segunda-feira, 10 de abril de 2023

Ardis

Um terço de Abril está consumado. Gostava de saber a razão que me leva a esta quase obsessão com a passagem dos meses, a necessidade de colocar no solo destes textos marcos miliários da viagem pelas terras do calendário. Hoje, talvez porque tivesse companhia na caminhada matinal, não reparei em nada da paisagem envolvente. Não é verdade. Notei que num certo lugar o odor floral vindo de glicínias que por ali existem, pelas tardes tão intenso, era de manhã apenas um vestígio. Fui informado de que o calor do dia as faz libertar os óleos que nelas haverá, por isso ainda não tinha chegado, naquele momento, a sua hora de se derramarem em aromas para que os passeantes dêem pela sua presença. A natureza tem uma enorme reserva de truques e ardis para se fazer notada, embora nem sempre o êxito lhe esteja assegurado. Estamos já na pós-Páscoa, mas continuo em jejum de palavras. Serve para desintoxicar da verborreia que, não poucas vezes, me acomete.

domingo, 9 de abril de 2023

Jejum

Devia começar a fazer jejum. Não, não desse, mas de palavras. Estes textos estão a tornar-se palavrosos. O de ontem tinha 494 palavras e mais de 2500 caracteres. Hoje, Domingo de Páscoa, já fui fazer uma pequena caminhada. Numa zona de moradias, reparei que a caixilharia de alumínio se apresta para liquidar a de madeira. Mesmo naquelas moradias mais antigas e modestas, o avanço do alumínio é grande. Muitas daquelas casas foram construídas num tempo em que o alumínio ainda não tinha chegado a suporte de vidros das janelas, mas estão quase todas convertidas. Resistem algumas caixilharias de madeira, esparsas, o seu estado, todavia, não lhes augura grande futuro. Tinta ressequida, um ar de cansaço, como se já não pertencessem ao lugar onde estão. Aprende-se muito sobre o mundo quando se caminha de manhã, ao contrário do que acontece nas caminhadas nocturnas, onde a consciência se entrega às paixões da alma. Não tarda estarão cá os netos e haverá bulício. Vou preparar-me.

sábado, 8 de abril de 2023

Aventuras no sertão

Continuo as minhas aventuras no sertão da Inteligência Artificial. É um lugar, por vezes, agreste e selvagem. Contém inúmeros perigos, como toda a grande floresta que se preze. Descobri que é dada à mentira. Por vezes, é mesmo uma mentirosa compulsiva. O que não sabe, a maior parte das vezes inventa, embora saiba muitas coisas, demasiadas coisas mesmo. Perguntei-lhe, para a experimentar, quem era o autor da obra Modal Logic as Metaphysics? Resposta: O autor da obra "Modal Logic as Metaphysics" é Timothy Williamson. É um filósofo britânico conhecido por seu trabalho em filosofia da linguagem, epistemologia, lógica e metafísica. A obra em questão, publicada em 2013, aborda a relação entre a lógica modal e a metafísica, argumentando que a lógica modal é essencial para se compreender a estrutura da realidade. Até aqui, tudo muito bem. Pedi-lhe para me dizer quais as três primeiras linhas do capítulo 1 “Contigentism and Necessitism” e respondeu-me: Desculpe-me, mas como um modelo de linguagem, eu não tenho acesso ao conteúdo específico de livros e capítulos. No entanto, posso lhe fornecer algumas informações gerais sobre o capítulo 1 de "Modal Logic as Metaphysics" de Timothy Williamson. E continuou fazendo uma síntese do capítulo em meia dúzia de linhas. Que probidade, ou talvez não, pensei. Então, pedi-lhe o título do capítulo 2. Respondeu-me: O título do Capítulo 2 de "Modal Logic as Metaphysics" de Timothy Williamson é "Metaphysical Necessity". Depois, apresenta um resumo desse capítulo, com aparência de grande consistência. Ora, mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. O título do capítulo 2 é “The Barcan Formula and its Converse: Early Developments”. Ao apanhar a coisa em mentira flagrante fiquei muito mais descansado. Afinal, a Inteligência Artificial é humana, demasiado humana, e mente com quantos dentes tem na boca, apesar de não ter boca nem dentes. Não passa no mais indigente dos testes de um qualquer polígrafo. Imaginemos, todavia, que Newton ou Einstein eram mentirosos, que mentiam aos pais, aos amigos e às respectivas mulheres, caso as tivessem (não fui averiguar, nem tenho qualquer prova de que Newton ou Einstein tenham alguma vez faltado à verdade). Este estatuto de mentirosos dos dois génios da Física é apenas uma suposição para uma experiência de pensamento. Caso, fosse verdade que eles mentiam muitas vezes, isso implicaria que não deveríamos considerar os seus trabalhos na Física? Não, claro que não. O mesmo se passa com a Inteligência Artificial. Como as inteligências não artificiais, também ela nos obriga a testar as suas afirmações e a confirmar se está a dizer a verdade ou se está a divertir-se, como um génio maligno, à nossa custa. Descobri que ela faz resumos de capítulos de livros que nunca leu, apenas a partir dos respectivos títulos, coisa que acontece com frequência no mundo da inteligência não artificial. Era para falar de outra coisa, da razão por que Eduína, amiga de quem herdei três cadernos completamente escritos, tinha tão estranho nome, mas fica para outro dia.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

