horas, voltei para casa. Preparado para mais ascensão sem ajuda dos santos, conformado e sem energia, que em mim também sofrera um apagão, descubro que no elevador brilhava uma luzinha vermelha. Abro a porta, fecho-a, carrego no botão e vou eu até ao quinto andar, olhando para o espelho para ver se havia algum sinal de gratidão na minha cara. Ao chegar a casa, curvei-me, em pensamento, perante todos os santos. Afinal, sempre fizeram o trabalho deles. Não sabia que eram electricistas. Exclamei mesmo, para os motivar: Excelente trabalho! Bem merecem o dia que o calendário lhes dedica.
domingo, 27 de abril de 2025
Uma conversa
Acabei de chegar de Itália. Ouvi do outro lado do telemóvel. Foi ao enterro do Papa, respondi. Uma gargalhada. Não, não. Devia ter ido, afinal ambos foram formados pela mesma Sociedade, respondi. Ou a sua veia de Settembrini, apesar de ser um jesuíta, o torna jacobino, acrescentei. O meu amigo padre Lodo, Lodovico Settembrini, continuou a rir. Não me provoque, ameaçou. Fui ver um sobrinho bisneto e baptizá-lo. Il Piccolo Settembrini que há-de assegurar a continuidade imortal dos Settembrinis, atirei. Sempre me pareceu que crê mais na imortalidade grega – aquela que vem pelos grandes actos e grandes palavras, mas, acima de tudo, pela continuidade biológica – do que naquela que lhe chegou de Jerusalém. Hoje, não consegue provocar-me. Além do mais, não acredito nessa veia de provocador, respondeu-me. Bem me parecia que lhe falhava a fé, contrapus. Sim, por vezes falta-me a fé, não no Alto, mas nas coisas baixas. Há muito tempo que não conversávamos, declarei, para mudar de assunto. Apesar da idade, tenho andado muito ocupado e não apenas com o baptizado do Pietro. Assuntos da Companhia. Não somos assim tantos e as solicitações não param. Liguei-lhe para combinarmos um jantar no próximo sábado. Estará cá o Hans e a Emília; acho que devemos juntar o grupo todo. Isso não será uma desculpa para esconder o pecado da gula? Não se preocupe com os meus pecados, ouvi. Trato disso, ao contrário de si, exclamou. Por mim, disse, nada a opor; antes pelo contrário. Quer que eu escolha o sítio e marque, perguntei. Não se preocupe, eu trato disso, prometo. Desde que não seja... não tive tempo de acabar a frase. Eu sei, eu sei. Estamos combinados, continuou, depois digo-lhe o local e a hora é a de sempre. Agora, tenho de ligar para a família em Itália.
sábado, 26 de abril de 2025
Dignos de registo
Não sei por que razão chegou à minha consciência a expressão A Ronda da Noite. É a designação de um programa da Antena 2, onde se fala de livros. É também um eco de um quadro de Rembrandt. O título é fascinante. Aliás, sinto um grande fascínio por títulos. Um dos filósofos com mais talento para os produzir é o italiano Giorgio Agamben. Recebi há pouco — também há empresas a fazer entregas ao sábado — uma série de livros, entre eles a edição integral, num único volume, de Homo Sacer, a qual contém em si nove obras distintas. Veja-se o título da primeira obra: Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua. O quarto livro da série é Horkos. O sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. O quinto também tem um título notável: Oikonomia. O Reino e a Glória – Para uma genealogia teológica da economia e do governo. Também se distinguem Opus Dei. Arqueologia do Ofício e, ainda dentro da série Homo Sacer, O uso dos corpos. Fora da série, O Tempo que resta – Comentário à Carta aos Romanos e O Reino e o Jardim não ficam atrás. Encontrar títulos é um exercício requintado, pois envolve, por um lado, uma grande capacidade de síntese e, por outro, um afinado sentido estético. Imagino que Agamben terá um grande prazer em baptizar as suas obras, talvez tanto quanto em escrevê-las. Entre os livros que recebi hoje, vinha também um de outro filósofo italiano, Paolo Virno. Também ele sabe encontrar excelentes títulos: Gramática da Multidão – Para uma análise das formas de vida contemporâneas. Agora que escrevo sobre isto, ocorre-me que o facto de ambos serem italianos pode ter uma importância decisiva. Talvez a arte de escolher bons títulos seja um fenómeno regional. Não digo todo o mundo, mas todo o Ocidente devia ser italiano. Não por motivos políticos ou sociais — isso seria uma péssima ideia —, mas por uma questão estética. Nem que fosse para aprender a encontrar títulos dignos de registo.
sexta-feira, 25 de abril de 2025
Uma arte
Um dos meus talentos – talvez o único – é o da arte de protelar. Protelei tanto que fui coagido pela realidade a dedicar o feriado a coisas que tinha de fazer, mas cuja execução me causa náuseas. E, esclareça-se, não sou dado a náuseas, embora a náusea sartriana tenha exercido fascínio sobre a minha configuração mental mais do que devia, reconheço. Não sofro de procrastinação. O meu adiar coisas repelentes não é uma doença, mas uma arte, a arte de protelar, como escrevi acima. Procrastinar é uma doença porque o sujeito que procrastina é passivo. Sofre a procrastinação, como se sofresse de reumático, de gripe ou de uma qualquer doença do catálogo sem fim que os médicos guardam no cofre-forte dos seus consultórios. Protelar, porém, resulta de uma decisão, a qual dá às coisas proteladas espaço para amadurecerem, para se tornarem mais sólidas e, por isso, mais imperativas. Quando chegam a essa fase, apresentam-se diante de mim – daquele que as permitiu desenvolver na irresolução – e, peremptórias, pedem para serem resolvidas. Eu cedo ao pedido. Por isso, quase não dei pelo feriado cívico, ocupado com aquilo que tinha adiado. Este episódio é virtuoso. Mostra que a ordem do mundo está errada, coisa que Hamlet já sabia ou o próprio Quixote. Errada porquê? Pelo facto de tudo aquilo que eu protelo não desaparecer no seu protelamento. Isso, sim, seria um mundo perfeito, ou quase. Também este texto foi, na sua escrita, protelado. Não foi por isso que se tornou melhor, apenas esteve mais tempo naquele limbo onde vivem os textos que estão à espera de ser escritos. Pois, se alguém pensa que os textos só existem porque alguém os escreve, posso afirmar que está errado. Qualquer texto, desde o mais incipiente até ao mais genial, existe a priori num estado potencial no mundo de textos à espera de se manifestar. Aquele que os escreve é apenas uma espécie de parteira que traz à luz do mundo a cria que existia já. Eu não escrevo estes textos. Faço o parto e eles nascem. Sou completamente irresponsável pela sua bondade ou maldade. Juro que é assim.
