O tempo continua a passar. Não é uma abertura brilhante, mas talvez seja verdadeira. O talvez deve-se a não haver certeza de que exista uma coisa a que damos o nome de tempo. Ora, se o tempo não existir, então não pode passar. Estou a perder-me. A manhã foi passada em estágio para o que iria acontecer à hora de almoço. Essa preparação foi acompanhada por um número infinito de concertos para rebarbadora e corta-relva. Não sou refractário à música contemporânea, mas há coisas que excedem os meus poderes. Às empresas que foi concessionada a manutenção dos jardins e parques municipais falta-lhes a sensibilidade que havia nos antigos serviços camarários, onde tudo era mais lento e com enormes intervalos que deixavam o auditório descansar contemplativamente. Pela hora de almoço, dei entrada no bloco operatório para excisão de um sinal no pé esquerdo. As enfermeiras, antes da chegada dos médicos, anestesista e cirurgião, falavam de sopa de tomate, se era refogada, se era à alentejana, conversa que desembocou em tomatada com ovos escalfados. Chegados os médicos, a conversa mudou de rumo. Cheguei a participar dela, mas já não me lembro bem qual o assunto. Uma anestesia no pé acaba por ter um efeito na mente. A continuar assim, chego ao fim-de-semana cheio de aventuras, para ilustrar a minha gesta. O pior é conseguir andar. Vale-me um poema de Hermann Broch que, a certa altura, diz, na tradução francesa: Oh printemps automnal ! / Il n’y eut jamais de plus beau printemps que cet automne-là. / Le passé se mit à pousser des bourgeons, toutes les fleurs s’épanouirent / C’était le calme délectable qui précède l’orage. / Le Dieu Mars même souriait. Só espero que a tempestade seja no mar alto, naqueles lugares onde nem os barcos passam. Só espero que Marte, depois de sorrir, se sinta furioso por terem sido frustrados os seus planos, pois mesmo um cavaleiro andante tem os seus limites.
Não voltei a ler, mas fiquei com uma má impressão. E a ideia foi esta: como pode ser possível falar em receitas de culinária em frente a alguém que se vai submeter a uma cirurgia? É claro que não é uma amputação, ainda menos a morte de Sócrates, mas, ainda assim, é uma cirurgia conveniente. Das duas uma: ou se estão nas tintas, ou acham sem importância. Mas, apesar de todos os raciocínios possíveis, não gostava que cheirasse a bloco operatório na minha cozinha, quando faço uma sopa de tomate. Seja ela com refogado ou sem refogado.
ResponderEliminarBroch é um dos grandes do século XX. Quanto à conversa na cirurgia, não me fez diferença. Tenho por certo que, durante as cirurgias, enquanto o paciente está do outro lado, as conversas devem ser muito mais impróprias para o paciente escutar.
EliminarTem carradas de razão.
EliminarPeguei em A Morte de Virgílio. A consciência de que iria morrer, *Vou morrer, talvez ainda hoje… mas antes vou queimar a Eneida… *, quero tanto ler este livro, já ouvi e li muita coisa sobre ele, e tenho-o aqui aberto na página 187, quando Virgílio sabia que ia morrer, e o afirma a Lucius e Plotius. Vai ter de ser a minha próxima leitura (é um livro para ler no Outono). Fui ver, por curiosidade, a data da morte de Virgílio. Faz hoje, 21 de Setembro, 2042 anos. Mas a Eneida ficou.
A Eneida ficou e tem, neste momento, duas traduções meritórias em português, pelo menos.
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