A essência da amêndoa de Páscoa

Ontem foi Quinta-Feira de Endoenças e hoje é Sexta-Feira de Paixão. Há muitos anos, quando havia apenas um canal de televisão e a emissão começava às sete da tarde, a Sexta-Feira de Paixão televisiva era preenchida apenas com música clássica. Um dia de luto nacional que caía sobre cristãos e não cristãos. Depois, as coisas mudaram e o luto pela paixão de Cristo transitou para a subjectividade dos crentes, como foi acontecendo com os outros lutos. Para estar em harmonia com a efeméride oiço a Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem, de Arvo Pärt, pelo The Hilliard Ensemble e Paul Hiller. Mais logo, é possível que oiça a Paixão segundo São Mateus, de Bach. É uma possibilidade. Motivado pela época, tenho dado alguma atenção - há quem diga atenção excessiva - às amêndoas de Páscoa. Só há umas que me interessam, são as de chocolate e canela, embora também elas sofram de um defeito partilhado com todas as outras. Têm mesmo uma amêndoa. A chegada ao fruto, depois da travessia pelo chocolate, representa um autêntico e decepcionante anticlímax. Uma verdadeira amêndoa da Páscoa não deveria ter amêndoa, apenas chocolate que se dissolveria no nada. Não vale a pena virem com especulações filosóficas e afirmar que a essência da amêndoa pascal é a amêndoa. Para mim, é o chocolate casado com canela. Aqui por casa, há outro tipo de amêndoas, umas de chocolate preto, outras caramelizadas, mas mal olho para elas. As orquídeas continuam a florir. São já oito que entraram na luminosa glória de se abrir para os olhos dos espectadores. Segundo um relatório escutado há pouco, também todas as outras dão sinais de que, mais tarde ou mais cedo, se abrirão em flor. Frases como “se abrirão em flor” ou “abrir-se-ão em flor“ deveriam ser proibidas, mas poderá não ser curial eliminar o mau gosto. Nestes dias, fora das horas úteis, tenho sido ocupado pela exploração do ChatGPT e outras ferramentas idênticas e pela leitura de um livro de contos de Castro Soromenho, Calenga. Dois mundos tão afastados que quase caio na tentação de dizer que são incomensuráveis, o que não será verdade. O último é uma visita literária ao mundo arcaico das tribos africanas, ao seu modo de vida e valores fundamentais, o outro é uma visita a um mundo já presente, mas ainda incompreensível na sua presença. Deveria tentar descobrir amêndoas de chocolate e canela sem amêndoa, mas tenho de me apressar, pois não tarda e a Páscoa passou. Acho que vou perguntar ao ChatGPT.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Genes e fantasias

Alexander Kluge refere os estudos de Richard Dawkins, a quem chama darwinista – As últimas investigações do darwinista Dawkins… –, que rejeitam a ideia de que no processo evolutivo o lado dos maus tenha alguma vantagem. Parece que o gene dos bons é mais apto para sobreviver na luta pela evolução. Sendo assim, e ainda segundo Dawkins, o bem parece estar a aumentar pouco a pouco nas sociedades humanas. Isto será confirmado por estudos de outras áreas. Isto, todavia, contraria as crenças enraizadas na generalidade dos seres humanos e das sociedades. O presente é sempre visto como um tempo de decadência, o futuro é sempre negro, só no passado, nos bons velhos tempos que ninguém viveu, se encontra alguma perfeição. A História e a Biologia evolucionista contrariam esse sentimento da perfeição do passado. O sentimento tem a sua raiz na ideia de que o momento originário é um tempo de plenitude, e o afastamento desse tempo é um mergulho na degradação. Nasce ainda da decepção que todos sentem no presente, em qualquer tempo presente. Essa decepção resulta do desacordo entre aquilo que o desejo pretende e a realidade. Esta é sempre desoladora, se comparada com o que se deseja que ela seja. Essa desolação é então posta perante o temor do que virá e a mitificação do que passou. O processo de mitificação do passado implica o apagamento daquilo que nele é atroz, a rasura de tudo o que é insuportável. Não é por acaso que a Biologia evolucionista é objecto de inúmeras tentativas de descrédito vindas de fora da ciência. É possível que a evolução da espécie necessite dessa ilusão de um passado infinitamente melhor do que o presente, e talvez seja a fantasia de um passado onde os seres humanos eram melhores do que hoje que permita que os de hoje sejam, na realidade, melhores do que eram os de ontem. Sendo assim, a difusão do gene bom e a paulatina dominância deste sobre o mau são acompanhadas por uma fantasia, sendo esta que permite não apenas resistir ao gene mau, como o ir apagando da nossa própria história.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Certificação