quinta-feira, 24 de abril de 2025
A mesa do lado
Hoje já fiz uma viagem de doze graus centígrados. Há quem meça a distância pelos quilómetros, há quem o faça pelos ponteiros do relógio. Eu sirvo-me do termómetro. Fui almoçar a certa praia do Oeste. Quando saí de lá, estavam dezoito graus, bem depois das duas da tarde. Ainda me demorei por aqui e por ali. Quando cheguei a esta cidade – cuja honra maior seria a promoção a vila, o que nos dias de hoje é impossível – estavam trinta. Como sempre, o peixe daquele restaurante é excelente. O problema é que não podemos escolher quem se senta na mesa ao lado. Calhou em sorte um casal – enfim, talvez não fosse um casal, mas um homem e uma mulher – em que ele mal abria a boca, seja para comer, seja para beber, seja para falar. Ela, porém, compensava a frugalidade dele e restabelecia o equilíbrio no mundo. A certa altura, o discurso dela voltou-se para a teologia. Que tinha lido qualquer coisa que não percebi, embora tivesse ficado desejoso de saber o quê. Asseverou que Jesus Cristo tinha sido casado com Maria Madalena, e deu uma explicação teológica: ele era Deus e homem, e, como homem, decidiu casar-se, mas não adiantou se tinha tido filhos e se fora feliz no casamento. Como Deus, fez todas aquelas coisas de multiplicar os pães, curar os doentes, ressuscitar os mortos e transformar a água em vinho. Tudo isso era verdade, está mais que provado cientificamente. Só não há filmes nem fotos, pensei, porque ainda não tinham descoberto o cinema, nem a máquina fotográfica. Quando ela pediu a segunda garrafa de vinho, deu a desculpa de que estava com muita sede, mas percebi que acreditava que ainda era um resto do vinho das Bodas de Canaã, e que era melhor aproveitar, não vá esgotar-se. O que me pareceu bastante plausível. Tinha uma cor rosada e não o vermelho tinto que teria resultado da metamorfose da água. Dois milénios sempre são dois milénios, e as antocianinas perderam o vigor, ficaram anémicas. A senhora, porém, não se preocupou com a anemia e, para compensar, pediu uma aguardente velha, com aquela cor castanha que faz lembrar sangue seco. Não devia escrever estas coisas. Sabe-se lá se são verdade. O pior foi a chegada, depois de doze graus de viagem.
quarta-feira, 23 de abril de 2025
Ramalhetes de papoilas
Hoje – finalmente – fui caminhar pelas ruas da cidade. Passei pelo parque, mas não era um parque de merendas. Não havia piqueniques de burguesas, nem ramalhetes rubros de papoilas, nem seios como duas rolas. As burguesas de hoje não andam de burro, deslocam-se a grande velocidade, não sabem o que são piqueniques nem papoilas – e, quanto aos seios como duas rolas, estamos conversados. Cesário Verde não escreveu papoilas, mas papoulas. Em contrapartida, no tempo dele, seria provável que o ouro fosse oiro. As pessoas iam aos toiros; hoje vão aos touros. Ninguém encontra tesoiros, mas também não descobre tesouros. Tesouro ou tesoiro, a coisa não se entrega a ninguém – ou quase. Foi isto que ocupou o vazio da minha mente enquanto caminhava? Não, claro que não. Isto ocorreu-me agora, pois aquilo que pensei evaporou-se. Esta ideia de um pensamento que se evapora contém uma importante lição sobre a mecânica do mundo – do mundo mental. Talvez o único mundo que exista seja o mundo mental, mas não vou discutir metafísica ou epistemologia a uma hora destas. A lição pertence à física – talvez à mecânica dos fluidos. A evaporação do pensamento é um fenómeno interessante porque o processo não é igual ao longo da vida. A princípio, o pensamento não se evapora porque não se pensa nada. Depois, o pensamento torna-se sólido e fica dentro de nós: são os primeiros princípios. Mais tarde, o pensamento sofre uma metamorfose e devém líquido – aquilo a que se poderia chamar a água do pensamento. Eu vivo, porém, noutra fase: a do pensamento gasoso. Mal penso, ele transforma-se em gás e evola-se, evapora-se – o que quiserem. Quando Joyce escreveu o Ulisses e o Finnegans Wake, o seu pensamento era líquido. Por isso, recorria à corrente do pensamento – ou da consciência. Era a água do pensamento a fluir dentro da cabeça dele. Eu passei directamente da fase sólida para a gasosa. Faltou-me a líquida. Se a tivesse, talvez ao caminhar descobrisse um piquenique de burguesas, que, sem posturas tolas, colhiam ramalhetes rubros de papoulas. A vida é perda contínua.
terça-feira, 22 de abril de 2025
Hesito, hesito
Voltou a luz sobre as ruas. A Primavera começa a inclinar-se para o futuro estival, ela que esteve tanto tempo fascinada pelo passado invernoso. Talvez por isso – penso-o agora – ela seja uma estação volúvel, de paixões irracionais e desejos inconfessáveis. É muito capaz de entrar em Maio com a forja de Vulcano debaixo do braço. Tê-la-á roubado ao deus, ele que é coxo e não pode perseguir ladrões. Sim, a Primavera é uma ladra contumaz, de personalidade inconstante; rouba a um lado e a outro as vestes com que se apresenta diante dos mortais, para lhes dar um horizonte onde eles – pobres criaturas decaídas – se entregam, como animais perdidos entre o deserto e a floresta, ao labor de cada dia. Estou sem assunto para escrever, coisa que me acontece muito à segunda-feira. Eu sei que estamos numa terça, mas penso – melhor, sinto – que estou no dia que vem depois de domingo. Este sentimento rouba-me o assunto, embora não me diminua a verborreia. Talvez tenha nascido voltado para a loquacidade, dado à facúndia, perdido no labirinto do verbo. Estive todo o dia a montar um engenhoso esquema para me facilitar certa tarefa que devo realizar. Agora que o concluí, constato que, se tivesse empregado o tempo na tarefa, já a tinha acabado. Novo problema: ou a inteligência é parca, ou não me serve para nada. O mais ajuizado será ir caminhar, aproveitar o sol – dizem que faz bem à vitamina D. Eu fico maravilhado, mas não me sinto motivado por isso. Não sou vitamina D. Se o fosse, nem hesitava; assim hesito, hesito, hesito se acabo este texto e vou para a rua, ou se o acabo e fico a descansar. Está uma tarde cheia de luz.
