quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Ninguém

Dentro de um livro de Charles Taylor, As Fontes do Self, encontrei um bilhete de uma ida ao teatro, no ano de 2007, ver Macbeth. Como não tenho o costume de andar a pedir bilhetes de teatro usados para pôr dentro dos livros, concluo, por inferência pela melhor explicação, que terei ido ver a peça. Se tivesse sido interrogado sobre o assunto, teria respondido convictamente que não, que há muito não vou ao teatro. Como se pode observar a realidade conspira contra mim, aproveitando o declínio da memória. Taylor explora, no livro referido, as várias instâncias de construção da identidade moderna. A mim preocupa-me a relação entre identidade e memória. Se perder a minha memória, continuarei a ser eu? Se as coisas que fiz forem sendo continuamente rasuradas, o que poderei dizer se me perguntarem quem és tu? A certa altura, nem sequer o Ninguém do romeiro do Frei Luís de Sousa estará disponível. Platão teria alguma razão em colocar a reminiscência no centro de uma vida digna de ser vivida. Não a anamnese das Ideias ou Formas entrevistas, antes do nascimento, no mundo inteligível, mas daquilo que se foi vivendo no tenebroso mundo sensível. Também aqui, todavia, convém adoptar o virtuoso meio-termo aristotélico. Nem a página em branco de uma memória apagada, nem a memória de elefante que nada esquece. A memória virtuosa, a que nos dá uma identidade e possibilita uma vida digna de ser vivida, é uma trama composta por recordações e esquecimentos. O que causa perplexidade, porém, é que não somos donos daquilo que recordamos e daquilo que esquecemos, como se recordar e esquecer fossem coisas que acontecem em nós, mas não somos os agentes disso que se dá em nós. Isto levar-nos-ia a perguntar quem em nós se recorda e quem em nós se esquece. Quem se esqueceu em mim que na noite de 26 de Maio de 2007 fui assistir ao Macbeth? Esta questão acaba por pôr em causa a importância há pouco atribuída à reminiscência e inclina o pensamento a responder à questão com a resposta do Romeiro: Ninguém.

12 comentários:

  1. Se perguntassem quem és tu, a Lady Macbeth, talvez ela dissesse mais ou menos isto: as minhas mãos são da cor das tuas (tingidas de sangue), mas o meu coração é tão branco. Há uma espécie de memória, que é racionalmente filtrada, que branqueia a culpa. A outra memória, a do esquecimento, não tem importância nenhuma. Enfim, há a mentira encapotada e a verdade esquecida.

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    1. Nem só de filtragem da culpa vive a memória. Por outro lado, duvido da irrelevância do esquecimento. Seja como for, a questão persiste: quem em mim se esquece ou se recorda, mesmo que branqueando a culpa? A ideia de branquear a culpa na filtragem da memória é bastante interessante. Julgo que ninguém tem um projecto para branquear a sua memória de um acto culposo. Isso avivaria mais a memória desse acto.

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    2. Pois, a culpa é sempre uma memória exacerbada. Basta ler o Crime e castigo.
      Quanto à outra memória, a coloquial, até é necessária, para deixar espaço.

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  2. Vivemos num tempo em que nos pesa o esquecimento. Temos medo. Quem era eu em 2007? Talvez ninguém. E se agora também for ninguém? Que maravilha.

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    1. Não se trata de ter medo do esquecimento. Trata-se de uma perplexidade perante o sujeito que recorda ou que esquece. O Romeiro do Frei Luís de Sousa era ninguém, mas um ninguém demasiado existente. O ninguém surge como uma metáfora de um nome censurado.

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    2. Ainda tenho o primeiro livro por onde li essa peça. Claro que falava em Ninguém, com ironia. Ou seja, Alguém-ninguém por vontade própria, e espanto dos outros.
      O medo, hoje, tem a ver com outra coisa. Com o espectro do esquecimento. Com a doença que impede de lembrar.

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    3. E, já agora, fiquei aqui a matutar numa ligação interessante entre aquele que se omite (Frei Luís de Sousa), e aquele que quer por força ser reconhecido, e não consegue, O coronel Chabert, de Balzac.
      E assim desapareço eu também, anónima lda.

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    4. Resta saber até que ponto o texto de Balzac ajudou a inspiração de Garrett. Fui ver e há uma versão de Le Colonel Chabert de 1832, com o título de Transaction.

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    5. C’est la comédie humaine.
      Bonne soirée, Mr. Péregrinatio.

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    6. Problema antigo como se pode ver num soneto de Vasco Mouzinho de Quevedo Castel Branco, uma das figuras que se encontra na base do monumento a Camões no Chiado, e que se inicia assim: «Quando [às vezes] a mi por mi pergunto/Quem fui responde que não me conhece.»

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    7. Sim, muito antigo, embora a antiguidade não tenha ajudado na resolução. Freud tentou, mas é possível que o problema tenha ficado como estava.

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