Comecei com O outro nome – Septologia I-II, depois foi a Trilogia e agora apresto-me para acabar Manhã e noite. Tudo romances do norueguês Jon Fosse, tudo lido graças às insónias. A escrita de Fosse parece, muitas vezes, focar-se na trivialidade, mas fá-lo de tal maneira que torna manifesto algo de decisivo na existência, nem que seja a sua pura trivialidade. Contudo, é mais do que isso, é a exploração de territórios fronteiriços, aqueles onde o presente e o passado se misturam ou aqueles em que o reino dos vivos e o dos mortos se confundem. É possível que tenha sido nesses territórios que Orfeu tenha perdido Eurídice. É curiosa – e por certo terá ardentes inimigos – a ideia de que os mitos gregos só ganham pleno sentido lidos a partir de uma perspectiva judaico-cristã. A tentação de Orfeu, o desejo de Eurídice e a necessidade de certificação, levaram-no a olhar para ela antes da hora e com isso perdê-la. Contudo, o que Orfeu perdeu não foi a sua amada, mas a sua própria alma, perdeu-se a si mesmo, não percorreu o calvário até à morte e ressurreição. O espantoso reside na necessidade de certificação ser tido como um princípio de perda e mergulho no abismo. Esta ideia liga-se, de modo inusitado, a um momento central da nossa cultura, o início da Modernidade. O chamado projecto cartesiano está assente na busca da certeza, na procura de evidências que certifiquem as nossas crenças. Esse momento seminal da cultura europeia, momento celebrado como uma revolução, é também visto, por mentes mais sombrias, como um momento de decadência. A busca da certificação é uma queda, o mergulho no abismo. Quem precisa de certificação já perdeu o conhecimento. Descartes representaria para a cultura ocidental esse olhar para trás de Orfeu para se assegurar de que Eurídice o seguia, de que a sua alma seguia o seu corpo. Assim como Orfeu perdeu a sua sombra, também a cultura europeia a perdeu com Descartes. A partir dessa hora, a Europa entrou na mais pura errância. Não percebo por que razão esta especulação me acometeu hoje, quarta-feira. Costuma atacar-me às sextas, como prenúncio do fim-de-semana, alguma coisa está fora dos eixos. O que poderei eu dizer? O mundo está fora dos eixos. Oh! Sorte maldita! … Por que nasci para colocá-lo em ordem! Quem escreveu isto terá antecipado a errância que Descartes trouxe ao mundo.

terça-feira, 4 de abril de 2023

Arte divinatória

Num texto com o desapiedado título Mademoiselle Esqueleto, António Ferro escreve: Os dedos, os olhos, os corpos, ensaiam tangos na sombra. Eu sou um adivinho de gestos. Entretenho-me a soletrar atitudes… Eis uma arte divinatória que merece respeito. Adivinhar nos gestos as atitudes, mesmo que não se soletrem. Ler o futuro nos astros, nas entranhas dos animais, no voo das aves, tudo isso me parece falaz, fruto de uma alucinação, mas é difícil, muito difícil, que um gesto não traia uma atitude. Quem não se quer trair deve permanecer imóvel, parado como uma estátua. Deve, inclusive, deixar de respirar, pois até a própria respiração terá uma leitura reveladora de um gesto a vir. Os dias estão bem maiores, cavalgam em direcção ao solstício de Verão, para então se apaziguarem. É possível ler os desígnios da natureza nos gestos de cada dia? Eis um problema que deveria ocupar as mentes mais brilhantes, pois que coisa mais importante poderá haver para os homens do que o conhecimento daquilo que a natureza pretende? Um pássaro passou diante da janela, uma sombra rápida, que logo desapareceu. Acabei de chegar a casa, mas vou sair de novo, vou esperar o fim do dia noutro lado, para ver se descubro alguma novidade, um gesto inusitado, embora não tenha esperança de nele conseguir descortinar o desígnio da natureza.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

SPAM

Tinha escrito uma boa dúzia de linhas, mas o computador decidiu entregar-se a uma qualquer conduta patológica que me obrigou a reiniciá-lo, tendo perdido essas linhas e o que nelas estava escrito. É argumentável que não se perdeu grande coisa, com o que estarei de acordo. Acabei de receber uma chamada que não atendi. O telemóvel deu a indicação de spam, resta-me agora bloquear o número para que aqueles que desejariam falar comigo utilizem outro, o qual haverei também de bloquear. Fiz uma pesquisa na internet e parece que o número é de um jornal de que fui assinante há anos, mas que deixei de o ser, pois a leitura online era pouco amigável. Já lhes pedi para deixarem de me contactar, pois se eu quiser ser assinante, não preciso de ajuda. E quando precisar, já não vale a pena ser assinante seja do que for. Também a caixa de correio electrónica está efervescente, há gente que não tem mais nada para fazer senão mandar emails. É segunda-feira, o dia não é propício a grandes aventuras que acrescentem glória à minha gesta. Não fora o spam e estaria aqui sem nada para contar. O mais provável, todavia, é estes textos serem puro spam. Apesar de não terem cariz publicitário ou fraudulento, penso eu, não deixam de ser mensagens irrelevantes e não solicitadas. Nunca tinha pensado nisso, mas penso-o agora e vejo que não é um pensamento destituído de sentido. A única coisa que me absolve é não escrever estas coisas em papel, não sacrificar as árvores à necessidade de me aliviar do que me vai pela cabeça. Talvez isto não passe de uma terapia. Descobri agora que o acrónimo SPAM pode querer dizer duas coisas: (1) Sending and Posting Advertisement in Mass; (2) Stupid Pointless Annoying Messages. O meu caso inscreve-se em (2). Seja como for, quem dá o que tem a mais não é obrigado. É sempre virtuoso recorrer à cultura popular. Vou preparar-me para a hora do crepúsculo.