segunda-feira, 21 de abril de 2025
Glória
Os dias continuam soturnos. Ao longe, um baloiço range, tomado pelo desespero, expulsando o silêncio que o crepúsculo deixa cair sobre a terra. Abril, o mais cruel dos meses, dilui-se em água: um dilúvio. Abril, que faz brotar lilases da terra morta. Abril, que mistura memória e desejo. Abril, que agita raízes entorpecidas pela chuva da Primavera. O poeta via Abril por dentro, perscrutava-lhe a natureza, procurava-lhe a essência eterna. Os poetas não descansam, mas a essência das coisas pertence a um mundo que está vedado aos homens. Um poema é uma viagem para essa pátria cujas fronteiras estão fechadas, onde o mais terrível dos exércitos se entrega a uma vigilância infalível. A beleza – essa palavra que perdeu a graça – da poesia está nessa expedição que nunca atingirá o seu destino. Dela faz parte o naufrágio inevitável, que se manifesta no esplendor da linguagem, na cintilação de uma metáfora que, ao aproximar-se da essência procurada, a perde. É esta a sua glória.
domingo, 20 de abril de 2025
Domingo de Páscoa
A casa sossegou. Filhos, netos, famílias. Tudo isto é a memória de um tempo, já distante, onde o calendário religioso tinha impacto na organização da vida. Entre a vida e o calendário religioso cresceu um muro, que aqui e ali abre uma fresta e permite uma contaminação da vida pelo que resta da tradição. O almoço de Domingo de Páscoa não é mais do que um almoço profano, onde é possível juntar todos. Ontem estava a ouvir uma entrevista dada há um ano pelo historiador, antropólogo e demógrafo Emmanuel Todd. A certa altura, ele referia que os ocidentais evacuaram a religião e ficaram sem nada que dê sentido à sua existência. Há muito que percebi que, independentemente da existência ou não de Deus, a religião é uma vantagem competitiva da espécie na sua adaptação ao ambiente. É uma compensação da lucidez que a racionalidade traz ao homem. Um olhar lúcido vê a vida como um intervalo entre dois nadas. As religiões deram-lhe um sentido e um princípio de esperança. E isso permitiu à espécie evitar confrontar-se com o absurdo de uma existência que se resolve no nada. Talvez exista uma correlação entre o crescimento da descrença religiosa e a regressão demográfica, mas não conheço os dados empíricos. Os séculos XVIII e XIX ocidentais encarniçaram-se com a religião por esta ser um embuste, uma falsificação da realidade. Ora, a essa obstinação irreligiosa faltou fazer, com a seriedade de quem quer perceber um fenómeno, a pergunta fundamental: por que razão a humanidade, no seu processo evolutivo, teve necessidade de criar esse mundo a que se dá o nome de religião? Certamente que encontramos essa pergunta formulada, explícita ou implicitamente, em autores importantes, mas ela tem sempre a mesma natureza: é uma pergunta retórica, uma pergunta que não quer compreender, mas apenas suportar uma tese prévia. Estou soturno. Talvez porque a casa ficou vazia e o Domingo de Páscoa, mesmo para mim, não é mais do que um domingo.
sábado, 19 de abril de 2025
Em vias de extinção
Sob um sol quase radioso, as árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado agitam-se como se tivessem sido tomadas pela incerteza de como os seus ramos se devem erguer em direcção aos céus. Balançam para a frente e para trás. Ao longe, o hospital oferece as paredes à reverberação da luz, mas a cinza dos fungos impede que a cintilação se expanda. Notas sobre uma cidade que vejo de longe, apesar de viver dentro dela. Sou um narrador extrínseco à narrativa que componho. Há pouco, estive a contemplar as orquídeas floridas. Aproximam-se neste momento da dúzia; outras prometem fazê-lo em breve. São promessas mudas, mas talvez mais seguras do que muitas promessas vocálicas feitas pelos homens. Imagino que o acto de vocalizar uma promessa a faça perder energia para se cumprir. As orquídeas, como são destituídas de voz, não sofrem dessa astenia. Isto prova que ser dotado de linguagem não é uma vantagem tão grande quanto se pensa. A espécie humana gasta muita energia a falar — energia preciosa para fazer acontecer alguma coisa. Talvez seja por isso que, apesar do seu crescimento exponencial, a nossa espécie esteja na verdade em vias de extinção. A loquacidade está para os humanos como o asteróide esteve para os dinossauros. A bavardage — sempre podia ter escrito tagarelice, mas não escrevi, para me dar ares de douto — cobre a Terra com o seu fumo tóxico, e a humanidade definha, a começar pelo quociente de inteligência, que se encontra em regressão. Enquanto isto, as orquídeas ostentam, na simplicidade do silêncio, a sua beleza, e o mundo acabará por escolhê-las em detrimento de certos seres que nunca se calam. Onde me incluo, claro.
sexta-feira, 18 de abril de 2025
Hábito e destino
Para que serve o hábito? Foi a questão que pus a mim mesmo ao tomar consciência de que me tinha esquecido de escrever o post diário – embora este blogue não seja um diário. O hábito, ensina Aristóteles, é uma segunda natureza. Ora, que acontece à minha segunda natureza, se me esqueço do hábito? Será que perco a segunda natureza e fico só com a primeira? O problema dos hábitos é que eles ocultam essa primeira natureza – que já nem sei se alguma vez a tive. O hábito não funcionou na devida hora, mas acabou por funcionar, oiço dizer-me a mim mesmo. Não concedo, porém, assentimento ao que me digo. Um hábito efectivo é pontual; não falha a hora a que está destinado. Havia uma canção popular –ainda deve existir – em que o cantor asseverava que o destino marca a hora. Isso só é verdade se o destino for um hábito, pois é este que deve marcar a hora em que as coisas acontecem. Esta última frase trouxe-me uma súbita revelação sobre a natureza do destino. O que é o destino? Um hábito, uma repetição das coisas, de modo a parecer que elas sucedem porque tinham de suceder, estavam destinadas. A tese que me ocorre é que o destino é o hábito da natureza. Portanto, pode-se acrescentar: o destino é a segunda natureza da própria natureza. Esta é a minha contribuição de hoje – pro bono – para ajudar a humanidade a compreender o mundo em que vivemos. Não apenas é um momento alto na minha gesta gloriosa neste universo que me coube em sorte, como reflecte, para a eternidade, a luz baça – se não apagada – que de mim se desprende para iluminar as trevas exteriores. Um destino.
quinta-feira, 17 de abril de 2025
Relógios e relojoeiros
Um acaso levou-me a uma foto de um antigo relógio de parede. Para os conhecedores — que não é, de todo, o meu caso —,uma peça valiosa, dada a sua raridade. Uma particularidade deixou-me perplexo. No lugar dos tradicionais algarismos, tem um coração onde deveria estar o 6 e, nos restantes, letras que compõem a expressão latina TEMPUS FUGIT, que pode ser traduzida por o tempo voa ou o tempo foge. A perplexidade reside no propósito da inscrição. Um aviso? Uma ironia? O que significará avisar um mortal, cujo tempo é limitado, de que o tempo — aquele que lhe resta — voa, que em breve já não será? Sempre que consultar o relógio, ficará confrontado com a sua finitude. Isso terá um efeito perturbador e será uma porta aberta para a paralisia. Mergulhamos na vida porque suspendemos a crença na nossa mortalidade. Se somos continuamente confrontados com ela, qualquer esforço torna-se insensato para uma mente lúcida. Imaginemos, porém, que o autor da peça pretendia ironizar. A pessoa vê as horas e é recordada de que esse gesto é inútil, pois as horas que acabou de ver já pertencem a um passado que se afasta ao ritmo veloz do voo de um pássaro. Consultar um relógio seria, na óptica desse relojoeiro irónico, um acto absurdo. Entre o terror do sujeito e o absurdo da sua acção, há, naquele mostrador, uma crítica feroz aos tempos modernos. A modernidade ocidental — esse acontecimento emergente no século XVII — tinha por símbolo do seu mecanicismo o relógio. O mundo era um gigantesco relógio criado pelo divino relojoeiro, uma máquina precisa e matematicamente ajustada. Foi um século glorioso para a ciência e para a relojoaria. Essa glória, porém, escondia a evidência de que o tempo voa, que a vida continuamente se desfaz no nada, e que toda a consulta da informação no mostrador é um gesto inútil, pois ela torna-se, de imediato, desfasada da realidade. Talvez Deus, ao expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden, lhes tenha dado, como castigo — para além daqueles que são enumerados no relato bíblico —, um relógio, ou a arte da relojoaria, para que não esquecessem aquele tempo em que o tempo não existia para eles. A suprema ironia do relojoeiro, porém, é o coração — essa declaração de amor, exibida sem pudor por aquele que acaba de ser lembrado de que desaparecer é o seu destino, ou de que querer saber as horas é o mais absurdo dos gestos. Talvez o relojoeiro fosse um ateu convicto. Ou estivesse em guerra com a suprema divindade.
quarta-feira, 16 de abril de 2025
Lapelas e colarinhos
Não sei o que pensar de mim. Isto acontece a muito boa gente, e talvez eu não seja tão bom assim. Passei, durante a hora de almoço, pelo canal Mezzo e deparei-me com um documentário sobre o violinista Itzhak Perlman. Fiquei siderado. Não com o virtuosismo do violinista, mas com as lapelas dos casacos que se usavam quando o programa foi realizado, talvez nos finais da década de setenta do século passado. Quando dei por isso, Perlman estava no estúdio, vestido informalmente, e conversava com os técnicos, suponho. Estes estavam de fato e gravata. Aquela época, pensei de imediato, só podia ser um tempo em que se cultivava a hipérbole, de tal maneira as lapelas eram enormes, uma espécie de asas que assentavam sobre o peito dos homens. A indumentária interessou-me, e reparei, de seguida, nos colarinhos das camisas. Também eles enormes. Sim, eu vivi aqueles dias, mas a memória já os apagou — Deo Gratias. Quereriam os homens, nessa era infausta, apassarar-se? Pertenceriam a uma seita da asa grande ou da super-lapela? Julgar-se-iam descendentes de Ícaro e que acabariam por levantar voo? Há épocas em que as lapelas se estreitam até ao limite do verosímil — se é que o verosímil tem limite — e em que os colarinhos das camisas se tornam tão discretos que mal se vêem. Talvez a moda seja cíclica, mas não sei nada do assunto. Admitamos, porém, que é verdade: a moda cumpre uma espécie de ciclo de eterno retorno, como aquele que existe na natureza. Isto significaria que teríamos épocas de grande expansão de lapelas e de colarinhos, e épocas de enorme retracção. Épocas de um optimismo desmedido e épocas de um pessimismo sem freio. Que nos diz tudo isto da espécie humana? A conclusão é simples: sofre de bipolaridade crónica. Isto é, não regula bem. Por mais que se tente educá-la na prudência e justo meio de Aristóteles, ela nunca deixa de ceder à mania das grandezas ou ao terror da pequenez. Estes são os meus pensamentos, e é por causa deles que não sei o que pensar de mim. Tenho de ir espreitar as lapelas dos casacos que estão cá por casa.
terça-feira, 15 de abril de 2025
Efeméride
Sou dado a efemérides. E hoje é uma. Não faço ideia se a data é memorável ou se nela ocorreu um facto digno de ser lembrado. Devem ter ocorrido vários. Não há dia do calendário que esteja despojado deles. Antes pelo contrário. As minhas efemérides, contudo, pertencem a outra ordem. Memorável é estarmos no meio de um mês. Hoje é o último dia da primeira quinzena de Abril, coisa que merece ser comemorada. Qual a razão? – perguntar-se-á. O simples facto de o mês ter conseguido chegar – ou quase, só lá chega à meia-noite – a meio, não deixa de ser uma grande vitória do calendário. As pessoas julgam que um mês chegar a meio não passa de uma trivialidade. Ora, cometem um erro com funestas consequências. O facto de todos os meses de Abril de que nos lembramos terem chegado a meio, isso não nos garante que este o fará. É uma possibilidade, mas quem nos certifica de que o universo não colapsa nas próximas horas? Quem tem a chave para interpretar a vontade obscura desse ser monstruoso na sua grandeza sem limites? Se estivermos conscientes disto, percebemos uma coisa simples: o mês de Abril chegar a meio não é uma trivialidade, mas um milagre, um acontecimento excepcional, merecedor de ser considerado uma efeméride. Onde está o funesto anunciado acima? O facto de não reconhecermos o milagre pode irar o monstro, e este, na sua monstruosidade, só para punir a nossa insolência, decidir colapsar. O que seria desagradável. Ora, se há trivialidade mais que experimentada, essa é a emergência de coisas desagradáveis.