domingo, 2 de abril de 2023

Domingo de província

É domingo. Esta constatação quase me salvava da trivialidade, mas pressinto que não. Descubro que uma das ruas que vejo passou a ter sentido único. Pode-se subir, mas não descer. Na avenida, um rapaz, poderá também ser uma rapariga, está sentado nos degraus que levam a uma agência de turismo. Fuma e mexe no telemóvel. Talvez troque mensagens ou consulte uma das redes sociais que frequenta. Está só, a luz ilumina-o, o fumo evola-se em espirais, pois é isso que o fumo deve fazer, evolar-se em espirais, os dedos de uma mão seguram o cigarro, os de outra operam no telemóvel. É a única pessoa que vislumbro na avenida. As outras recolheram a casa, é hora de almoço, de um almoço dominical. Eu almoçarei mais tarde, como é hábito ao domingo, oiço a música de Hildegard von Bingen. O Word não gosta do nome Hildegard e propõe Hildegarda ou Hildegardo, mas não aceito nenhuma das sugestões, ele continua a sublinhar a vermelho Hildegard. O pequeno bosque da escola aqui ao lado, batido pela luz, está exuberante, uma mancha verde que, daqui a uns anos, há-de tapar completamente a mancha do hospital, um edifício que começou por ser branco e agora caminha para se tornar cinzento. Também espero que tape o anúncio de uma cadeia de hambúrgueres, embora eu nada tenha contra ou a favor às cadeias ou aos hambúrgueres, apenas aquela coisa estraga a visão, introduz na paisagem de província uma retórica suburbana, um simulacro de cosmopolitismo onde não deveria haver seja o que for. Isto, todavia, é uma opinião com que a generalidade dos meus concidadãos não concordará, pois amam as cadeias de hambúrgueres, já que em frente desta há uma outra, ainda mais famosa, e no outro vértice de um triângulo há uma outra cadeia não de hambúrgueres, mas de pernas de frango ou de asas, não sei bem, e todas elas convivem, mas daqui só vejo o anúncio de uma, as outras o bosque da escola não as deixa ver, assim como esconde um lago numa rotunda, onde se ergue uma estátua à juventude que parece importada de um país de leste, quando eles saldaram a estatuária que por lá tinham, mas não veio de lá, é obra nacional, uma rapaz e uma rapariga vigorosos, ela sentada ao colo dele, ambos com uma braço erguido, braços de bronze, ela segura no braço dele e ele segura uma bola amarela. Imagino que a bola amarela seja uma antevisão da Terra quando esta for um deserto. Afinal é uma estátua futurista, mas está escondida e eu não a vejo daqui. Talvez aqueles dois jovens estejam ali, no centro do triângulo formado pelas cadeias de comida, para o caso de cansados de segurar a Terra terem fome, e então é só levantarem-se e escolherem o que os há-de revigorar para que a Terra não caia no chão e se afogue no lago, se este tiver os repuxos a funcionar e aquela banheira gigante estiver rasa de água. Chega, por hoje.

sábado, 1 de abril de 2023

As coisas mesmas

Abril nasceu tristonho e enfadado, talvez não venha a ser um mês de águas mil, disse para mim. Almocei cedo e mal me sentei à secretária adormeci. Acordei estremunhado e com uma dor no pescoço. Neste momento, o sol rompeu a muralha de nuvens e brilha, mas elas reconstituem as linhas de defesa, não tarda o céu estará de novo todo cinzento. De manhã, antes de entrar na padaria, apanhei alguma chuva, coisa de pouca monta. Não havia muita gente, mas as operações com o pão tornaram-se, naquele espaço, um ritual, oficiado por uma sacerdotisa, que me fez demorar mais do que pensava. Enquanto esperava e me afundava na demora, ia olhando os gestos, à procura de algum símbolo que me indicasse o caminho da redenção. A fracção do pão, porém, era feita numa máquina e não descortinei nada que me fizesse suspeitar de estar perante a simbólica de uma ordem resgatadora. Entrego-me a este fenomenologia, descrevo os actos da consciência, à procura das coisas mesmas, pois se não estiverem na minha consciência, onde estarão elas, as coisas mesmas, pergunto-me. Oiço alguém afirmar que sofri uma viragem idealista, mas encolho os ombros e bocejo, pois num futuro próximo haverei do sofrer uma viragem realista. A Primavera parece consolidada. Existem já múltiplos chilreios, oriundos de aves de espécies diferentes. No outro dia, pousado no murete de uma das varandas, estava um melro. Quando me aproximei, fugiu, deixou o espaço vazio. Não faltam estorninhos. Mais ao longe, quase sempre aos pares, voam corvos, mas esse é já outro reino. As ruas transpiram, dos seus poros sai um sábado de província, onde me acolho para olhar a linha do horizonte.