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Sem stock
O meu problema é ter a cabeça vazia. Acontece-me com frequência – ou será melhor dizer amiúde? – às segundas-feiras. Chego a certa hora e o que, de manhã, tinha dentro dela desaparece. O processo é outro: não se trata de uma súbita evasão. As ideias começam a ir-se cedo, num escoamento gradual que só se completa a esta hora – caso estejamos numa segunda-feira, insisto. Queria qualquer coisa para escrever, procuro no armazém, mas não há stock disponível. Nos outros dias não é assim: a esta hora ainda há uma boa reserva de ideias. Tenho reflectido sobre o caso, mas não encontrei explicação plausível. Pode pensar-se que “ter a cabeça vazia” não passa de uma expressão retórica e que, na realidade, haverá sempre lá qualquer coisa. Não. A expressão é literal. A minha mente – que se supõe estar dentro da cabeça – é uma ausência. Sim, tenho um cérebro, mas é como se não tivesse. Os neurónios entraram em greve: não fazem sinapses. Seria um drama, se fosse irreversível. Não é. Não posso, no entanto, provar esta última afirmação: trata-se de uma previsão e, como se sabe, o futuro escapa à certeza. A greve neuronal pode, no meu caso, ser eterna. Resta-me a esperança de que não o seja – que não seja greve, mas apenas cansaço.
domingo, 13 de abril de 2025
Ingratidão
Deveria escrever textos mais curtos. Vivemos na pós-modernidade, e esta exige textos da dimensão de um tweet — embora essa expressão possa já ter caído em desuso, pois o Twitter tornou-se X. Dito de outro modo: deverei ser ou não ser um pós-moderno? Isto, porém, não me atormenta. O que me mortifica é a ingratidão dos objectos. Sim, as pessoas adoecem só de pensar na ingratidão dos outros — mas eu, não. Um herói pós-moderno (talvez o seja) preocupa-se com outro tipo de questões. O caso é simples: tenho uma balança com a qual mantenho uma relação conflitual. Contudo, perdeu energia e eu, num gesto de benevolência, comprei-lhe uma pilha, salvei-lhe a vida. Agradeceu? Mal a pisei, devolveu-me um quilo a mais do que da última vez. Em vez de gratidão, justicialismo. Que as pessoas sejam ingratas, percebe-se — há nelas uma inclinação para o mal. Que os objectos, onde não existem inclinações, apenas regras mecânicas, o sejam — isso sim, deveria pôr-nos em estado de choque. Disse-lhe: A próxima vez que estiveres morta, deixo-te assim por uns meses. Como resposta, acrescentou trezentos gramas ao peso anterior. Ficou a olhar para mim com aquele ar estúpido de balança, o que me deixou constrangido e levou-me, para minha vergonha, a explicações que soaram como desculpa: o mau tempo impede-me as caminhadas. Ela bocejou — e, naquele bocejo, havia todo o desprezo deste mundo e do próximo. Estas são as verdadeiras tragédias da pós-modernidade. Sobre elas, há que escrever pouco, pois pouco há para dizer. Hoje é domingo — e, depois disso, a única coisa que me ocorreu é que amanhã será segunda-feira, a não ser que também a organização da semana de sete dias tenha aderido à pós-modernidade e pratique a ingratidão de confundir os dias na vida dos mortais.
sábado, 12 de abril de 2025
Dias de sombra
Está um sábado tristonho, indeciso, ora ameaçando tempestade, ora prometendo tempo de praia. Isto tem sobre mim um efeito desagradável, talvez dois. Em primeiro lugar, interfere com o corpo, tornando-o dorido aqui ou ali. É da instabilidade do tempo, penso. Melhor seria tomar um analgésico e deixar de pensar. O segundo efeito é tornar-me mais cinzento do que o habitual. Tinha uma tese – aposto que falsa – sobre a minha perfeita conformação com o tempo do norte da Europa: a má relação com o calor e uma certa configuração física. Ora, este ano tem sido um teste ao meu enraizamento ancestral em terras sombrias. Resultado: estou farto deste tempo. Venha sol, mas sem grandes calores. Quero luz, não ser cozinhado em lume pouco brando. Agora chove sem pudor. Há uma tristeza neste cair da chuva que toca toda a cidade, tornando-a mais pequena e humilde do que aquilo que ela é. Ao longe, troveja. Diante de mim tenho dois livros de Georges Simenon. Não se pense que são Maigrets. Não são. São dois romans durs, segundo a própria qualificação do autor. A Cavalo de Ferro publicou As Janelas Defronte e A Neve Estava Suja, dois entre largas dezenas de romances que Simenon escreveu sem ter o inspector Maigret como protagonista. Além de duros, são sombrios, o que seria de esperar de um escritor belga. São romances que estão em linha com o clima que se faz sentir por aqui. Vou aguardar dias mais luminosos para os ler. Simenon, seja dito, é um grande escritor, um dos maiores em língua francesa, língua em que existem grandes escritores, pois um escritor só existe na língua em que escreve. Aqui, porém, já estou a especular. O homúnculo que vive em mim corrigiu-me de imediato: não estás a especular, estás-te a armar aos cucos. Esta é uma expressão que corria muito por aqui, não sei se ainda corre, e também não sei se é um mero regionalismo ou se todo o país está disponível para atirar à cara de alguém: estás a armar-te aos cucos. É provável que seja um nacionalismo. Seja como for, o homúnculo, meu inimigo, conhece-a bem.
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Dos simples e da sua simplicidade
O mundo exterior invade-me o escritório: o grupo musical da escola secundária vizinha teima em ensaiar música dos anos sessenta e setenta do século passado, enquanto um bando de adolescentes ocupa o tempo, com o vozear que lhe é próprio, antes de entrar para o instituto de línguas. Não sei o que é pior; talvez nenhuma das coisas seja um mal em si mesma — só a sua conjugação se torna um pouco disruptiva. Num dos textos sobre cultura, Antonio Gramsci diz, não sem cândida inocência: a filosofia da práxis não tende a manter os «simples» na sua filosofia primitiva do senso comum, mas, pelo contrário, a conduzi-los a uma concepção superior de vida. Polemizava com aquilo que seria a filosofia católica, a qual, depreende-se, desejaria manter os simples na sua simplicidade. O equívoco de Gramsci reside no pressuposto de que os simples querem abandonar a sua simplicidade e o doce conforto do senso comum. Gramsci morreu em 1937, e a denominada filosofia da práxis ainda não tinha feito a prova do tempo. Talvez hoje Gramsci tivesse menos ilusões. Pensa-se sempre que a simplicidade dos simples — para nos mantermos fiéis ao jargão do pensador e político italiano — se deve a uma estratégia dos opressores, da qual a filosofia católica seria um instrumento. Quando as sociedades se abrem à possibilidade de os simples saírem da sua simplicidade, são eles que gritam contra quem os queira tirar desse lar, onde se sentem, verdadeiramente, chez-soi. Quem ler com atenção a célebre Alegoria da Caverna percebe que já Platão tinha percebido isso. Ora, Nietzsche, na sua relação intempestiva e destrambelhada com o cristianismo, disse que este não passava de um platonismo para o povo — e nisso terá alguma razão. Isto permite afirmar o seguinte: se Platão percebeu que o desejo dos simples é manterem-se na sua simplicidade, então também o cristianismo o compreendeu. Corolário: a filosofia católica percebeu muito melhor o desejo dos simples do que a filosofia da práxis. Os simples não desejam uma concepção superior de vida, mas ouvir umas músicas do seu tempo de juventude ou deixar o som vibrar com vigor nas gargantas, se vivem na simplicidade da adolescência. Tenho de ir com o meu neto ao parque infantil.