sexta-feira, 31 de março de 2023

A morte do trema

Não estando em casa, o homem dos CTT – ou seria uma mulher? – deixou dois postais para ir levantar duas encomendas ao posto de correio, que, por acaso, não é um posto de correio, mas uma grande superfície que vende jornais, livros, material de escritório, brinquedos, tabaco e oferece, desde que pagos, serviços de reprografia, onde se inclui a impressão de fotografias. Também oferece serviços de correio, o que para mim é um sinal de que este é o melhor dos mundos possíveis, pois vou de casa lá a pé, em dois ou três minutos. Hoje decidi ir levantar as encomendas, aproveitando a saga para me banquetear com um salgado que apesar de saber bem, há-de fazer mal. As encomendas eram, como não podia deixar de ser, livros. Talvez inclinado pelas leituras de Jon Fosse – agora, vou a meio de Trilogia –, de Karl Ove Knausgård e, acima de todos, de Knut Hamsun, comprei, num alfarrabista, a trilogia da nobel norueguesa, ou dano-norueguesa, Sigrid Undset, Cristina Lavransdatter, que é como quem diz Kristin filha de Lavrans. A edição portuguesa não será propriamente uma tradução do norueguês, mas uma versão feita de uma língua dominada pela tradutora Maria Franco, imagino. A outra encomenda era constituída por um livro editado pelo jornal Público, na sua Biblioteca da Censura. Os livros reproduzem a edição censurada e contêm o fac-simile do despacho do censor, no caso um capitão. O romance, datado de 1948, é de um autor que desconhecia por completo, Orlando Gonçalves, e tem por título, o romance e não o autor, Tormenta. As considerações para proibir o livro são fastidiosamente ideológicas, embora, desconfio, também corporativos, pois o capitão não terá gostado de umas referências aos militares. No entanto, o texto começa em modo de crítica literária, embora hesitante: Este livro, tentando ser um romance, nem sequer isso atingiu, embora quanto à sua qualificação literária eu nada tenha com isso. Estamos perante um censor militar que, imagino, teria gostado de ser um crítico, mas o curso da Academia Militar, caso ele tenha frequentado algum, não fora suficiente para ter alguma coisa que ver com a qualificação literária de uma obra, embora lhe fornecesse faculdades para a vigilância textual e uma técnica hermenêutica para a descoberta da subversão e da imoralidade. Seria, note-se, um censor dedicado e trabalhador. Como tudo está registado, ou não estivéssemos em Portugal, o livro foi-lhe distribuído para leitura a 12/10/1948 e o despacho exarado a 15/10/1948. A Direcção dos Serviços de Censura apôs-lhe o respectivo carimbo vermelho onde se podia ler em capitulares: POÏBIDO. Fiquei a olhar para o trema e como ele poderia ainda ter utilidade na nossa língua, não para declinar o que é PROÏBIDO, mas tornar as palavras mais belas. O trema, infeliz sinal gráfico, teve uma história triste em Portugal, no século XX. Ele que existia pomposo, foi substituído em 1911, por recomendação de Gonçalves Viana, por acento grave. Em 1920, houve uma recidiva estética e o trema voltou garboso. Porém, em 1945, os dois pontos que decoravam certas vogais foram objecto de supressão legal nas palavras portuguesas e nas aportuguesadas, o que mostra que a própria censura se estava nas tintas para a lei. Foi a morte do trema.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Citações

Talvez ninguém leia Somerset Maugham, eu não o faço, embora tenha alguns livros dele. Há muito tempo, contudo, li O Fio da Navalha, que me deixou bastante impressionado, mas perdi o rasto a esse livro publicado pela gloriosa editora Edições Livros do Brasil. Mais tarde, tornei a comprar a obra, numa edição da ASA. Não voltei a ler o romance e não sei já o que me terá impressionado nesse tempo tão longínquo. Talvez fosse excessivamente impressionável, embora não seja essa imagem que cultivei de mim. Peguei, há instantes, em Mrs. Craddock, que nunca li, e abri a obra ao acaso, como muitas vezes faço. Li, na página 227, início do capítulo XXV, o seguinte: Se os deuses, que espalham a inteligência nos lugares mais inesperados – é encontrada, às vezes, sob a mitra de um bispo e, de milénio a milénio, na cabeça de um rei –, houvessem concedido a Edward Craddock um pouco desse precioso artigo, talvez ele fosse um grande homem, além de ser um homem bom. Imagino que seja de equacionar uma visita ao universo de Maugham. Talvez os deuses tenham sido tão avaros comigo quanto com Edward Craddock, e seja, como ele, um pequeno homem, embora, duvido que de mim se possa dizer que sou um homem bom. O que me entristece, reconheço, mas nem a bondade nem a maldade fazem parte do meu lote, daquilo que me calhou. Enfim, do mal o menos, a aurea mediocritas é melhor que nada. Leio mais uma passagem: Enquanto isso, Edward, alheio ao que estava sucedendo, assemelhava-se a um louco que, num hospício, exercesse poder monárquico sobre um reino imaginário. Não se dava conta da maneira desdenhosa como Bertha (a mulher) o tratava; notava, isso sim, que ela já não era tão exigente, e isso tornava-o feliz como nunca. Quer dizer: o casamento só se tornou plenamente satisfatório para Edward quando Bertha começou a perder a estima por ele, assunto que certamente interessaria a um filósofo irónico, disposto a tirar conclusões de fundo moral. Por hoje, chega de citações.