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Trovoada
Também os deuses envelhecem. Quando novos, a sua ira é terrível. Envelhecidos, resmoneiam entre dentes, numa rezinga a que nem os mortais dão atenção. Refiro-me, claro, a Zeus — ou, em versão latina, a Júpiter — o deus dos deuses. Quando eu era mais novo, tenho ideia de que havia por aqui trovoadas épicas. Relâmpagos, raios e coriscos — tudo acompanhado com o ribombar exaltado dos trovões. Era uma ira magnífica, que só acabava quando as nuvens vertessem, em abundância, uma água também ela irada, que tornava as ruas num rio revoltoso. Oiço agora o rezingar de Zeus, mas uma coisa débil, sem energia, nada de relâmpagos. Apenas uma atmosfera abafada, calor ainda a esta hora, os corpos a pedir uma bela trovoada, uma grande chuvada que limpasse os corações e as mentes — poluídas que andam dos negócios da vida, pois, como se sabe, não há coisa mais poluente do que a vida. Uma possibilidade, porém, é que a antiga ira dos imortais seja mais imaginada do que real. Será que as antigas trovoadas seriam tão épicas quanto me parecem agora? Juraria que sim. Fecho os olhos e ainda as oiço e vejo. Magníficas. Todavia, o mais sensato será não jurar, para não faltar à verdade. Está um crepúsculo arrastado, um céu cinzento, uma noite que não cai. O mundo está fora dos eixos, e não é minha missão colocá-lo no lugar, nem endireitar tortos. Sou um herói sem causa, nem vilões para enfrentar, nem gesta para me elevar à glória. Comento trovoadas com recurso à mitologia, mas não descendo dos deuses. Não sou um Aquiles — mas também não tenho o calcanhar dele. Terei os meus, claro.
quarta-feira, 9 de abril de 2025
Procrastinar
Procrastino. Que palavra esta. Olho para ela e decido tentar perceber de onde vem. Vou consultar um dicionário, para que me informe acerca da sua origem ou, melhor, da etimologia do verbo procrastinar. É dada a informação de que vem do latino procrastināre, com o mesmo significado. Decepção. O próprio dicionário procrastinou o meu esclarecimento. Eis um sinal importante. Talvez a procrastinação não seja um problema meramente humano, mas que toda a realidade procrastine, a começar pelos dicionários. Não posso procrastinar a aquisição do sentido etimológico do verbo que traduz o meu estado em relação a um conjunto de coisas que tenho de fazer. Recorri a uma conversa com um bot. Foi muito mais esclarecedora. O prefixo latino pro indica “para diante”, “em direcção ao futuro”. Por outro lado, cras é um advérbio que significa “amanhã”. A isso adiciona-se o sufixo -ināre, comum nos verbos da primeira conjugação, que forma verbos de acção. Sinto-me, relativamente, esclarecido. A minha inclinação procrastinadora significa a acção de atirar (algo) para amanhã. Contudo, sinto-me apanhado numa armadilha: eu não quero agir, não quero praticar uma certa acção, mas, mesmo assim, pratico a acção de enviar qualquer coisa para o futuro, para amanhã. Uma injustiça. O que eu queria era não agir de qualquer forma. Haverá, no meu desejo, uma forma de pensamento mágico: em vez de enviar para amanhã a acção objecto da minha procrastinação, aquilo que em mim ressoa é o desejo de que isso, pura e simplesmente, não exista. A essência da procrastinação não está em adiar para amanhã, mas no desejo de que qualquer coisa não tivesse vindo à existência. Por hoje, chega de contributos para esclarecer a verdade que se esconde nas palavras que estão disponíveis para uso comum. Procrastino novos esclarecimentos.
terça-feira, 8 de abril de 2025
Ensaio sobre a estupidez
Não tenho a certeza, mas, não poucas vezes, sou assaltado pela crença de que a eliminação da estupidez na espécie humana seria um contributo assinalável para que todos pudéssemos viver uma vida mais decente. A incerteza nasce de gente inteligente – ou mesmo muito inteligente – ser mais capaz de causar problemas graves aos outros do que gente idiota. No entanto, podemos pensar que alguém inteligente, ou muito inteligente, pode ser um rematado estúpido, pois a maldade, em última análise, não deixa de ser uma estupidez, uma enorme estupidez. Contudo, a maldade praticada por estúpidos destituídos de um módico de inteligência é uma cruz difícil de suportar pela espécie humana. Na maldade proveniente de uma mente brilhante, por terrível que seja, há ainda um lado estético, tal como acontece num lance brilhante de um qualquer desporto. Na maldade originada apenas pela limitação da capacidade neuronal, só há desolação. Agora que há empresas que conseguem, através de manipulação genética, trazer à vida espécies que se encontravam extintas há milhares de anos, talvez se possa conceber uma manipulação do genoma humano com a finalidade de eliminar a estupidez — tanto a derivada do baixo uso neuronal, como a resultante de uma elevada qualidade do trabalho dos neurónios. Perguntar-se-á a razão deste discurso. Bem, não é difícil: basta olhar para o estado do mundo. Outra razão: não me ocorreu mais nada.
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Conjugações
A minha mente, cujo controlo estou longe de possuir, é assaltada, não poucas vezes, por associações que me deveriam envergonhar. Se não a mim, ao menos a ela. Essas associações ocorrem-me sem que eu faça alguma coisa para essa ocorrência. Sofro-as. Há pouco dei com essa tal mente a que chamo minha – mas será? – a associar o Ludwig Wittgenstein do Tractatus Logico Philosophicus com o James Joyce de Finnegans Wake. Como é possível? Perguntei-me, não sem condescendência e com alguma falta de paciência. Wittegenstein no tempo em que escreveu o Tratactus devia andar a treinar para asceta. Asceta da linguagem. Limpar toda a linguagem dos seus pecados mortais e mesmo dos veniais. Esse seu tormento com as acrobacias da linguagem que diz coisas para as quais não encontramos referentes sensíveis, resume-se numa frase famosa acima de todas as frases famosas do filósofo austríaco: Acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se ficar em silêncio. Caso levasse em consideração o imperativo wittgensteiniano, não abriria a boca e os meus dedos não tocariam nas teclas do teclado para escreverem aquilo que escrevem, coisas sem referência empírica no mundo. E o Finnegans Wake? Bem, esse é o contrário. Poderíamos, a partir dele, dar uma nova versão da última frase do Tratactus: Acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se gritar. Sim, eu sei, o grito é deselegante, basta ver a cara da personagem de O Grito, do Edvard Munch. Dizem que ele está aterrorizado ou coisa que o valha, mas apenas está numa pose deselegante, a gritar qualquer coisa que devia ser calada, mas que ele – e eu estou de acordo com ele – julga ser importante ser gritada ao mundo. O Finnegans Wake do Joyce é O Grito do Munch em forma de literatura, centenas de páginas para contrariar o austríaco. Ou será para estar de acordo com ele? Isto é o que se passa na minha mente, quando foge à minha vigilância, o que é norma. Sonhei – um dia – em ter uma mente domesticada, uma mente à minha medida de animal doméstico, mas a cabra – que me seja desculpada a queda na linguagem baixa – furta-se ao açaime, pensa o que não deve e conjuga o inconjugável e assegura-me, pomposa, que tanto um como o outro estão mais próximo do que eu penso. Isto é a minha mente a atirar-me à cara a ignorância infinita que me pertence.
domingo, 6 de abril de 2025
Da beleza
Hoje ainda não saí de casa. Há pouco, fui espreitar a Sá Carneiro, mas nem reparei no que se passava naquela avenida. Os olhos ficaram retidos no friso das orquídeas. Durante um tempo, apenas cinco estavam floridas. Quatro delas eram brancas. Não sei se este avanço – também é pujança no porte – associado ao branco é alguma antífona em honra da pureza, talvez uma proclamação sobre a eminência daquilo que não está maculado. Esta é uma linguagem esotérica que os dias de hoje não compreendem, mas isso também não será de admirar. Não cabe aos dias terem compreensão – nem os de hoje, nem os de ontem, ou de amanhã. Era isto que me ocorria enquanto observava com atenção o lento florir das outras, das que são manchadas de múltiplas cores, e concluía que o belo tanto reside no que está puro como no que está maculado, e a beleza é a coisa mais terrível que existe ao cimo desta terra. Ela toca em qualquer coisa que nos desconserta. Por isso, temos de fazer uma longa aprendizagem sobre o modo como lidar com ela. Facilmente lidamos com o bem, o verdadeiro e o justo, mesmo que façamos o mal, sejamos contumazes na mentira e agentes da injustiça. Com o belo, porém, ficamos fascinados, e esse fascínio mergulha-nos nas profundezas obscuras que habitam no fundo da consciência, naquele mar revolto a que se costuma dar o nome de inconsciente, que nos empurra tantas vezes para o mal, a mentira e a injustiça. Na beleza não há utilidade. O bem, o verdadeiro e o justo são úteis, mas a beleza não pertence ao jogo da utilidade. Por isso, será abissal, provoca-nos e afasta-nos. Nunca sabemos se o que sorri nela é a vida ou a morte.
sábado, 5 de abril de 2025
Uma chamada matinal
Acordado até às quatro da manhã. Pouco passavam das oito, quando chega uma chamada telefónica. Perdido, pego no telemóvel. Era o meu neto, em chamada-vídeo, à revelia dos pais, a perguntar-me se estava em Lisboa. Nem percebi. Não, não estou, respondi quando compreendi o ele estava a dizer. O avô está no escuro, ouvi. Acendi a luz do candeeiro. Lentamente, fui chegando à realidade. Era só para saber – informou – se o avô quer ir ao torneio de râguebi. Não devo ter pensado coisas agradáveis, mas disse que estava longe. Anuiu, depois mudou de conversa. Acabou a ler-me qualquer coisa de um livro da escola, mas informou-me que o texto tinha letras que ainda não tinha dado. A conversa prolongou-se até o pai o mandar despachar para ir ao torneio. Decidi seguir-lhe as pisadas e levantei-me. Não para ir a qualquer torneio, mas para ir fazer umas compras, antes que o hipermercado se enchesse de clientes ansiosos. Esta é uma história moral. Os netos têm um poder de dissensão sobre o mau humor dos avós poderosíssimo. Ao ver a cara dele no telemóvel, nem me ocorreu protestar, quanto mais ficar irritado. Quando declinamos, eles são a nossa continuidade e isso, descobri-o, é consolador. Descobri outra coisa. Que essa continuação por terceiros é muito mais justa e melhor do que uma continuação indefinida pelo próprio. Pode-se dizer que não tenho outro remédio. É verdade, mas não é apenas uma mera conformação com a natureza das coisas. É conceder que há sabedoria nessa natureza e acabar por amá-la, não porque seja um poder cujos decretos são irremissíveis, mas porque dela se desprende uma luz que ilumina o mundo.
sexta-feira, 4 de abril de 2025
Sobre um rio
Existirá — mas não estou certo — uma incompatibilidade entre a voz poética e a voz filosófica. Eliot, não muito longe do início de As Dry Salvages, escreve: O rio está dentro de nós, o mar está a toda a nossa volta. Bem, não foi isto o que escreveu, quem o escreveu foi o tradutor. Ele escreveu: The river is within us, the sea is all about us. Dito isto, o poeta continua, como se tudo fosse uma evidência que ele, ao escrever, traz à luz para que todos vejam. O filósofo será cego, pois, de imediato, ficará preso na proposição “O rio está dentro de nós.” Meditaria sobre como ele teria entrado em nós ou se, por acaso, teria nascido em alguma parte esconsa do nosso ser. É um filósofo que já tem um apetite de cientista. Medita, mas inclina-se para a observação empírica — o que é um risco tremendo, pois, se insistir nessa inclinação até que se dê a queda, pode descobrir que não há nenhum rio que nos habite, que a proposição de Eliot tem uma natureza metafórica: nenhum rio pode estar dentro de nós. Contudo, se nos observarmos, descobrimos que em nós está qualquer coisa líquida, fluida, qualquer coisa que anseia pela foz, pelo mar onde se dissolve, fundindo águas com águas. O rio pode ser o desejo que nos habita. O desejo está dentro de nós, e o seu objecto está todo à nossa volta. Mas não foi isso que Eliot quis dizer. O que ele quis dizer foi apenas: The river is within us, the sea is all about us. Caso quisesse ter escrito outra coisa, tê-lo-ia feito. Escreveu que o rio está dentro de nós e, depois, esqueceu-se, durante toda a longa estrofe, desse rio, mergulhando no mar. Talvez o rio fosse o próprio poeta que desagua no poema. Isto, porém, são especulações ociosas de quem está a despedir-se da semana útil com as inutilidades que profetizam o fim-de-semana. A luz solar rompeu o cerco das nuvens e os raios crepitam no telhado do pavilhão da escola aqui ao lado. São pequenas explosões invisíveis, em número incontável, mas cujo efeito reverberante atinge os meus olhos e faz saltar em mim uma pequena faísca de júbilo, apesar do troar inquieto do vento nas persianas. Nas varandas do prédio em frente, uma assembleia de anjos discute, mas não consigo perceber o que dizem. O discurso tem um ritmo que anuncia a eternidade, e a voz que o pronuncia é sempre grave. São anjos barítonos e anjos baixos, nenhum deles é tenor. Sabem que eu estou a vê-los, mas não se importam. O assunto que tratam não me diz respeito e, como tal, não consigo perceber as suas palavras; jorram das suas bocas como se fossem rios muito antigos à procura de um mar profundo que as receba. Tudo isto, porém, é falso. Os anjos estão lá e discutem, mas não existe nenhum prédio em frente.