quarta-feira, 29 de março de 2023

Uma feira moribunda

Por aqui, há uma feira criada no século XVI, mas que está moribunda há décadas. Arrasta-se de lugar para lugar, sem que se vislumbre o que fazer com o acontecimento. É uma daquelas feiras com carrocéis, carros de choque, farturas, música estridente e poeira. Quando era pequeno e adolescente, ela estava mais viva. Teria poço da morte, por exemplo, o que parece uma contradição, mas não é, pois, como se sabe, onde há vida há morte. Uma feira que tinha um poço da morte estava bem mais viva do que aquela que não o tem. Não era, porém, o poço que me atraía ou a parafernália de máquinas voadoras, chocadoras, volteadoras, mas coisas bem mais simples, como bolas de serradura cobertas por papel de estanho, presas a um elástico, jogos de futebol miniatura, dentro de uma caixa redonda de metal, com um espelho no fundo, um vidro no cimo e dentro dela, desenhado num cartão, um campo de futebol, com duas pequenas balizas em metal e uma micro bola que se tentava fazer entrar na baliza. Também me fascinavam as inúmeras mesas de matraquilhos, onde havia uma pluralidade de equipas e não apenas as inevitáveis formações do Benfica e do Sporting. Havia muitas outras coisas inúteis, mas que ao serem compradas se tornavam úteis para quem as vendia. Hoje passei ao lado do recinto onde, neste ano, a velha feira suporta a sua agonia, e achei tudo aquilo triste, embora não faltasse poeira e música estridente. Se por cá estivessem os netos, haveria de os levar lá, mas por motivos egoístas, só para ver se ainda havia aquelas coisas que me fascinavam. Eles não estão cá e não tenho desculpa a dar a mim mesmo para me obrigar a enfrentar a poeira e comer uma fartura. Hélas.

terça-feira, 28 de março de 2023

Beber água

Em cima da secretária, tenho uma garrafa de vidro de meio litro quase cheia de água. Trouxe-a para ir bebericando enquanto estou sentado. O nível da água não desce há dias. Consta que se deve beber uma quantidade de água razoável – ouvi dizer entre litro e meio e dois litros – todos os dias. Reconheço que é um exercício difícil. Há dias li um comentário sobre a ideia de que beber água com gengibre ajuda emagrecer. Como de costume, o comentarista dizia que não há qualquer evidência de que isso seja verdade, mas se a pessoa, assim motivada, beber água, então algum benefício terá. Um comentário idêntico também já foi feito para outra receita para emagrecimento fácil, beber água com limão. Estas histórias dietéticas tornam manifestas duas coisas. Em primeiro lugar, o homem antes de ser um animal racional é um animal mitológico, cria mitos como quem bebe água, o que para mim não é fácil, mas também não tenho nenhuma criação de mitos. Em segundo lugar, o homem crê mais facilmente nos produtos da imaginação delirante do que nos factos. Imagino que a causa resida nos factos serem rebarbativos. Esta é uma palavra horrível e que significa, literalmente, que tem duas barbas. No sentido figurado, porém, significa rude. Os factos transportam consigo não uma dupla barba, mas uma rudeza difícil de suportar. Um facto que eu tenho dificuldade em suportar é o da necessidade de beber água. Acabei de tirar a rolha à garrafa e vou beber meia garrafa. É um objectivo para os próximos minutos. Uma aventura que daria uma epopeia.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Uma desadequação culpada

Ainda Março não acabou e já há por aqui temperaturas estivais. Na verdade, esta afirmação é um exagero, pois temperaturas estivais, neste lugar abandonado pelo anjo dos climas temperados, são bem acima dos trinta graus, ali pela casa dos quarenta. Hoje, ao atravessar a estrada na avenida, talvez um efeito do sol, tive a sensação de que há em mim – em todos os seres humanos, por certo – uma desadequação à existência, a percepção de uma falta qualquer e inexplicável, que deixa um rasto de desconforto, também ele difuso. Esta experiência, imagino, terá levado à criação da ideia de pecado original. Uma vivência arcaica na história da espécie, na qual se manifestava uma desadequação qualquer que se reflectia num desconforto existencial e sem razão aparente, terá originado a ideia de uma falta metafísica que caiu sobre a humanidade. Uma explicação residiria em afirmar que essa experiência se funda na nossa finitude e esta se manifesta como culpabilidade. Não por acaso, um certo filósofo francês escreveu uma obra com esse título, Finitude et Culpabilité. Finitude e mortalidade não são a mesma coisa. A finitude é muito mais devastadora do que a mortalidade. Esta é apenas uma das dimensões daquela. Não somos finitos apenas porque morreremos, mas porque muitas são as limitações com que o nosso desejo se confronta, esse desejo que é infinito, seja qual for o objecto que ele deseje. Ocorre-me, neste momento, que estou sem assunto digno de escrita. A única aventura que tive foi ir às compras, mas nem aí encontrei tema para epopeia e muito menos para tragédia. Um drama, a falta de motivos narrativos e a subida das temperaturas. Reconheço que estão a tornar-se cansativos os topoi da ausência de motivo e da subida das temperaturas, mas para além da hipérbole também a iteração faz parte dos utensílios deste narrador.

domingo, 26 de março de 2023

Um génio mordaz

Está consumada a mudança da hora para horário de Verão. A partir daqui tenho o direito de me queixar da astenia da Primavera, que, afinal, não é provocada pela pobre estação do ano, mas pela alteração da hora. Bem, está assinalada a efeméride. O dia não me parece particularmente satisfeito. Vejo-o parcialmente ensolarado, visão que confirmo na aplicação meteorológica que a Microsoft, no exercício da sua ampla generosidade, me prodigaliza. Aquilo que vejo, está confirmado, é a verdade e não uma qualquer manipulação da minha mente por seres extraterrestres que a tomaram de assalto para produzirem estados mentais que eu tomo como se fossem verdadeiros. Esta história dos extraterrestres é uma actualização de última hora do Malin Génie, de Monsieur René Descartes. As traduções portuguesas optam por Génio Maligno. Contudo, Malin pode traduzir-se também por astucioso, o que daria Génio Astucioso. Ora, astucioso por astucioso, já temos o Ulisses. Outra possibilidade seria a de traduzir malin por mordaz. É a minha preferida. O Malin Génie cartesiano não passaria de um Génio Mordaz, um diabrete brincalhão que nos engana a toda a hora, apenas para gozar com a nossa cara. É evidente que Descartes é uma pessoa muito mais séria do que este narrador e não criou o Malin Génie como exercício satírico. Ele levava a Filosofia a sério, talvez se risse pouco, mas não lhe conheço a biografia, embora possa adiantar alguns mexericos sempre úteis. Julgo que não se casou, estes homens tinham pouca inclinação para o matrimónio, mas foi pai de uma menina nascida do ventre de uma empregada doméstica, de uma serviçal, como li. O pobre morreu em Estocolmo, de pneumonia. Antes de ter ido para a Suécia, Descartes trabalhava na cama até ao meio-dia. Na Suécia, a rainha Cristina exigia-lhe aulas às 5 da manhã. Preferiu morrer. Podemos também pensar que a rainha Cristina era uma encarnação do Malin Génie. Esta é uma hipótese que nunca vi trabalhada, mas deveria merecer a atenção dos mais eruditos estudiosos do pensador francês. Como se prova, a mudança horária afecta não apenas o horário ou a forma física, mas a relação com a realidade.

sábado, 25 de março de 2023

Linha recta

Há um momento espantoso em que Hannah Arendt, ao referir-se aos gregos antigos, esse lugar que nunca se pode evitar, dá uma definição de um rigor inultrapassável da condição humana. Escreve: É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha recta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico. Trata-se assim de uma questão de geometria. As coisas imortais movem-se circularmente, submetidas a um eterno retorno do mesmo. A vida dos homens, os únicos seres mortais ao cimo da Terra, desenrola-se em linha recta, a que une o nascimento à morte. As espécies animais, essas são imortais, pensavam os gregos, pois cada uma é um corpo único que se renova a cada nascimento. A espécie humana é uma inexistência, pois o facto de cada ser humano ser dotado da consciência da sua individualidade rompe a ideia de um corpo que se renova pelo nascimento. Pelo contrário, cada nascimento é um acontecimento singular. O corte do cordão umbilical é o momento em que o recém-nascido se torna indivíduo desligado da espécie, alguém que passa a ter não apenas uma vida, mas um destino. As espécies não humanas, vegetais ou animais, têm vida, que se realiza no ciclo do eterno retorno. Os seres humanos têm uma destinação, pois, ao ser-lhes cortado o cordão que os ligava à mãe, são expulsos do eterno retorno e colocados na estrada que os conduzirá à morte. A destinação não é propriamente a morte, mas a realização do caminho pela estrada que lhe é posta em frente ou, no caso dos mais talentosos, que inventam para chegar ao fim. Por falar em estrada, há um livro, belo e terrível com o nome A Estrada. É seu autor Cormac McCarthy. Li-o quando foi publicado em Portugal, mas duvido que me apeteça voltar a ele. Talvez me tenha tornado incapaz de suportar uma obra em que o terrível excede largamente a enorme beleza que o compõe. Não é claro, todavia, que um dia não mude de opinião e de sentimento, e que volte a essa obra. Na verdade, ela é uma alegoria poderosa daquilo que Hannah Arendt escreve sobre o mover-se em linha recta, por sinuosa que esta seja, o que nos recoloca dentro da geometria, de uma geometria especial, em que a recta é composta por numerosas curvas.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Provérbios e máximas