quinta-feira, 3 de abril de 2025
Uma autobiografia
Estava eu em estado de sonolência, quando ouvi a voz do homúnculo que habita dentro de mim a declamar um imperativo: devias escrever uma autobiografia! Uma autobiografia, eu? Sim, tu – continuou o desprezível homúnculo – e desceu à explicitação: devias escrever a autobiografia de um centauro. Respondi-lhe que não era um centauro. Um riso cavernoso – riso próprio dos homúnculos desprezíveis que habitam no desvão da minha mente – ressoou nos interstícios do meu ser, caso eu tenha um ser e este possua interstícios. A quem o dizes, retrucou ele. Bem sei, falta-te tudo para seres um centauro. Falta a parte de cavalo e a parte de homem. Não passas de uma aparência destituída de essência, um vazio recoberto por uma pele opaca – mas, por isso mesmo, podes escrever a biografia de um centauro. Quem é nada pode imaginar ser qualquer coisa.» Discordei: uma contradição na lógica do homúnculo. Se sou nada – e isso posso aceitar –, então não tenho experiência de nada. Falta-me a matéria para a biografia, mesmo para inventar uma biografia falsa. Ficou furioso, soprou como um gato assanhado, mas não me amedrontei. Até que, cansado de silêncio, atacou: Tu, que escreves tanto – uma presunção dele, pensei – sem assunto, sem matéria para escrita, estás agora com pruridos? Que diferença há entre escreveres a autobiografia de um centauro e este texto? Deixei o silêncio pairar, enquanto ouvia o tamborilar da chuva no vidro da janela. São insuportáveis – ouvi –, os limites da tua imaginação e a pequenez do teu entendimento. Se escreveres a autobiografia de um centauro, podes tornar-te um. As pessoas que escrevem autobiografias – continuou – fazem-no não porque tenham sido aquilo que narram, mas para virem a sê-lo. Anuí, mas perguntei: Por que raio hei-de eu querer ser um centauro? Aí, voltou o riso cavernoso. Se fosses um centauro, ao menos eu podia deslocar-me a galope, em vez de ir ao ritmo desses teus passos trôpegos. Uma razão como qualquer outra, pensei.
quarta-feira, 2 de abril de 2025
Poesia e prosa
Numa brevíssima introdução à sua obra poética, A uma hora incerta, Primo Levi diz que o impulso para se exprimir em versos está presente em todas as civilizações, mesmo naquelas que não têm escrita. Admite que também ele, a uma hora incerta, cedeu a esse impulso. E acrescenta: ao que parece, está inscrito no nosso património genético. E como outros, reconhece que a poesia nasceu antes da prosa. Somos levados a pensar, então, que a nossa natureza é poética e que a prosa nasce de uma reflexão sobre a poesia. Podemos estabelecer uma analogia com as teorias do contrato e a instauração da sociedade política. O estado de natureza selvagem – impulsivo – e o estado civil como resultante de um contrato reflexivo entre os homens. Contudo, esta interpretação das teorias do contrato é ingénua. As teorias do contrato não estabelecem uma linha histórica, onde, num primeiro momento, viveríamos no estado de natureza – o homem lobo do homem – e, perante a falência da vida humana, chegaria um segundo momento, onde os homens estabeleceram o contrato. Estado de natureza e estado civil são duas possibilidades sempre presentes nas comunidades humanas. Por norma, vivemos no estado civil, mas, se o contrato entre nós falha, caímos no estado de natureza. Voltando a Primo Levi. A ideia de a poesia ser anterior à prosa será falsa. Ambas são possibilidades sempre presentes – e presentes desde sempre – no homem, pois nascem de dois impulsos que estão, por certo, inscritos no seu código genético: o de exprimir-se e o de comunicar. Mais, entre eles não há uma oposição, mas uma linha contínua, onde não existe fronteira clara entre a expressão poética e a comunicação prosaica. Como na organização das comunidades humanas, o estado de natureza e o estado civil estão sempre presentes, o mesmo se passa na linguagem: poesia e prosa são possibilidades sempre presentes. Há, porém, uma diferencia essencial. Passar do estado civil ao estado de natureza é uma queda de funestas consequências, mas transitar da comunicação prosaica para a expressão poética é, não uma queda, mas uma elevação, o sinal de um desejo de ascensão.
terça-feira, 1 de abril de 2025
Do começo
Tinha três começos possíveis para este texto. No primeiro, em louvor da tradição, falaria dos adolescentes que lá em baixo jogam às escondidas, parecendo-me o jogo sem inovações relativamente ao tempo em que eu o jogava. No segundo, em louvor da trivialidade, começaria com o facto de estarmos em Abril, com a referência às águas mil, para prosseguir com o Dia das Mentiras, pois a minha reserva de banalidades e lugares-comuns é inesgotável. No terceiro, em louvor da autocomiseração, descreveria a tentação que tive, ao datar no Word este post, de escrever 1 de Abril de 2024. Sim, preocupou-me a associação entre o mês quatro e o ano de 24. Não creio que seja um acto falhado, explicável pela teoria do Dr. Sigmund Freud, mas de um deslize neuronal que não me agrada, e os motivos do desagrado não são estéticos. Acabei por não começar com nenhum deles, mas pelo anúncio de que os tinha. Comecei com uma afirmação de propriedade. Pelo verbo ter. Melhor, o verbo ter permitiu-me manifestar uma tenência. Há muitas pessoas que têm a angústia do começo. Estão piores do que eu. Também elas têm qualquer coisa, a angústia, mas eu tenho os começos. Um dia, talvez em breve, poderei montar um negócio de venda de começos, criar uma start-up. Venderia começos para cartas de amor, mas já ninguém escreve cartas de amor, nem sequer emails ou SMS. Enviam um emoji, e para isso não tenho começo. Poderia oferecer – no mercado, claro – começos para cartas de condolências. Caíram em desuso, um azar. Comercializaria começos para cartas comerciais, o que estaria adequado. A concorrência, porém, é muito forte. O ChatGPT faz isso melhor do que eu e pro bono. Poderia mercadejar começos para grandes romances ou poemas sublimes. A prospecção de mercado indicou-me que não teria comprador. Ainda pensei em começos para tratados de Física, de Neurologia ou para preâmbulos de decretos-lei. O meu consultor financeiro dissuadiu-me; se for para inícios de horóscopos, talvez se arranje qualquer coisa. Desisti. Resta-me guardar os começos para mim, antes que a angústia me apanhe e não consiga chegar ao fim do texto porque não lhe descobri o começo.