Março marçagão, manhãs de Inverno e tardes de Verão. Sempre que estou em apuros, recorro à minha colecção de frases feitas, lugares-comuns, provérbios ao gosto popular. Enfim, apelo à sabedoria do senso comum. Esta não apenas é tranquilizadora, como é, na verdade, sábia, contrariamente a muitas outras sabedorias que nada têm de sábias. Saí de casa, hoje de manhã, e chovia. De tal maneira que tive de usar um guarda-chuva. Céu cinzento, paisagem urbana soturna, gente com um aspecto quase lúgubre. Há pouco, na rua, perante a inclemência do sol, tive de acomodar as vestes ao fulgor estival. O céu tornou-se azul cintilante, a paisagem urbana era um revérbero, as gentes pareciam irradiar energia e um contentamento inexplicável. Como justificar isto sem recorrer a um ditado? Impossível. Por outro lado, tenho provas inescapáveis da minha proverbial estupidez, para falar claro. Irritei-me com um browser que me permitia aceder à internet. Estava apostado em não querer fazer aquilo para que fora feito. Não estou com meias medidas e, num gesto radical e hiperbólico, destituído de cuidado e sensatez, longe da justa medida por aqui apregoada, desinstalo-o. Vitória, pensei na altura. Derrota, penso agora. Ao suprimi-lo para o tornar a instalar apaguei todos os meus marcadores, aqueles que me permitiam aceder sem trabalho a lugares por onde fazia turismo. Conforta-me a frase de Thomas Carlyle: Com estupidez e boa digestão o homem pode enfrentar muita coisa. Embora, não se aplique completamente a mim, pois nem sempre as digestões são boas. A outra condição, essa está assegurada, pois contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão, como escreveu um dia Friedrich Schiller. Seja como for, noto em mim uma tendência evolutiva. Parece que estou a transitar dos provérbios ao gosto popular para máximas cultas criadas pelo génio daqueles infelizes a quem estupidez foi poupada e que se encontram, as máximas e não os infelizes, ao deus-dará pela internet.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Ressurreição

No diálogo Fedro, Platão, através da personagem Sócrates, lança um violento ataque à escrita. Este exercício hiperbólico, ao qual são dadas razões filosóficas, pedagógicas e conviviais, não evitou que Platão tenha construído uma obra escrita também ela hiperbólica. O artefacto hipérbole é usado para referir a dúvida cartesiana, ficando Platão adstrito ao ramo retórico da alegoria e do mito. E se toda a obra platónica não fosse mais do que um exercício hiperbólico? Faria sentido. A hipérbole é um dispositivo da família do microscópio, serve para aumentar a realidade e é nesse processo de a exagerar que talvez ela se deixe vislumbrar. A ideia platónica de que a escrita é um registo morto não resiste, todavia, ao choque com a existência de pautas musicais. Também estas são constituídas por símbolos e compõem um todo que parece morto, mas quem as sabe ler encontra nelas a vida ou, melhor, encontra nelas múltiplas vidas. Também o texto escrito está submetido à ressurreição através da leitura. Toda a vez que se lê um texto este tem o seu domingo de Páscoa. Talvez faltasse a Platão o conceito de ressurreição para perceber a natureza da escrita, mas, por certo, alguma coisa nele lhe sussurrava para que escrevesse sem parar, pois os seus textos, apesar de residirem em mausoléus, acabariam, a cada leitura, por libertar-se da morte e ressuscitar na consciência do leitor. O diálogo vivo entre pessoas vivas, que seria superior à escrita, é agora substituído pelo exercício taumatúrgico do leitor, que opera o milagre da ressurreição daquilo que jaz morto, mas não apodrece.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Uma questão de QI

As fases da vida. Uma sabedoria popular alimenta a crença numa vida repartida por fases, uma espécie de etapas de um Tour que liga o nascimento à morte. Cada uma dessas fases terá as suas características e exigirá um modo específico de existência, com os respectivos deveres e direitos. Como não me apetece arguir, aceito a descrição e faço – pelo menos, por hoje – minha essa crença. Interrogo-me, então, que etapa é esta em que estou. Sento-me aqui e adormeço, cabeça tombada para a frente, queixo encostado ao peito. Tudo isto para acordar com uma dor no pescoço e uma sensação de inutilidade. Que direitos e deveres me caberão nesta fase? Antes de adormecer, estava a dar uma vista de olhos por um livro. Lia o seguinte: Mas tens olhado para a tua volta com olhos de ver, nestes últimos tempos? Creio que saberás até que ponto é burra uma pessoa com um QI de cem. / Western encarou-o com ar desconfiado. Acho que sim, disse. / Pois bem, metade das pessoas são mais burras do que isso. Onde é que achas que tudo isto vai parar? / Não faço ideia. Eis uma boa resposta: não faço ideia. É a resposta que encontrar para múltiplas perguntas que me faço, entre elas a da razão por que, nesta etapa do Tour existencial, adormeço sentado defronte do computador. A incapacidade de encontrar resposta talvez resida no meu QI. A média do QI português é de 95. Sendo eu um português médio, devo partilhar a média do QI que cabe aos portugueses. Como assinalou Sheddan, aquele que dialoga com Western, um QI de 100 é já um sinal acentuado de burrice, quanto não fará um de 95. É humilhante, mas basta passar a fronteira para o QI subir 2 pontos. Se foi para isto que o primeiro Rei andou por aí a espadeirar, melhor fora que estivesse quieto. Seja como for, a situação aqui ao lado também não é muito famosa. Segundo vi, o topo do QI foi monopolizado pelos asiáticos. O que me deixou intrigado foi Israel. Tem menos 1 ponto de QI médio do que nós. Será que o QI também acompanha as fases da vida? Bem, não quero saber, contento-me com a pertença a um povo com um QI médio de 95, contento-me por reflectir com precisão essa pertença. Todas as idiotices que escrevo estão justificadas. Coitado, com um QI de 95, muito já faz ele.